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O rio que corre pro mar, um clichê da poesia

Em poesia, chama-se "rima pobre" aquela que combina palavras muito comuns ou semelhantes, especialmente palavras de mesma classe gramatical, como os verbos terminados em "ar" (verbos de primeira conjugação). Afinal é bastante fácil rimar verbos da mesma conjugação como falar, cantar, andar, chorar, sofrer, viver, esquecer, morrer etc. 

Isto não significa que seja "errado" usar as rimas pobres ou que o resultado não seja brilhante. A beleza em poesia é algo subjetivo e não depende apenas de rigor técnico, de métrica ou rima. É o conjunto, a combinação especial das palavras e significados, uma alquimia. Um poema pode ser impressionante, ainda que repleto de rimas pobres, assim como outro com caprichadas rimas ricas pode ser insosso e sem encanto.

No entanto, espera-se que o artista seja um criador, um inovador. Ainda que, no fim das contas, "nada há de novo debaixo do sol", o artista é alguém que renova, recria, transforma. Se um poeta se conforma em usar sempre rimas pobres e não tem a ousadia e o esforço de garimpar em busca de novidades, de novas rimas e combinações incomuns de palavras, está desperdiçando a oportunidade de inovar.

Pois bem, apliquemos o mesmo raciocínio ao uso de metáforas. A metáfora, uma figura de linguagem, tem, na poesia e na arte, a intenção de ilustrar ideias, de criar na mente das pessoas uma imagem com significado.

Em vez de apenas transmitir uma informação de maneira objetiva e incolor, a metáfora lhe dá cor, gosto, som, forma, tamanho. A metáfora serve para vestir ideias com a roupa da beleza (entendendo-se por "beleza" aquilo que causa uma forte impressão no espírito, de modo que, para a arte, mesmo o grotesco pode ser belo).

Usando a classificação empregada em poesia, podemos dizer que também há "metáfora rica" e "metáfora pobre". E aqui chegamos ao rio. O rio que corre pro mar. Eis uma das metáforas mais comuns no imaginário humano e que, como veremos nos exemplos a seguir, é bastante usada em poesia e música popular.

É compreensível que a imagem do rio seja motivo tão frequente para metáforas, afinal é um elemento "cósmico", um elemento do mundo. O mundo é coberto de rios. São tão comuns quanto as nuvens, as estrelas, as montanhas. Todos estes, aliás, são usados em abundância na linguagem poética e figurada.

O risco que corre uma "metáfora pobre" é de tornar-se vazia ou perder o encanto, a força da impressão. De tão comum, já não causa a admiração que deveria como forma de arte, logo, não é tão bela. A metáfora, assim como a rima, pede por inovação e pelo inusitado, para o bem da expressão artística.

Enfim, vejamos algumas letras que recorrem ao famoso "rio que corre pro mar":

Como água do rio que corre pro mar,
A noite se vai e sol vem brilhar.
Como água do rio que corre pro mar,
A boa certeza que eu vou te encontrar.
(A Boa, Tianastácia)

O nosso amor é um rio que corre pro mar.
Não tem porque a gente tentar apressar
deixando ir que a vida vai se encarregar
de reunir as pedras no mesmo lugar.
(Afluentes, Emílio Santiago)

O rio só corre pro mar.
Tem gente querendo esbanjar.
(O rio só corre pro mar, Thiago Cunha)

Como um rio que corre pro mar 
eu te amo e não vou negar. 
Acho que nasci só pra te amar. 
(É um caso sério, Grupo Caso Sério)

E não preciso dizer nada, também não vá chorar.
Nos seus olhos eu vi,
Você é como um rio que corre pro mar.
(Frente a frente, Daniel)

A voz do meu coração te chama e pede pra você voltar.
A nossa louca paixão é como um rio que corre pro mar.
É sempre assim, amor sem fim e nunca vai se acabar.
(Amor sem fim, Grupo Louca Paixão)

Acabou, mas se tiver que ser será. 
Você pode até não gostar, mas o rio corre para o mar.
(O rio corre para o mar, João Mineiro e Marciano)

Ah, menina princesa,
quantas vezes quis te beijar.
Teu olhar foi que nem correnteza,
feito um rio que me leva pro mar.
(Menina princesa, Maurício Mattar)

Nota-se, em alguns destes exemplos, que a metáfora também serve como um tapa-buraco e uma maneira fácil de inserir rimas pobres. Mar rima com brilhar, encontrar, amar, chorar etc. etc.

Vejamos outro exemplo um tanto diferente: o uso do rio em letras gospel. A origem dessa metáfora é o texto bíblico do profeta Ezequiel, capítulo 47, em que ele descreve uma visão que tem do trono de Deus e, do trono, brota um rio. Na música gospel, portanto, a imagem do rio, além de ser lugar-comum na música e poesia, remete à imagem bíblica de Deus como fonte do qual emana a graça (o rio). O resultado é como segue:

Dos montes corre para o mar
teu rio de amor por mim.
Eu abrirei meu coração
Deixando tua cura entrar.
(Cantarei teu amor para sempre, David Quinlan)

Rio, rio do trono de Deus,
traz a cura, traz a vida, sara todas as feridas.
Rio, rio que corre pro mar.
(Mergulhar, Liz Lanne)

Por fim, um caso curioso e internacional, uma música que foi cantada por Elvis Presley. Diferente do uso em português, ela compõe uma rima razoavelmente rica ("sea" com "to be", palavras de classes gramaticais diferentes, um substantivo com um verbo):

Like a river flows surely to the sea, 
darling so it goes. 
Some things are meant to be.

(Como um rio que corre pro mar, 
querida isso segue. 
Algumas coisas têm que ser.)
(Can't help falling in love, George Weiss, Hugo Peretti, Luigi Creatore)

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