Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Ateus devem ler a Bíblia?

Kid reading Bible

Bem, agora que chamei sua atenção com o título polêmico, permita-me explicar melhor minha questão. Não quero falar apenas de ateus, mas também dos não religiosos, não cristãos ou de qualquer outra crença que não tenha a Bíblia como livro sagrado. Por "devem" não se entenda uma obrigação, mas uma opção.

Dito isto, faço minhas as palavras de John Macy (História da Literatura Mundial):

"Admitamos de princípio a Bíblia como literatura, livre de ler e apreciar, como o fazemos com todos os outros livros, pela sua beleza, poesia, sabedoria, seu interesse narrativo, seu valor histórico - todas as qualidades, enfim, que chamamos literárias. Se a Bíblia é ou não é a palavra de Deus, isso diz respeito à teologia, não à literatura".

Nas vezes em que conversei com pessoas não religiosas sobre a Bíblia, foi comum constatar um fato: algumas delas criticavam a Bíblia sem sequer terem lido um capítulo inteiro. Os motivos pelos quais alguém teria aversão a estes livros variam. Há quem diga que foi forçado a fazer catecismo na infância e desde então criou antipatia pelo assunto; outro me diz que Bíblia é para os seus seguidores (cristãos, judeus), nada mais; ou que seu conteúdo é antiquado e bárbaro e nada tem de aproveitável.

Eu mesmo, quando tinha 15 ou 16 anos, nunca havia lido a Bíblia até que um colega me emprestou. Levei para casa, devo ter lido alguma parte da Torá, talvez as guerras de Josué ou a "lei de talião" de Moisés. No dia seguinte devolvi e comentei que era um "livro de terrorismo".

Esta impressão superficial que tive parece hoje ser bem comum. Sim, a Bíblia, principalmente o Antigo Testamento, é recheada de histórias bem violentas. Há estupros, traições, genocídios, roubo, adultério, ganância, loucura. E estas coisas não aconteciam só com os "vilões" da história. Os homens venerados, os heróis da Bíblia, como Abraão, Moisés, Sansão, Davi e Elias, todos cometeram atos assustadores.

Isto a torna um livro descartável? Claro que não. Os épicos pagãos têm o mesmo teor. Leia-se o Mahabarata  hindu ou a Ilíada dos gregos ou o Enuma Elish babilônico ou o Livro dos Mortos egípcio. Todos eles são considerados peças valiosas da literatura arcaica e seu conteúdo não é de todo politicamente correto ou sequer se encaixa nos padrões civilizados de hoje. Os deuses pagãos matam e estragam a vida dum homem tão frequentemente nestas histórias quanto o Deus da Bíblia ordenava que Moisés fizesse guerra contra povos mediterrâneos.

É justamente aí que reside o valor universal, supra-religioso, destes livros. Eles não são apenas manuais de como seguir uma religião. A maior parte do conteúdo é puramente humano, passional, errado, paradoxal como todos os humanos são. Há preceitos absurdos para nossa moral de hoje (como proibir uma mulher menstruada de fazer sexo com o marido ou apedrejar uma pessoa que varre sua casa no sábado), mas há também exemplos de vida, conselhos sábios, recortes da experiência humana vivida pelos povos antigos.

Leia-se a história de José que, traído e vendido pelos irmãos, conseguiu se tornar um líder poderoso aos pés do qual os irmãos vieram depois pedir ajuda; e a perpétua desavença dos irmãos Esaú e Jacó, sempre disputando o amor do pai; e a luta ousada de Jacó com um anjo; e a amizade fiel de Rute e Noemi, duas retirantes em meio a uma época de fome; e a sensualidade de Cantares ou a profundidade pessimista do Eclesiastes. Os Salmos, enfim, creio que sejam o melhor da Bíblia. Um povo que faz poesia deve ter algo a nos ensinar.

Mas as partes "ruins" não invalidam as boas? Moisés diz "não matarás" e ordena a Josué que massacre os cananeus para tomar suas terras. Ora, olhemos para nós mesmos. Por acaso somos a pura virtude? Nosso lado sombrio invalida nosso lado virtuoso? Este é o ser humano: paradoxal. E tudo o que ele produz traz em si esta qualidade. 

Sem contar que um povo do século XXX A.C. se comporta como um povo do século XXX A.C. Hoje reprovamos certos costumes dos medievais, mas provavelmente as pessoas daqui a 500 anos vão reprovar muitos dos nossos costumes que agora consideramos normais ou mesmo virtuosos.

Ademais, há uma beleza estética. Nas línguas originais isto é mais evidente, mas, mesmo traduzido, o texto mostra ter qualidade literária, na narração, na estrutura da poesia. Os Salmos em hebraico contêm até jogos de palavras, trocadilhos e uma organização metódica de versos, equiparável à poesia grega e hindu. A narração da história de José é genial, com um esquema hoje considerado requintado para autores modernos que sabem usá-lo, a saber, contar uma história dentro duma história, com narradores em camadas. 

A Bíblia é, afinal de contas, produto humano, um legado dos povos antigos e, mesmo que alguém se negue definitivamente a retirar qualquer ensinamento dela, ainda assim são poucos os livros com mais de três mil anos que temos hoje. Será que não vale a pena ao menos conhecer o que escreveram pessoas numa época em que a literatura mundial dava seus primeiros passos?

(09,01,2012)

Nenhum comentário:

Postar um comentário