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Nerdices e libertarianismo em Vinte Mil Léguas Submarinas

Vinte Mil Léguas Submarinas

Vinte Mil Léguas Submarinas é o livro mais nerd de Júlio Verne, nerd no sentido de paixão por um tema que, no caso, é a vida marinha.

Júlio Verne é um ícone nerd. Eliminando os sentidos pejorativos ou o significado mais recente de nerd (praticamente sinônimo de "amante da cultura pop"), a palavra nerd identifica a pessoa que tem um grande interesse intelectual por algum assunto. No caso de Júlio Verne, sua maior paixão era o mar¹, a navegação e o estudo da vida marinha.

Em seus livros ele explorou diversos ramos da ciência: a mineralogia, a balística, a astronomia, a espeleologia, etc. Em Vinte Mil Léguas, porém, ele parece extravasar seu interesse pela ciência marinha. O livro é repleto de cenas em que os personagens classificam e descrevem com paixão as espécies submarinas. Às vezes parece que o autor está mais interessado em se dedicar a tais descrições da vida oceânica do que em desenrolar a história dos personagens. 

O fascínio do autor pelo mundo marinho se mostra nas ricas cores em que ele o descreve: 

"Eram uma maravilha, um encanto, estes cambiantes de cores, uma verdadeira caleidoscopia de verde, de amarelo, de cor de laranja, de violeta, de anil, de azul, numa palavra, a paleta completa de um colorista de primeira ordem!"

Ele tem seus momentos mais poéticos quando elucubra sobre criaturas e objetos marinhos, como na descrição de uma pérola:

"Para o poeta a pérola é uma lágrima do mar; para os orientais é uma gota de orvalho solidificada; para as damas é uma joia de forma oblonga, de brilho hialino, de matéria nacarada, que trazem no dedo, ao pescoço ou nas orelhas; para o químico é uma combinação de fosfato e de carbonato de cal com o seu tanto ou quanto de gelatina; e, enfim, para os naturalistas é uma simples secreção doentia do órgão que produz o nácar em certos bivalves."

Tirando estes momentos enciclopédicos da obra, o que mais chama atenção é o excêntrico capitão Nemo e seu submarino Nautilus. Em pleno século XIX, Verne teve a ousada ideia de imaginar um submarino que funcionava totalmente por meio de eletricidade e seus tripulantes viviam em um mundo separado do continente, colhendo no oceano tudo o que precisavam para viver.

Logo no começo do livro, a história parece ter uma inspiração no modelo Moby Dick, em que vemos um navegador obcecado em caçar um suposto monstro marinho. Depois descobre-se que o tal monstro na verdade era o submarino do Nemo, quando então a narrativa ganha outro rumo.

"O monstro existia, e ele jurava que havia de livrar os mares de semelhante flagelo. Era uma espécie de cavaleiro de Rodes, um Deodato de Gozon, caminhando ao encontro da serpente que lhe infestava a ilha. Ou o comandante Farragut havia de matar o narval, ou o narval havia de matar o comandante Farragut. O digno marinheiro não admitia meio termo."

Nemo é o libertário por excelência. Ele tem uma personalidade orgulhosa e independente de tal forma que encontrou um meio de ser seu próprio país, seu próprio governo: vivendo no mar. O Nautilus é o país ambulante do capitão Nemo. Ali ele está livre de qualquer submissão.

"O mar não pertence aos déspotas. À superfície podem eles ainda exercer os seus iníquos direitos, baterem-se, devorarem-se, praticarem toda a espécie de horrores. Mas a dez metros de profundidade cessa o poder deles, acaba-se-lhes a influência, desaparece o seu poderio! Viva, Sr. Aronnax, viva no seio dos mares! Só aqui é que há independência! Eu, no mar, não tenho superiores. Sou livre!"

Notas:

1: A paixão de Júlio Verne por peixes e demais criaturas do mar se nota, por exemplo, neste trecho do capítulo "O Mediterrâneo em 48 Horas", em que os protagonistas listam uma quantidade enorme de espécies, tomados de empolgação.

"Dos diversos peixes que ali habitam, vi uns, entrevi outros, não falando daqueles que a velocidade do Nautilus me subtraiu à vista. Seja-me, pois, lícito classificá-los como me for lembrando. No meio da massa das águas, vivamente iluminadas pelos jorros de luz elétrica, serpenteavam algumas dessas lampreias de cerca de um metro de comprimento, que são comuns a quase todos os climas. À semelhança de grandes xales levados pelas correntes, estendiam-se os oxirrincos, espécie de raias, de metro e meio de largura, ventre branco, dorso cinzento e manchado. Raias de outra espécie passavam com tal celeridade que não podia reconhecer se mereciam o nome de águias, que lhes foi dado pelos Gregos, ou as qualificações de rato, sapo e morcego, com que as denominam os pescadores modernos. Esqualos-lixas, com quatro metros de comprimento, e muito temidos dos pescadores, porfiavam em rapidez uns com os outros. Apareciam-nos, como grandes sombras azuladas, raposas-marinhas de três metros de comprido, dotadas de um olfato delicadíssimo. Douradas, do género spares, algumas das quais mediam treze centímetros, ostentavam o seu vestido de prata e azul, cercado de listas, que sobressaía na cor escura das barbatanas; peixes consagrados a Vénus e cujos olhos são orlados de supercílios de ouro; espécie preciosa, amiga de todas as águas, doces ou salgadas, que habita os rios, os lagos e os oceanos, vive sob todos os climas, suporta todas as temperaturas, e cuja raça, não obstante remontar às épocas geológicas da Terra, tem conservado toda a beleza dos primeiros dias. Esturjões magníficos, de nove a dez metros de comprido, animais de grande poder de locomoção, açoitavam as vidraças do Nautilus com a sua cauda potente, como para que lhes admirássemos o dorso azulado com pequenas manchas escuras; parecem-se com os esqualos, mas são-lhes inferiores na força; encontram-se em todos os mares. Na primavera, sobem os grandes rios, lutam contra as correntes do Volga, do Danúbio, do Pó, do Reno, do Loire e do Óder; alimentam-se de arenques, cavalas e salmões e, apesar de pertencerem à classe dos cartilagíneos, são delicados ao paladar; comem-se frescos e secos, salgados e de salmoura, e em tempos que já lá vão figuravam triunfalmente nas mesas dos Lúculos. Dos diversos habitantes do Mediterrâneo, os que eu pude observar mais a preceito, quando o Nautilus se aproximava da superfície, pertenciam ao septuagésimo terceiro género dos ósseos. Eram atuns, de dorso azul-escuro, ventre couraçado de prata, e cujos raios dorsais espadanam clarões de ouro. Diz-se que seguem a rota dos navios, cuja sombra fresca procuram sob os raios do sol tropical, e de facto assim aconteceu, não largando o Nautilus, como já outrora sucedera com os navios de La Pérouse. Por largas horas competiram em ligeireza com o nosso aparelho. Não me cansava de admirar aqueles animais, de cabeça pequena, corpo liso e fusiforme, que em alguns media mais de três metros de comprimento, peitorais dotados de um vigor notável e caudas bifurcadas. Nadavam em triângulo, como certos bandos de aves, cuja rapidez igualavam, o que fazia dizer aos antigos que a geometria e a astrologia lhes eram conhecidas. E apesar disso não escapam à perseguição dos Provençais, que os estimam tanto como os apreciavam os habitantes o Propontido e da Itália, e é como cegos, como estouvados, que estes preciosos animais vão lançar-se e morrer aos milheiros nas almadravas marselhesas. De memória, citarei também diversos peixes que Conseil e eu vimos apenas de relance. Eram gimnotos esbranquiçados, que passavam como vapores incoercíveis; moreias-congros, serpentes de três a quatro metros, repintadas de verde, azul e amarelo, pescadas de um metro de comprimento, cujo fígado fazia um acepipe de ótimo gosto, cépolas-ténias, que flutuavam como as algas mais finas, triglos, que os poetas apelidam peixe-lira e os marinheiros peixe-assobio, e cujo focinho é ornado de duas lâminas triangulares e dentadas que parecem o instrumento do velho Homero, triglos-andorinhas, que nadam com a rapidez da ave de que tomaram o nome, holocentros, de cabeça vermelha, cuja barbatana dorsal é guarnecida de filamentos, sáveis ornamentados de manchas negras, cinzentas, escuras, azuis, amarelas, verdes, que são sensíveis à voz argentina dos sinos, rodovalhos esplêndidos, esses faisões do mar, espécie de losangos com barbatanas amareladas, ponteadas de escuro, e cujo lado superior, o esquerdo, é geralmente marmoreado de escuro e amarelo e, finalmente, cardumes admiráveis de ruivos, verdadeiras aves-do-paraíso do oceano, que os Romanos pagavam até dez mil sestércios por cabeça, e que mandavam matar à mesa, para presenciarem o espetáculo da mudança de cores, desde o rubro-cinábrio da vida até ao branco-pálido da morte. Se não pude observar balistas, tetraodontes, hipocampos, centriscos, biénios, sardas, espinhos, peixes-rei, voadores, anchovas, pargos, bogas, orfas e todos os demais representantes da ordem dos pleuronectos, as solhas, os linguados, as patruças, as azevias, comuns ao Atlântico e ao Mediterrâneo, o facto deveu-se à celeridade com que o Nautilus corria por aquelas águas opulentas. Quanto aos mamíferos marinhos, creio ter reconhecido, ao passar em frente do Adriático, dois ou três baleotes, com uma barbatana dorsal, do género dos fisetérios, alguns delfins do género dos globicéfalos, especiais do Mediterrâneo, e cuja parte anterior da cabeça é listada de pequenas linhas claras, bem como uma dúzia de focas de ventre branco e pele das costas preta, conhecidas sob o nome de monges, por se parecerem com o hábito dos dominicanos. Medem três metros. Pela sua parte, Conseil julgara ter visto uma tartaruga de dois metros de largo, ornada com três arestas salientes em sentido longitudinal. Lamentei não ter visto aquele réptil, pois, pela descrição que dele me fez Conseil, julguei reconhecer o alaúde, que é uma espécie bastante rara. Quanto aos zoófitos, pude admirar durante alguns instantes uma prodigiosa galeolária alaranjada, que se agarrou à vidraça do caixilho de bombordo; era um longo filamento ténue, arborizando-se em ramos infinitos e terminado pela mais fina renda que jamais fiaram as rivais de Aracne. Infelizmente não pude lançar mão àquele maravilhoso exemplar, e por certo que nenhum outro zoófito daquele mar teria aparecido se o Nautilus, na tarde de 17, não tivesse afrouxado singularmente a sua velocidade."

Trechos assim não são raros no livro. Ao contrário, há dezenas de outros exemplos deste tipo. É uma enciclopédia de ictiologia.

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