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Martyrs, o heroísmo da vítima

Martyrs (2008)

Martyrs (2008) é um belo exemplo da escola de terror francesa conhecida como Novo Extremismo Francês, menos surreal, mais verossímil e sutil. Não se limita apenas a exibir cenas de violência gratuita, antes desenvolve uma trama de mistério e drama, com súbitas mudanças nos rumos da história. Chega até a incluir uma reflexão filosófica e referências históricas em seu conteúdo.

Lucie (Mylène Jampanoï), quando criança escapou de um cativeiro. Desde então foi criada numa clínica, tendo como única amiga Anna (Morjana Alaoui). Passam-se quinze anos e Lucie finalmente se vinga da mulher que a torturou. Mas o terror só está começando, pois existe uma organização secreta envolvida, uma espécie de seita que aprisiona e tortura garotas com estranhos propósitos religiosos ou pseudocientíficos.

A líder da seita acredita numa diferença entre “vítima” e “mártir”. Segundo ela, o mundo está cheio de vítimas, enquanto mártires se tornaram uma raridade, pessoas que transcendem o sofrimento e alcançam, sob tortura, um estado de graça. Enumera alguns exemplos, e aqui o filme exibe fotos de pessoas reais que de fato sofreram torturas.

Martyrs (2008)

Cita o exemplo da mulher retalhada pelo castigo dos “mil cortes”, prática comum na China até o início do século XX. O segundo exemplo seria de uma mulher francesa morta em 1945 por ter relações com um alemão. Após a Segunda Guerra, os franceses passaram a castigar e humilhar mulheres acusadas de colaborar com alemães. Assim surgiram as “mulheres tosquiadas”, pois tinham os cabelos raspados, sem contar os castigos físicos.

E seguem outros exemplos. Segundo a líder da seita, na expressão do rosto destas mulheres era possível ver que alcançaram uma transcendência, um estado de serenidade sublime. E este seria o objetivo da seita: torturar garotas até encontrar uma que alcançasse este raro estágio de “mártir”.

As vítimas do cativeiro, sempre mulheres, têm seus cabelos raspados, mais uma vez recordando as mulheres tosquiadas do período pós-guerra. Em um momento, os membros da seita, vestidos de preto, também como imagem do exército nazista, empilham vítimas numa vala comum, outra referência histórica, pois era assim que os nazistas empilhavam os mortos nos campos de concentração.

Martyrs (2008)

Além de recordar indiretamente os traumas da Segunda Guerra e o mal que o regime nazista causou na consciência do povo francês, Martyrs vai além e aborda uma simbologia filosófica. Não seria o cativeiro uma alegoria da caverna? Não seria o mundo uma prisão e o corpo uma experiência de desconforto para a alma? É um pensamento neoplatônico ou gnóstico muito comum no cinema.

Desenvolvemos uma empatia pelas personagens. O sofrimento delas chega a ter uma estranha beleza, como se fossem mártires realmente, ícones de uma causa mística. O mais interessante é o aprendizado da vítima e a forma como gradativamente vai se modificando psicologicamente, na sua atitude para com o sofrimento, numa postura cada vez mais estoica, mais desprendida, mais “santa”.

Isto se nota também na mudança da trilha sonora. Após dias indeterminados de castigos, Anna para de reagir, não luta mais contra seus torturadores, nem chora, nem reclama, apenas aceita tudo de forma dócil. É nesse momento que entra a música My Neighborhood (do compositor Goldmund), marcando sua transformação, sua adaptação ao mundo cruel do cativeiro. E seus torturadores também passam a tratá-la diferente, até mesmo com certo respeito.

Martyrs (2008)

É como se o filme quisesse nos ensinar que a dor passa, que a forma como lidamos com ela também muda, que há um potencial transcendente na natureza humana para superar a humilhação. Como se houvesse um limiar, uma fronteira entre o desespero e a serenidade, e que algumas pessoas, submetidas à prova, atravessam a fronteira em direção à loucura. Outras, à serenidade. 

Desta forma, em Martyrs, a protagonista, que é tratada como uma vítima, termina, pela superação do sofrimento, se tornando uma heroína.

Martyrs (2008)

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