Interstellar segue a linha de filmes como Contato (1997), Event Horizon (1997)², 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), com um toque de Inception (2010). A civilização humana está morrendo lentamente, em crise de recursos, o planeta Terra já não é tão acolhedor e parece então que é o momento de partir. Num último esforço, a NASA consegue enviar uma nave em direção a um buraco de minhoca perto de Saturno, que supostamente levará para algum planeta habitável.
No caminho há um buraco negro e aí começa a parte Inception do filme, pois sabe-se que buracos negros são monstros gravitacionais e por isso conseguem afetar o espaço-tempo de modo que algumas horas na fronteira do buraco negro equivalem a décadas na Terra (teoria da relatividade). Essa trama com a diferença de tempo também acontece em Inception, onde em cada nível do sonho o tempo corre a uma velocidade diferente e as personagens vão envelhecendo dentro do sonho enquanto permanecem jovens no mundo consciente.
Tempo, aliás, é um tema que fascina os irmãos Nolan (criadores do filme, bem como de Inception) e está bastante presente em Interstellar, tanto que o objeto que une os dois protagonistas, pai e filha, é um relógio; e até a estação espacial se parece com um relógio, com doze módulos.
Quando enfim o piloto Cooper (Matthew McConaughey) entra no buraco negro, a coisa se torna mais surreal. Como no labirinto multidimensional desenhado por M. C. Escher (No quadro “Relativity”, 1953), Cooper se vê dentro de um ambiente construído por alguma civilização avançada, onde é possível acessar o espaço e o tempo infinitamente. Desta forma Cooper envia dados para sua filha na Terra que servirão para ela solucionar uma poderosa equação, nada menos que a “teoria de tudo”, a teoria que unifica a relatividade e a mecânica quântica e permitiria aos humanos avançarem em conhecimento e tecnologia num nível fantástico.
No fim das contas se descobre que foram os próprios humanos do futuro que guiaram os humanos do passado na viagem cósmica para promover o avanço da própria humanidade. É uma trama bem narcisista, convenhamos. Nada de aliens nos ajudando com sua boa vontade, nada de seres de outras dimensões, como acontece em 2001. Os humanos do futuro, num paradoxo temporal, ajudam os do passado de modo a construir o que eles se tornarão no futuro.
É interessante a presença dos robôs que auxiliam os astronautas, especialmente o TARS, que possui muito bom humor e uma lealdade que surpreende, lembrando o sarcástico Marvin, do Guia do Mochileiro das Galáxias. Estamos acostumados na ficção a ver robôs se rebelando. Mesmo em 2001, do Kubrick, o robô HAL 9000 com seu assustador olho vermelho é perigoso e imprevisível. Em Interstellar somente os humanos se mostram problemáticos, mentirosos, traidores... Os robôs não, são leais e legais sempre.
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Diferente do HAL 9000, o TARS é gente boa e um verdadeiro herói. |
Voltando ao começo da história: Vemos um mundo em crise. Uma praga incontrolável tem destruído as plantações, de modo que a fome parece ter dizimado boa parte da humanidade. Isso não é mostrado explicitamente, mas é subentendido, mesmo porque a crise é tal que até os exércitos e quaisquer pesquisas científicas deixaram de existir, pois o mundo agora precisa de agricultores mais que qualquer outra coisa.
Até a história humana foi reescrita. A viagem do homem à Lua é ensinada nas escolas como uma farsa, pois não seria útil estimular nas crianças o interesse por viagem espacial quando tudo o que se precisa é de gente trabalhando no campo com as lavouras que ainda não foram afetadas pela praga.
Para completar a tragédia humana, existe uma estranha poeira que está em toda parte, cobrindo as casas, as ruas, aparecendo esporadicamente em forma de tempestade. O que seria essa poeira, aliás? De onde vem? Eu sugiro aqui uma bizarra interpretação: Acho que essa poeira é uma referência aos humanos que morreram, pois morreram bilhões pela fome e as últimas guerras. Por não terem sido sepultados, estes corpos espalhados no planeta foram cremados e as suas cinzas integraram a atmosfera. Sinistro hein.
Os humanos sobreviventes então estavam a todo tempo respirando e tendo contato com nada menos que pó de gente! Mas isso é só devaneio da minha cabeça. Na verdade, Nolan disse que inspirou-se no documentário The Dust Bowl (2012) que relata uma destruidora tempestade de areia ocorrida nos Estados Unidos na década de 1930 que causou grandes prejuízos aos agricultores em plena crise da Grande Depressão. Neste caso, a poeira é apenas poeira mesmo.
Uma das cenas mais interessantes é quando visitam um planeta próximo ao buraco negro. Devido à forte gravidade do buraco negro, existe uma imensa tsunami que percorre o planeta. A princípio os astronautas pensaram até que fosse uma montanha. A música que toca nesse momento, de autoria de Hans Zimmer, se chama justamente Mountains e possui um som de tiques de relógio cada vez mais rápidos, não apenas para combinar com a tensão do momento, pois a tsunami se aproxima rápido, mas também representando o fato de que cada segundo que passam naquele planeta equivale a horas na Terra. Estão correndo contra o tempo de uma maneira inusitada, pois há dois tempos, o deles e o da Terra. É como as cenas de bomba-relógio, mas agora numa escala cósmica. Escrevi outro post específico sobre a música³.
Notas sobre a equipe e produção:
Inspirado pelo filme Contato (1997), de Carl Sagan, Steven Spielberg contratara Jonathan Nolan em 2007 para escrever o roteiro de Interstellar, mas acabou abandonando o projeto. Jonathan trabalhou no roteiro por quatro anos e até estudou a teoria da relatividade no Instituto de Tecnologia da Califórnia. Em 2012 ele convidou seu irmão, Christopher, para tocar o projeto e dirigir o filme. E assim nasceu essa obra em mais uma parceria dos dois irmãos Nolan.
O astrofísico Kip Thorne trabalhou como consultor a fim de fundamentar os aspectos científicos do filme, em busca da maior fidelidade possível. Interstellar não é pura ficção científica especulativa, antes procura explorar ideias que de fato têm base em teorias científicas modernas.
Nolan (o Christopher) e Nolan (o Jonathan) já têm uma tradição de trabalhar juntos, como os irmãos (irmãs) Wachowski (a dupla criadora de Matrix). Assim produziram Memento (2000), The Prestige (2006), The Dark Knight (2008) e The Dark Knight Rises (2012), sempre com Jonathan no roteiro e Christopher na direção.
Por outro lado, é o primeiro filme, desde 1998, em que Nolan não conta com Wally Pfister, que sempre tem sido seu diretor de fotografia, mas agora estava ocupado dirigindo Transcendence (2014). É a primeira vez, aliás, que Pfister trabalha como diretor geral em um filme. De toda forma, os efeitos visuais de Interstellar não deixam a desejar. Há cenas encantadoras no espaço, perfeitas para a imensa tela do cinema.
Também outra parceria tradicional é a do ator Michael Caine, que já esteve em vários filmes de Nolan como Batman Begins (2005), The Prestige (2006), Inception (2010), The Dark Knight (2008) e The Dark Knight Rises (2012). Anne Hathaway também esteve em The Dark Knight Rises, interpretando a Mulher Gato, de modo que Interstellar é seu segundo filme dirigido por Nolan.
Por fim, vale mencionar a participação de Hans Zimmer, também muito comum nos filmes de Nolan, sempre com uma maravilhosa trilha sonora. Boa parte das músicas possui o ritmo de uma batida por segundo, simulando, assim, o funcionamento de um relógio.
Matthew McConaughey, por sua vez, não é um ator típico de filmes de ficção científica, ainda mais espaciais. Foi escolhido justamente por parecer um homem comum, não um astronauta, mas um fazendeiro com sotaque sulista, escolhido para participar de experiências grandiosas no espaço.
Com 169 minutos de duração, Interstellar teve um custo de produção de 165 milhões de dólares, o que equivale a cerca de 976 mil dólares por minuto de filme! Com dois meses de lançamento ele arrecadou mais de 180 milhões nos Estados Unidos, pagando as contas, e lucrando mais 470 milhões no restante do mundo.
Curiosidades:
Para criar o cenário do milharal, Christopher Nolan mandou plantar de fato 500 acres de milho. Ao final das gravações o milho foi vendido, gerando algum dinheirinho.
A filha de Cooper se chama Murphy, uma clara alusão à Lei de Murphy, que na verdade não significa que tudo vai dar errado e sim que o que deve acontecer, acontecerá.
Na biblioteca da filha de Cooper, há muitos livros que de alguma forma fazem referência ao próprio filme, como Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez (1967), uma referência à passagem rápida do tempo devido à relatividade; The Big Nowhere, de James Ellroy (1988), relacionado, portanto, ao grande nada dentro do buraco negro, e Outlander, de Diana Gabaldon (1991), um romance que também se tornou uma série televisiva em 2014, sobre uma mulher que viaja no tempo.
Este é o primeiro filme desde Insomnia (2002) em que a palavra “fuck” é usada num filme de Nolan.
O buraco negro é apelidado de Gargantua, uma referência ao monstro criado por François Rabelais, que possui grande apetite.
Explicando alguns conceitos científicos:
A teoria da relatividade de Einstein mostrou que tempo e espaço são medidas relativas quando em grandes escalas, de modo que corpos com gravidade muito grande, como buracos negros, podem afetar o espaço-tempo. Por isso, enquanto se passavam apenas horas para os astronautas nas proximidades do buraco negro, na Terra passavam décadas.
A única forma realmente viável de viajar através de galáxias seria por meio dos buracos de minhoca. Primeiro porque a própria teoria da relatividade afirma que é impossível um corpo com massa viajar na velocidade da luz, pois isto iria exigir uma quantidade infinita de energia. Depois, mesmo que fosse possível, de nada adianta viajar à velocidade da luz se mesmo uma simples galáxia tem centenas de milhares de anos-luz de comprimento. Uma viagem entre galáxias levaria milênios. Os buracos de minhoca, por outro lado, são fendas que supostamente podem ser abertas no tecido do espaço-tempo (sim, o universo é feito de uma “coisa”, como uma trama, que é o próprio espaço) e assim seria possível ir de um ponto ao outro sem a necessidade de viajar no espaço em si. É um atalho cósmico.
É improvável que qualquer coisa sobreviva ao entrar em um buraco negro, pois a força gravitacional é tão gigantesca que despedaçaria até os átomos das naves e dos pilotos ou sondas ou qualquer coisa. Mas como nunca foi possível saber de fato como é lá dentro, não se pode descartar a possibilidade de ser um mundo com regras diferentes da nossa física.
A representação artística do buraco negro foi uma inovação tanto para o cinema quanto para a ciência. A descrição científica de Kip Thorne somada ao trabalho de artistas gráficos resultou naquela imagem de uma espécie de esfera com dois anéis cruzados e que se tornou a mais acurada imagem de um buraco negro até a publicação da chamada "foto do buraco negro" da galáxia M87, no começo de 2019.
Simbologia:
Não é raro o cinema empregar símbolos e referências à mitologia e religião em geral, pois são linguagens que interessam ao subconsciente e por isso combinam tanto com a arte e mais ainda a arte audiovisual do cinema. Em Inception, por exemplo, Nolan usou a mitologia grega na personagem Ariadne, que desenha labirintos, uma referência à Ariadne que guiou Perseu no labirinto do Minotauro.
Em Interstellar há alguma simbologia bíblica e gnóstica, como quando descem em um planeta dominado por um dilúvio de imensas tsunamis. O cientista que lidera a missão, Professor Brand, diz que enviou “doze bravas almas” ao espaço, como os doze apóstolos. O projeto inclusive tem o nome de um personagem bíblico, Lázaro, referência à salvação da humanidade que está morrendo.
O próprio Cooper que se sacrifica pela humanidade é, desta forma, um arquétipo do Messias, assim como o Dr. Mann é como um anjo caído que se rebela contra o projeto de salvação e tenta deter o Messias.
O filme é incrível, maaas...
Em termos de ficção espacial, Interstellar é um dos melhores longas, principalmente pelo fato de desenvolver a trama com base nas regras do buraco negro. É este fascinante objeto cósmico que dá as cartas, que determina o desafio a ser enfrentado pelos protagonistas, no caso, a distorção do tempo, o efeito bomba-relógio em uma escala cósmica.
Só que pra não ficar só na fria ficção científica, Nolan inseriu também um drama familiar, a relação do pai que abandonou a família para ir comprar cigarro salvar o planeta, mas, numa espécie de entrelaçamento quântico do amor (é, isso soa meio brega), ele consegue se comunicar com ela através do infinito espaço-tempo.
A cena da estrutura pentadimensional também confundiu muita gente. Como assim dentro do buraco negro existe uma biblioteca? Na verdade Cooper e TARS foram salvos do buraco negro pelos seres do futuro e colocados nessa estrutura artificial onde então ele pôde se comunicar com Murphy e transmitir os dados que TARS conseguiu coletar do buraco negro, tornando possível resolver a teoria de tudo.
Não era mais fácil estes seres do futuro simplesmente se comunicarem com os cientistas humanos, dando uma ajudinha menos enigmática? O coitado do Cooper teve que passar todos os dados para Murphy em código Morse através das batidas de um relógio!
Entendo que a intenção do Nolan era brincar com o conceito de ondas gravitacionais e mostrar como elas podem ser usadas como um mecanismo de comunicação que transcende as limitações do espaço-tempo, mas fez de uma maneira desnecessariamente complicada.
Notas: