Depois de ver A Serbian Film, tive o desgosto de ver A Centopeia Humana. Digo “desgosto” porque é mesmo uma experiencia traumatizante, mas eu gosto de terror, gosto de ser incomodado. Acho que há dois tipos de terror: 1) um que pretende apenas dar alguns sustos ou às vezes nem isso, quando a gente assiste sem sentir qualquer incômodo, é apenas entretenimento; e 2) um terror que mexe com a gente, nos incomoda, perturba, não sai da nossa cabeça, nos dá pesadelos.
Este segundo tipo é para poucos. A maioria das pessoas, quando se depara com o filme que lhe causa estes sentimentos, conclui logo que viu algo ruim, de péssima qualidade. Penso o contrário. Um filme precisa ser muito corajoso e ousado pra conseguir produzir estes sentimentos fortes e incômodos. Neste caso, o Tom Six, criador da Centopeia Humana, merece ser considerado um dos maiores cineastas desse gênero, em minha humilde opinião.
Quando vi o trailer logo tive a curiosidade, mas não calculei o nível de desgosto que a ideia do filme envolvia. Três pessoas ligadas, duas delas com a boca no ânus da outra, andando juntas, alimentando-se uma das fezes da outra. E tudo foi dramatizado com realismo em excesso.
O terror de entretenimento não sai do âmbito da ficção, é sempre algo surreal, mas esse outro tipo de terror com uma abordagem mais realista é bastante perturbador. O filme dá vontade de vomitar, dá angústia e, diferente dos filmes de terror convencionais, no final a vítima não se liberta. A sensação de frustração é terrível, é quase como viver a situação.
A Centopeia Humana não é um terror para assustar. É terror para incomodar. A Hora do Pesadelo, Sexta Feira 13 e afins nos assombram com fantasmas, monstros surreais, coisas que a gente sabe que são de mentirinha. O filme de Tom Six, por outro lado, é verossímil, lida com algo até certo ponto possível de acontecer: pessoas raptadas e submetidas a experimentos macabros de algum maníaco.
A história envolve um médico aposentado que tem a ideia bizarra de unir pessoas cirurgicamente para criar a tal centopeia. Isto envolve rapto, uma forma de tortura física e psicológica, humilhação. Creio que o mais perturbador do filme é a humilhação a que os personagens são submetidos, rebaixados a um estado subumano, de coisa, de bicho, espécime de laboratório.
Este médico, interpretado por Dieter Laser, lembra os antigos cientistas malucos, os Frankensteins das histórias fantásticas. Ele não é sádico nem tarado, não demonstra sentimento algum pelas pessoas. Para ele, pessoas são objetos, são matéria orgânica que ele pode manipular num experimento. Esta indiferença do vilão para com a vítima também alimenta a sensação de estranhamento que o filme produz.
Como é comum no gênero do terror, as personagens cometem muitos erros e só se dão mal por causa disso, de erros banais, erros que, se não cometidos, poderiam salvar as vítimas. Primeiro, as duas garotas saem de carro num país estrangeiro à noite sem estudar o trajeto. Se perdem na estrada. Isto já seria evitado com a simples precaução de estudar melhor a viagem e ter um mapa rodoviário. Depois, o pneu estoura e isto seria facilmente resolvido se soubessem trocar o pneu. Uma pessoa que tem carro, que dirige, não pode negligenciar algo tão básico como aprender a trocar um pneu.
Então um homem para, mas pensa que elas são garotas de programa, e elas não sabem falar alemão. Outro erro, pois se vão a um país estrangeiro, devem ter a precaução de aprender conversas úteis na língua nativa caso precisem de ajuda. Resumindo, o terror todo teria sido evitado simplesmente se elas soubessem trocar um pneu.
Então deixam o carro e saem a esmo até achar uma casa. São atendidas por um senhor solitário e cometem outro erro. Aceitam água e bebem. É claro que podiam passar sem isto ao menos até conseguirem uma ajuda, mas ingenuamente uma delas bebe a água e a outra só não bebe porque o copo escorrega e quebra.
Agora imaginemos. Duas garotas na noite, numa casa dum homem solitário, num lugar deserto e num país estrangeiro. Aceitar ingerir qualquer coisa é muito arriscado, por mais bem aparentado que seja o estranho.
Uma delas adormece com o remédio na água e a outra comete mais erros. Vendo a amiga adormecer, em vez de se levantar, se afastar do homem e procurar alguma coisa pra usar como arma de auto defesa, permanece no sofá como que sem acreditar no ocorrido, então finalmente é espetada com uma agulha e adormece também.
Agora elas estão no porão, presas em macas com uma terceira vítima. Uma delas consegue desamarrar os cintos com os dentes e se solta e agora comete outros erros. Em vez de procurar um objeto e atacar o maníaco pelas costas com toda força que puder e com intenção de matar, tomada de medo prefere correr sem ter ideia de como sair da casa.
O patético é que ela se tranca num quarto que tem um telefone, mas em momento algum insinua usá-lo pra chamar a polícia. Uma vez que a casa é um labirinto pra ela, também não seria boa ideia correr a esmo, antes melhor era buscar algum objeto e tentar lutar contra o maniaco, já que ele andava desarmado e sozinho. Em vez disso apenas corria e terminou por cair na piscina. Aí não tem mais saída.
O homem a retira da piscina e ela volta a correr. Agora erra novamente. Em vez de ir à cozinha em busca de facas, se armar, vai direto ao porão buscar a amiga que está desacordada e sai arrastando ela pela casa até a saída, então é atingida pelo tranquilizante.
Ocorre a bizarra cirurgia e agora temos a "centopeia" criada com um japonês à frente e as duas garotas em seguida. O japonês parece ser o mais burro. Primeiro ele recebe comida e come tranquilamente, esquecendo que depois iria defecar isto na boca da que estava atrás. Poderia optar pela greve de fome, afinal, depois de se encontrar nesta condição bizarra, quem iria querer continuar vivendo?
Todos os três, aliás, uma vez vencidos e presos nesta cirurgia hedionda, deveriam ter desistido da vida, mas o desejo de viver parece tão grande que os faz preferir esta condição humilhante e dolorosa a se salvar pelo suicídio. Também poderiam esperar por ocasiões para pegar algum objeto cortante e cortarem as próprias gargantas ou quem sabe atacar de forma mortal o vilão.
Bem, então o japonês tem uma oportunidade de pegar o homem. Em vez de derrubá-lo e se lançar sobre ele, apenas lhe morde o pé e em outras ocasiões o japonês age novamente com rebeldia, o que apenas provoca castigos da parte do maníaco.
Quando ele tem a oportunidade de pegar um bisturi, enfia na perna do homem e lhe morde o pescoço, mas numa situação dessas deveria aproveitar pra ferir o maníaco desesperadamente, até ficar certo de que ele foi morto. Em vez disso ele o ataca uma e outra vez e sai rastejando sofregamente, levando as garotas junto. O homem acorda e volta a persegui-los.
Há ainda os erros da polícia. Ao visitarem a casa, igualmente aceitam beber água. Quando o maníaco derruba uma seringa eles ignoram o objeto, simplesmente acreditando na palavra dele de que é insulina pra diabetes. Ignoram uma série de indícios na casa do homem. Enfim, estes policiais são uns bobões.
Também quando o perseguem cometem erros óbvios. O policial entra num local sem passar a vista por todo o ambiente, então apenas vê seu colega morto e não vê o assassino num canto, sendo também alvejado.
Enfim, resta apenas a centopeia, sendo que o japonês corta o próprio pescoço, quando se vê sem saída e resolve se matar; uma das garotas também morre, pois já vinha sofrendo de infecção, e a do meio fica presa entre os dois, chorando.
Este foi na certa o filme de terror mais impressionante de 2009. Claro que, em termos de terror grotesco, não chega aos pés das produções mais sádicas e nauseantes, mas para o cinema convencional é perturbador, com uma ideia perturbadora, única e inesquecível.
O primeiro filme da Centopeia Humana tem um teor de drama psicológico bem marcante. Há uma cena em que as duas amigas, já na condição de centopeia, dão as mãos, como que tentando se consolar. Com as bocas costuradas, nem mesmo podem falar uma com a outra.
O segundo filme, lançado em 2011, deixa de lado essas "delicadezas" do drama. É puro terror gore. Desta vez optou-se por um filtro preto e branco que contribui para o clima sombrio. O vilão é um psicopata que ficou fascinado pelo primeiro filme e resolveu replicar o experimento, desta vez usando 12 pessoas. E então assistimos a um longo processo de tortura enquanto ele subjuga e costura as vítimas umas nas outras.
Pois é, temos aí a metalinguagem. Nesta história, o primeiro filme de fato foi apenas ficção, enquanto o segundo se passa no mundo real e o vilão é um pervertido que tentou imitar a arte na vida. Na Centopeia 3, porém, o segundo filme também é tratado como ficção, de modo que temos um combo de metalinguagens.
O terceiro filme veio em 2015 para concluir a trilogia. Desta vez o gênero adotado é bem mais satírico. Bill Boss, o diretor de uma prisão, é inspirado pelos dois filmes a adotar uma nova metodologia de disciplina dos presos desobedientes: transformá-los na centopeia humana.
Enquanto vai aplicando seu método, vemos o comportamento sádico e caricato do Bill Boss, que rende umas rizadas cheias de culpa. Sim, pois se não levarmos em conta o fato de que ali estão acontecendo vários tipos de tortura e abuso, a forma como a história é narrada é até engraçada.
É interessante esse diálogo metalinguístico que os filmes fazem entre si. O vilão do segundo filme foi inspirado ao assistir o primeiro e o vilão ou anti-herói do terceiro filme assistiu os outros dois. A escalação do mesmo elenco também contribui para essa brincadeira, pois Ashlynn Yennie faz parte da centopeia nos dois primeiros; Dieter Laser, que foi o médico maluco do primeiro longa, é o Bill Boss no terceiro; Laurence Harvey, que foi o vilão do segundo, aparece como um funcionário do Bill Boss no último. O próprio Tom Six aparece pessoalmente no terceiro filme visitando o Bill Boss.
É como se os três filmes formassem uma centopeia nessa trilogia, um alimentando o outro, o que é mais um sinal da genialidade dessa obra.
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