Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

She-Hulk e a bolha da indústria do entretenimento

She-Hulk

Nos anos 90 aconteceu o marcante fenômeno da bolha especulativa na indústria dos quadrinhos. O sucesso da Marvel e DC era tanto que até transbordou no surgimento de uma nova editora, a Image, fundada por ex-artistas da Marvel e DC.

Naquela década, quadrinhos se tornaram o grande entretenimento nerd, o que inflacionou este mercado. As revistas aumentaram a tiragem, mas também o preço. Empolgados com as vendas, editores inventaram de lançar os mesmos títulos com várias capas variantes, visando os colecionadores. Também multiplicaram os títulos com minisséries, spin-offs e personagens desconhecidos ganhando revistas próprias. 

Como era de se esperar, uma hora essa bolha iria estourar e estourou feio, tanto que a Marvel, endividada e à beira da falência, teve até que vender os direitos de vários de seus personagens para grandes studios, o que teve um lado bom, pois foi a partir daí que os live actions engataram no cinema, com os X-Men produzidos pela Fox e o Homem-Aranha pela Sony, pavimentando o caminho para a era dos Vingadores.

Pois bem, agora estamos vivendo a bolha na indústria de filmes e séries. De um lado, teve a HBO/DC produzindo série a rodo com o arrowverso, e de outro, a Disney, na ânsia de encher seu catálogo do streaming, também passou a encomendar novas séries com personagens da Marvel, como WandaVision, Loki, Gavião Arqueiro, Moon Knight, Ms. Marvel e She-Hulk.

Foi na She-Hulk que finalmente um problema dessa produção em massa começou a se tornar conspícuo. Ainda antes do lançamento, a personagem já despertou comentários negativos nas redes sociais devido ao seu CGI ruim de "massinha", um CGI mal acabado, tosco, algo que não era de se esperar da Marvel que passou uma década nos impressionando no cinema com filmes cheios de ótimo CGI.

O problema estético dessa série tem uma explicação simples: os studios de design contratados para produzir os conteúdos de CGI da Marvel estão atolados de serviço e com pouco tempo para entrega. É muita série, muito filme, mesmo que eles recebam malas cheias de dinheiro, não é assim que a banda toca. Animação 3D requer tempo. Vide o Avatar 2, que está em produção há pelo menos uma década justamente porque James Cameron faz questão de entregar um CGI polido e caprichado.

Mas o problema não para por aí. Aparentemente, há algo bem estranho acontecendo no orçamento das séries ultimamente, especialmente estas relacionadas a fantasia e super-heróis. Como podem os episódios serem tão caros e ainda assim entregar uma qualidade tão sofrível?

Vamos pegar um exemplo clássico de série de sucesso e um orçamento gordo muito bem investido: Game of Thrones. Lá nos idos de 2011, cada episódio da série custava cerca de 6 milhões de dólares, investidos em um gigantesco elenco, locação e construção de cenários, muito figurino, efeitos práticos, CGI, equipes talentosas em todas as áreas. A melhor qualidade que uma série poderia ter. Seis milhões muito bem investidos.

Dez anos depois, lá em 2019, cada episódio estava custando cerca de 15 milhões. Levando em conta a inflação e o aumento dos custos no CGI dos dragões, foi um orçamento bem apropriado. Quem não lembra das batalhas épicas que aconteciam em momentos climáticos de cada temporada? Aquilo era dinheiro bem gasto.

Também em 2019, a Netflix começou a produzir The Witcher¹, claramente uma tentativa de ter seu próprio Game of Thones, sua fantasia medieval para encantar o público. Assim como GoT, The Witcher precisava de muito investimento em cenário, figurino, CGI para os monstros e um razoável orçamento para o elenco, particularmente o Henry Cavill. O custo de cada episódio de The Witcher ficou em torno de 10 milhões. Um valor aceitável.

Aí veio Sandman². Cada episódio da primeira temporada de Sandman custou 15 milhões, ou seja, um orçamento nível Game of Thrones, mas o material que foi entregue estava muito aquém da qualidade de um GoT ou mesmo de The Witcher. 

Sandman parecia uma série genérica da CW (me desculpe a CW, mas suas séries viraram sinônimo de CGI barato), com um elenco totalmente desconhecido e pouca ambientação. Os cenários do reino dos sonhos e do inferno, que aparecem em alguns momentos, são paupérrimos. Isto nos leva a questionar: onde diabos eles gastaram estes 15 milhões por episódio?

Temos outro exemplo ainda mais bizarro. A série The Rings of Power³ prometia ser uma grandiosa adaptação épica baseada no universo de Tolkien. O que de cara impressionou e criou expectativas foi a estimativa do orçamento. Só pelos direitos da franquia, a Amazon pagou 250 milhões e cada episódio da primeira temporada custou cerca de 60 milhões! 60 fucking milhões!

Um episódio de The Rings of Power equivale a quatro episódios de The Witcher ou três de House of the Dragon, sua grande concorrente e que claramente parece ter uma produção bem mais profissional e tem CGI de dragões em praticamente todo episódio.

O que espanta em The Rings of Power é esta disparidade entre orçamento e qualidade. A série tem um CGI razoável, mas convenhamos, ela como um todo não parece ser uma superprodução. Não há nada nos cenários, no elenco ou nos figurinos que pareça digno dos 60 milhões semanais.

O mesmo acontece com a She-Hulk. Trata-se de um programa de comédia e que claramente é bem menos ambiciosa em termos de qualidade, mas mesmo assim esta série tosca está custando 25 milhões por episódio. She-Hulk é mais cara que House of Dragon e The Witcher juntos!

Como é possível isso? O que está acontecendo na produção destas séries que está torrando dinheiro sem conseguir entregar uma qualidade equivalente ao custo? É como se fosse uma bolha financeira prestes a estourar. A incompetência ou o olho gordo dos profissionais envolvidos nas finanças da série está fazendo a Disney, a Netflix e a Amazon sangrarem fortunas, o que provavelmente vai chamar atenção dos investidores em algum momento.

De fato, esta bolha já está chamando atenção, o que se nota nas atitudes do David Zaslav assim que assumiu a HBO, fazendo questão de cortar projetos e estabelecer o foco no "menos é mais", em produzir bom conteúdo, com dinheiro bem gasto, em vez de abrir as torneiras do caixa para fazer um monte de séries e filmes chinfrim.

Eu diria, aliás, que a bolha não é apenas financeira. Está cada vez mais claro que existe uma bolha ideológica contaminando a produção destes materiais. A She-Hulk se tornou um notável exemplo disso, uma vez que a série não esconde sua intenção em fazer uma espécie de "humor misândrico" e recheado de detalhes woke.

O resultado é que, em vez de ser uma série para os chamados normies, para o público em geral que quer apenas sentar diante da tela e ter uns momentos de entretenimento, She-Hulk parece visar um público bem específico, bem nichado, de militantes woke, o que representa uma pequena parcela da população nerd. É a minoria barulhenta, os chamados "lacradores de Twitter".

A indústria de entretenimento sempre esteve impregnada de ativistas políticos e desde os anos 60 ela foi se tornando majoritariamente ocupada por roteiristas, diretores e atores com viés mais para o lado dos democratas ou do progressismo, mas também tem uma galera mais conservadora e/ou republicana. 

Só que geralmente sempre houve uma certa moderação na forma como os filmes e séries tocam em assuntos com viés político, pelo óbvio motivo de que, antes de tudo, a indústria de entretenimento deve visar aquilo que é sua principal missão: entreter e fazer dinheiro com isso.

Óbvio que há espaço para passar alguma mensagem em um filme, para ir além do mero escapismo da ficção, mas o escapismo é importante e é ele que mantém a indústria funcionando, que gera bilheteria, que dá o retorno financeiro necessário para que novos filmes e séries continuem sendo produzidos.

Por algum motivo, parece que algumas produções têm extrapolado o limite da moderação, resultando em produtos focados demais em militância política ou ideológica, inclusive usando a militância como uma forma de autodefesa, pois "se você não gostou da She-Hulk, é porque você é machista e não simpatiza com a mensagem feminista dela".

Esta é a armadilha oferecida ao público. Entrega-se um conteúdo com baixa qualidade, mas permeado de mensagem ideológica, de modo que a ideologia é usada como blindagem contra críticas à qualidade. É uma estratégia muito estranha, porém, pois isto não vai ajudar em nada a aumentar a popularidade e a aprovação de uma série. 

Enfim, há uma bolha nesta indústria, uma bolha financeira e curiosamente também ideológica. A boa notícia é que bolhas estouram e quando isto acontece o mercado se renova e aprende com seus erros, se renovando.

Notas:





Adiós Google Stadia

Google Stadia

A Google não tem medo de experimentar, afinal ela pode se dar a este luxo, uma vez que tem tantas balas na agulha (bilhões de dólares para investir). A empresa já é conhecida por seu cemitério de projetos descontinuados, como o Orkut, Picasa, Google+, Google Wave, Google Glass, etc.

Pois eis que agora mais um experimento foi sepultado, o Stadia¹. Pois é. O Stadia era um serviço promissor, visionário, baseado na estimativa de que o futuro do software como serviço é a completa integração com a nuvem, ou seja, o processamento dos serviços deve rodar nos servidores super potentes da empresa e não mais em seu PC ou mobile.

A ideia é fantástica e abre inúmeras possibilidades. A promessa dos jogos na nuvem é que você não vai mais precisar de um PC ou console caríssimo e super potente para rodas jogos pesados. Tudo o que você precisa fazer é assinar o serviço de streaming. É a netflixzação dos jogos².

Não só a Google entrou nessa, mas também a Amazon com o Luna³, a Nvidia com o GeForce Now e a Microsoft que já integrou o serviço de nuvem na assinatura do Game Pass.

O serviço de streaming de jogos veio pra ficar e provavelmente a Microsoft seguirá liderando nisto, mas não foi dessa vez que a Google conseguiu emplacar. Convenhamos, o Stadia nunca teve muita confiança do público gamer em geral. Teve gente que abraçou a hype inicial (confesso que eu também), mas com o tempo ficou claro que o negócio não engatou, de modo que a notícia do fim não foi uma grande surpresa.

Notas:




Palavras-chave:

Há pessoas ali

Esta noite, olhando para o céu, vi um pontinho luminoso em movimento. Um satélite? Uma estrela cadente? Pela forma como pisca, ficou claro que era um avião, o que me fez pensar: "Há pessoas ali".

A natureza nos destinou a isso, a sermos eternos desbravadores. Engenhosos, fomos da terra ao céu nestes pássaros de metal. Algum dia olharemos para a Lua, para Marte, e vamos nos maravilhar com o fato de que haverá humanos caminhando em seu solo extraterreno.

Ainda vai demorar muito, mas um dia, ao olhar para um pontinho luminoso no céu, não um avião, não um planeta, mas uma estrela, um mundo além do nosso Sol, teremos o deslumbre de dizer: "Há pessoas ali".

(28,09,2022)

Sobre Bostil, otimismo e pessimismo

Está na moda estes tempos uma expressão entre os xóvens: "intankável o Bostil". Uma explicação para as gerações futuras de humanos ou robôs, caso esta gíria se torne obsoleta. Intankável é um jargão do mundo dos games. Um personagem tank é aquele que consegue aguentar muito dano, é o escudo do grupo, logo, tankar significa aguentar, suportar. Dizer que algo é intankável é tipo "isso é demais pra mim".

Quanto a Bostil, é uma palavra que revela o conhecido complexo de vira-latas do brasileiro. É uma visão pessimista sobre o país, enxergando o seu pior lado.

O pessimismo consiste em optar por enxergar apenas, ou principalmente, os aspectos ruins do mundo, enquanto o otimismo interessa-se em focar nos aspectos bons. Se olharmos o mundo de uma forma mais ampla, vendo a floresta em vez da árvore, naturalmente vamos perceber que existem aspectos tanto positivos quanto negativos, há coisas boas e ruins, agradáveis e desagradáveis. O mundo não é nem um paraíso nem um inferno. É um misto de elementos paradisíacos e infernais.

Logo, otimismo ou pessimismo dizem mais a respeito da pessoa do que do mundo. A pessoa optou concentrar sua visão neste ou naquele aspecto do mundo. Ambos estão corretos, tanto o otimista quanto o pessimista, porém, parcialmente corretos.

O problema da hiper rotulação

Shark pronouns

Recentemente viralizaram uns vídeos de TikTok em que uma moça ensina sobre uns pronomes novos e bem insólitos, como "shark". Isso mesmo, segundo ela, há pessoas que referem a si mesmas usando o pronome "tubarão".

Sabemos que tudo começou com o movimento pela normalização do chamado pronome neutro¹. Por algum motivo, pessoas lá na gringa não se sentiam confortáveis com os pronomes "he" ou "she" e passaram a adotar o "they" ou mesmo o "it". Era de se esperar que a coisa não parasse por aí.

Uma vez que esta caixa de Pandora foi aberta, estava criado o precedente para que se reinventasse ad infinitum o acervo de pronomes, de modo que a lista vem aumentando ao gosto da criatividade das pessoas. Já existem sites dedicados a catalogar estes neologismos que são chamados de "neopronomes".

The trouble with tribbles

Este fenômeno dos pronomes, que estão se multiplicando como os tribbles de Star Trek, revela um problema que tem se tornado comum hoje em dia: a hiper rotulação. 

Em vez de entender que cada ser humano é uma pessoa complexa, um indivíduo idiossincrático, marcado por contradições, por combinações de aspectos variados, a moda da rotulação busca simplificar o complexo atribuindo algum tipo de título, nomenclatura, uma classificação que caiba em uma palavra, como os tais neopronomes. Daí, por exemplo, achar que uma pessoa pode ser resumida ao fato dela gostar de tubarões e, portanto, ser identificada pelo pronome "shark".

Supostamente, o objetivo da moça do TikTok, que fica fazendo vááários vídeos dicionarizando os novos pronomes, é conscientizar sobre tolerância e aceitação, mas é aí que está o problema. Esta hiper rotulação dificulta o processo de tolerância, porque ela impõe sobre a sociedade uma carga muito volumosa de informação e informação que rapidamente fica desatualizada.

Para você aceitar as outras pessoas, será preciso se manter constantemente a par da lista de pronomes que vai aumentando dia a dia, do contrário corre o risco de cometer a gafe de errar um pronome de alguém que, sem você saber, de repente atende pelo pronome "wolf" ou "xey" ou "oak"...

Isto cria uma armadilha que apenas contribui para prejudicar a interação social. A pessoa que resolve adotar um neopronome passa a ficar psicologicamente armada contra qualquer gafe que alguém cometer, interpretando como uma ofensa, e as pessoas que não conseguem acompanhar o ritmo de multiplicação destes pronomes vão simplesmente desistir do esforço e até evitar o contato com os "neopronomistas" por receio de serem julgadas como preconceituosas. Resultado: a galera dos neopronomes vai se isolando em uma bolha e o propósito inicial de promover tolerância e aceitação vira um tiro pela culatra.

Label jars not people

Anyway, por enquanto, este é um problema lá dos Estados Unidos, onde se formam comunidades para cultivar estas questões nas redes sociais e multiplicar os tribbles, criando um verdadeiro trouble. Mesmo lá, isto fica bem restrito a um determinado nicho, como uma tribo urbana, como novos góticos ou emos, porém ainda mais raros. 

Poucas são as pessoas que adotam estes neologismos e, entre estas poucas, algumas só usam na forma escrita, na internet, pois no dia a dia, na vida offline, acabam percebendo que tem palavras que são impossíveis de usar em uma conversação.

Nossos antepassados tinham uma forma universal de lidar com as diferenças, que era simplesmente ensinando o valor do respeito e de "fazer o bem sem olhar a quem" ou "não faça aos outros o que não queres que te façam". 

Não é separando as pessoas em subclasses, em uma infinidade de rótulos, que vamos promover o respeito mútuo. Ao contrário, é importante que se promova a noção de unidade da raça humana, de que todos são parte da mesma aldeia global, a despeito de suas peculiaridades.

Na promoção do respeito, menos é mais. Vale o princípio que atende pelo acrônimo KISS: Keep It Simple, Stupid. 

Notas:


A geração replicante

Pink Floyd: The Wall (1982)

É atribuída a Sócrates a seguinte crítica aos jovens de seu tempo: "Os jovens de hoje gostam do luxo. São mal comportados, desprezam a autoridade. Não têm respeito pelos mais velhos, passam o tempo a falar em vez de trabalhar. Não se levantam quando um adulto chega. Contradizem os pais, apresentam-se em sociedade com enfeites estranhos. Apressam-se a ir para a mesa e comem os acepipes, cruzam as pernas e tiranizam os seus mestres".

Esta fala sempre nos soa como atual por um motivo simples: é uma tendência natural da juventude questionar e rebelar-se contra a ordem estabelecida. Jovens são rebeldes por natureza porque eles são motivados pela mudança, pela transformação. Em toda geração os mais velhos se queixam da rebeldia dos jovens e estes jovens, quando se tornarem velhos, vão igualmente se queixar das futuras gerações.

Todavia, estamos experimentando uma era singular em que os mais velhos demonstram mais disposição para a desobediência do que as novas gerações e parece que o motivo disso é a internet e as redes sociais, que, de uma maneira em parte espontânea e em parte projetada, têm moldado a mentalidade das crianças para o excesso de submissão.

Já é sabido que nas redes sociais a vida acontece na base do estímulo e recompensa em um nível bem mais intenso do que nas relações offline. A internet é como um caça níqueis que vai te recompensando a cada curtida, a cada seguidor, e as pessoas desenvolvem esse vício em serotonina que influencia o seu comportamento.

Ora, nessa busca constante por aprovação, por curtidas e atenção, os jovens são desde cedo treinados a performar um comportamento que evite desagradar os outros. Evitam desobedecer as inúmeras regrinhas tácitas de etiqueta virtual para não serem cancelados. Temem levar um ban, um unfollow ou receber menos likes do que receberiam se fossem mais certinhos e seguissem os protocolos do crédito social.

Black Mirror (2011-)

O já clássico seriado Black Mirror (2011-)¹ ilustrou muito bem isto no episódio Nosedive, onde as pessoas ficam forçando sorrisos amarelos e vivem pisando em ovos, temendo cometer qualquer deslize de etiqueta que leve a perder umas estrelinhas. Foram condicionadas pelas recompensas e punições das estrelinhas a buscar o bom comportamento e evitar qualquer demonstração de rebeldia.

Eu compararia estas novas gerações, mais pacatas e predispostas à submissão, aos replicantes da versão aprimorada em Blade Runner 2049 (2017)². Eles são incapazes de questionar ou desobedecer ordens. O personagem do Ryan Gosling, o Joe, tem essa atitude pacata e um tanto estoica. Não que ele não tenha senso crítico. Sua expressão niilista revela certo nojo e aversão a algumas coisas que ele é obrigado a fazer, mas mesmo assim ele obedece e nunca expressa qualquer questionamento.

Ryan Gosling; Blade Runner 2049 (2017)

O Joe é um verdadeiro contraste com o Roy Batty, do filme de 1982, que era rebelde, agressivo e questionador. Também o Deckard, interpretado pelo Harrison Ford, tinha este espírito meio punk e individualista.

Enfim, parece que esta nova sociedade que se molda sob o zeitgeist da internet é bem ao estilo do profético Brave New World, de Huxley, um mundo de pessoas mansas, de pacatos cidadãos. Convenhamos, isto tem lá seus benefícios que toda a sociedade desfruta, mas é também alarmante.

Só que nós conhecemos bem a natureza humana. Mesmo estes pacatos replicantes têm um ponto de ruptura se forem forçados além dos limites. Em algum lugar dentro destas almas mansas, está adormecida a capacidade de reagir. 

Notas:



Palavras-chave:


A batalha dos gigantes do entretenimento

100 biggest companies

Impérios vão e vêm e também mudam de forma. Há pelo menos cinco mil anos em nossa história conhecida, o mundo tem experimentado um ciclo perpétuo de impérios nascendo, morrendo, mudando de mãos ou mudando de forma.

Além do império de nações, como o antigo Egito, Babilônia, Grécia, Pérsia, Roma e mais recentemente os Estados Unidos, o mundo também conheceu impérios supranacionais, como o califado islâmico e a igreja católica na Idade Média.

Eis que agora estamos entrando na era de um novo tipo de império supranacional: as mega empresas. Este tema já é bem famoso na ficção cyberpunk: com a evolução do capitalismo, empresas grandes vão absorvendo as menores, de modo que chega a um ponto em que os negócios no mundo inteiro estão concentrados nas mãos de umas poucas empresas, ou melhor, conglomerados que agrupam várias ramificações.

O escritor Cixin Liu¹, em seu conto "O último capitalista", chegou a imaginar que este processo de aquisições chegaria a seu estágio final quando em algum momento um único homem se tornasse literalmente dono de tudo, dono de todas as empresas, todas as terras, mesmo do planeta. Este seria o último capitalista.

É uma visão assustadora, mas tenho minhas dúvidas se a civilização realmente chegaria a tal ponto, porque se tem algo que a história nos mostra é que mesmo os mais formidáveis impérios se degradam. No tectonismo da história, o terreno está sempre se modificando. O que hoje está no topo, amanhã pode ser absorvido e se torna uma fina camada, substituída por algo novo. 

Beauty companies

Food companies

O fato é que hoje nós já nos deparamos com verdadeiros impérios empresariais. Quem nunca viu aqueles diagramas mostrando um pequeno número de empresas que são donas de diversas marcas e subsidiárias? 

Diferente dos antigos impérios que venciam seus adversários pela guerra, os impérios empresariais vencem pela concorrência ou pela curiosa estratégia da aquisição. Quando o Instagram surgiu, rapidamente se tornou um concorrente que ameaçava o Facebook. O que o Facebook fez? Comprou o Instagram.

No mundo do entretenimento, quem melhor ilustra esta era dos gigantes e sua fagocitose corporativa é a Disney. Para manter sua relevância na indústria, a Disney foi além do seu próprio studio de desenhos animados e passou a adquirir outros studios, canais, franquias. 

Assim comprou a nerdíssima franquia Star Wars, os studios Pixar com suas excelentes animações, comprou a Marvel e conseguiu o feito de criar um complexo universo cinematográfico de filmes e séries compartilhadas como nunca se viu antes. Mais recentemente, comprou nada menos que o grupo Fox.

Disney empire

Mas mesmo entre os gigantes existe concorrência. Como no filme O Hobbit (2012), em que vemos enormes gigantes de pedra lutando entre si, assim os colossos da indústria do entretenimento disputam a atenção do público. Mas qual gigante estaria à altura para concorrer com o ciclópico conglomerado da Disney? 

Por décadas a Warner Bros. foi uma concorrente natural da Disney. Até nas animações, enquanto a  Disney tinha Mickey e Pato Donald, a Warner tinha Pernalonga e Patolino. No cinema, houve um embate de grandes franquias de fantasia, com a Warner tendo Harry Potter como seu campeão, enquanto a Disney reagiu com Piratas do Caribe.

Estes dois rivais se assemelham até no fato de terem adquirido as duas maiores empresas de quadrinhos do mundo. A Disney adquiriu a Marvel, enquanto a Warner ficou com a DC. Nesta batalha, porém, a Disney saiu na frente no cinema, com seu bilionário MCU.

A Disney é a Disney desde seu surgimento em 1923, já a Warner passou por várias aquisições, fusões e reformulações.

A Warner Bros. Pictures surgiu também em 1923 (de fato, ela veio alguns meses antes da Disney). Nas décadas de 70 e 80 chegou a fazer parceria com a Columbia Pictures (que hoje pertence à Sony) e na década de 90 se tornou parte de um conglomerado ainda maior de mídia, a Time Warner. Nos anos 2000, a Time Warner se fundiu com a então gigante da internet America Online.

Em 2018, foi a vez da Time Warner ser canibalizada por outro peixe maior, a gigante de telecomunicações AT&T. Enquanto isto, a concorrente da AT&T, a Comcast, havia canibalizado a NBCUniversal, da qual faz parte a Universal Studios, uma empresa que também sempre aspirou a concorrer com a Disney, tanto que ela tem seu próprio mundo de parques temáticos que rivalizam com a Disneylândia.

Em 2022, a Warner saiu das mãos da AT&T para se fundir à Discovery, assim surgindo a Warner Bros. Discovery. Mas calma que não para por aí.

Agora já se fala em uma iniciativa da Comcast para adquirir a Warner Bros. Discovery, o que pode acontecer a partir de 2024. Caso isto aconteça, haveria uma fusão com a Universal Studios, formando este Cérbero composto pela Warner, Discovery e Universal.

Não é certo ainda se esta fusão acontecerá. De toda forma, parece claro que a Warner seguirá como um grande rival da Disney.

Notas:


Palavras-chave:


O Tempo

O tempo é a única moeda.
Ao menos, por enquanto.

Tudo o que fazemos custa tempo
e tudo podemos ter em abundância,
menos o tempo.

Talvez um dia superemos o tempo,
quando então não haverá mais dia
e a humanidade será uma lembrança distante.

Não esperem superar o tempo tão cedo.
Isto está reservado aos deuses.
Mas podemos recorrer a alguns macetes.

Feliz é aquele que é amigo do tempo,
que nele paira como a folha vai no vento.

(19,09,2022)

Sobre o verbo coringar

Joaquin Phoenix; Joker (2019)

Você sabe que um autor ou obra se tornaram muito relevantes e influentes na cultura popular quando eles ganham um jargão próprio, por exemplo, se tornando um verbo ou adjetivo. Assim temos palavras como "shakespeariano", "orwelliano" e "kafkiano" que já são até verbetes em dicionários, tal é o reconhecimento da influência destes autores.

Estes dias surgiu uma palavra nova que virou meme, se tornou parte da conversação comum das pessoas, especialmente aquelas mais antenadas nas novas gírias da internet. Falo do verbo "coringar".

O Coringa, o Joker, é um personagem tão conhecido quanto o próprio Batman e definitivamente está consagrado na cultura pop mundial. Ele é uma verdadeira egrégora¹, um personagem moldado pela consciência coletiva, bem semelhante a versões ainda mais antigas como os deuses Loki, Baco, até mesmo o Diabo.

Curiosamente, o Coringa nunca teve um filme solo em toda sua existência de 80 anos, até que, em 2019, veio o filme Joker. Este filme foi uma cartada de mestre.

Foi bem interessante enxergarmos o Coringa como o protagonista de um filme, não como um vilão que serve apenas para antagonizar o Batman (como foi o caso do formidável Coringa do Heath Ledger). A versão do Joaquin Phoenix foi muito humanizada, tornando-se uma pessoa frágil, ainda que mantendo seu poder quase sobrenatural de semear o caos².

A impressão que este Coringa causou foi marcante. Este filme conseguiu ilustrar o mesmo conceito há tempos abordado pelo Alan Moore na Piada Mortal (1988): qualquer pessoa pode quebrar, pirar e chutar o balde do bom comportamento e das convenções sociais, às vezes basta ter um dia ruim (ideia também presente no filme Um Dia de Fúria, de 1993).

Assim surgiu o verbo "coringar". Tem sido usado para se referir a momentos em que a pessoa está estressada ou é submetida a condições que forçam demais seus limites e ela corre o risco de surtar, de mandar um foda-se para a normalidade, abraçar o caos, se revoltar contra a ordem das coisas ou tomar atitudes inconsequentes. "Estou a ponto de coringar". "Olha, se continuarem me pressionando assim eu juro que vou coringar". "Quer saber de uma coisa? Cansei de ser certinho. Agora vou coringar".

Notas:



O vício da opinião

Opiniões são como vícios. 
É bom que você tenha os tais, 
mas escolha bem quais. 
Escolha aquilo que não te destrua 
nem destrua os demais.

(11,09,2022)

Habemus Black Adam

Black Adam (2022)

A DC está deixando a gente sonhar. Saiu um novo trailer de Black Adam e ele promete entregar o que se espera de um bom filme de super-heróis: um bom CGI, muita ação e fan service.

É isso. Essa é a fórmula. Não precisa de mais nada. Até existe espaço para um toque autoral do diretor, como acontece nos filmes do Zack Snyder, James Gunn, Taika Waititi (errr este aí exagerou no toque autoral e acabou estragando o Thor), mas um bom filme do gênero só precisa fazer o arroz com feijão para oferecer entretenimento de qualidade.

À primeira vista, Black Adam parece disposto a entregar isto, o bom e velho básico. O CGI está bonito, há muita ação acontecendo, o The Rock é um legítimo brucutu de ação e teremos a Sociedade da Justiça na tela.

Pierce Brosnan; Black Adam (2022)

Dr. Fate; Black Adam (2022)

Além do próprio Black Adam, um personagem que chamou bastante atenção foi o Doctor Fate, encarnado pelo Pierce Brosnan, o eterno 007. Olha, o véio soube envelhecer. Com seus 69 anos, ele é a definição de "coroa enxuto". O visual do Doctor Fate com uniforme e capacete está fidelíssimo aos quadrinhos e eu diria até que ele tem potencial para um ou mais filmes solo como spin-off.

O The Rock já expressou o desejo de ver este filme se ramificar em spin-offs, como um verdadeiro therockverso. Seu mote durante a divulgação do longa é: "A hierarquia de poder do DCEU está prestes a mudar". 

Atom Smasher; Black Adam (2022)

É uma frase enigmática. Coincidentemente, a hierarquia da DC realmente está mudando com a chegada do David Zaslav, mas a intenção do The Rock parece ter sido outra. Talvez ele queira dizer que Adão Negro será o personagem mais poderoso do DCU, mais até que o Superman. Talvez ele esteja até se referindo à construção de um novo universo a partir deste filme e seus spin-offs. Talvez seja só uma frase de efeito.

Enfim, o The Rock é conhecido por seu carisma e ele atrai público, um público que vai ao cinema esperando o puro entretenimento com ação e uma dose moderada de humor. O sucesso estrondoso de Top Gun 2 mostra que o público está faminto por este tipo de conteúdo. Por isso, não duvido que Black Adam faça um bilhão e, se fizer, este filme realmente será o ponto de partida para o novo DCU.

Dwayne Johnson; Black Adam (2022)

Palavras-chave:

Sobre restrição de conteúdo nas mídias

Estes dias eu estava revendo Demolition Man (1993)¹, uma "distopia pacifista" que mostra um mundo extremamente regulado e politicamente correto, e relembrei algumas mudanças em nossa própria realidade.

É de se esperar que a mídia, com o tempo, se torne mais cautelosa e restrita em seu conteúdo, não apenas por causa do acúmulo de leis (muitas delas absurdas, convenhamos), mas pela pressão da própria sociedade, das pessoas que reagem com boicotes e processos ao que não gostam.


Um exemplo curioso que me recordo é um comercial da Brahma que foi ao ar em 2003 no horário nobre da TV, chamado Sol Louco. Vemos as pessoas na praia, como era costume na maioria dos comerciais de cerveja, e um Sol de CGI ficava pulando no céu e cantando aos gritos "Tava quente pra caraca, mas eu me refresquei".

Era um comercial bem chamativo e bizarro, mas o mais bizarro foi a reação de algumas pessoas moralistas que protestaram contra o uso da palavra "caraca", considerando-a um palavrão. Engraçado que "caraca" já é a suavização de um verdadeiro palavrão, o "caralho". Lembro que a Xuxa, em seu programa infantil, costumava falar "caraca" e se tornou mais uma interjeição do que um palavrão. Mesmo assim, ainda tinha gente que implicava com a palavra. 

A resposta da empresa de cerveja foi interessante. O comercial voltou reformulado, agora com o Sol cantando "tava quente pra cacilda" e com uma voz meio Bob Esponja, claramente debochando da censura que recebeu.


A TV já foi bem mais livre em termos de palavrões. Uma das pérolas da publicidade brasileira é um comercial de raspadinhas com o humorista Costinha falando "se fudeu". E também havia nos anos 80-90 mais semvergonhice na TV aberta. Os programas de auditório tinham dançarinas com bundas à mostra e quem nunca ouviu falar na "banheira do Gugu" que ia ao ar em pleno Domingo à tarde.

Com o tempo este tipo de conteúdo foi se tornando mais e mais restrito e até mesmo se tornou proibida a veiculação de comerciais infantis. O argumento era que a lei deveria proteger as crianças, um excesso de protecionismo do estado, querendo impor o que alega ser mais saudável. Acontece que as crianças adoravam os comerciais de brinquedos, bonecas, carrinhos, etc. 

Este banimento da publicidade infantil também acabou matando os programas infantis, privando as crianças do entretenimento dos desenhos animados. E foi assim que morreu a TV Globinho e no lugar entraram programas insossos para donas de casa.

Hoje a TV aberta é extremamente limpinha. Até o Faustão, que antigamente costumava falar muito "pentelho" e "orra, meu", dando uma amenizada no "porra", ao longo dos anos foi ficando mais e mais contido.

Então veio a era da internet e no começo estava tudo liberado. Tenho umas lembranças de coisas pesadas que por acaso encontrei quando comecei a usar o Youtube há mais de uma década. Lembro de ter visto uma cena de empalamento. Isso mesmo. Era, se não me engano, um estuprador na Índia que foi capturado pelos moradores locais, amarrado e atravessado com uma enorme lança, ficando exposto ao público enquanto agonizava.

Também no Youtube dos velhos tempos era comum haver vídeos denunciando violência animal. Lembro de um que mostrava um certo país onde se comercializava pele de cachorros. O feirante, da maneira mais grotesca possível, batia a cabeça do animal no chão para deixá-lo grogue, então fazia uns cortes e removia todo o couro como se puxasse fora uma roupa, deixando o bicho ainda vivo a agonizar.

Pois é, o Youtube não era para corações frágeis. Hoje em dia este tipo de conteúdo só existe na chamada deep web ou em sites mais obscuros. Não vou dizer que foi errado o site estabelecer uma política banindo material com violência explícita, afinal o Youtube é a nova TV e gente de todo tipo entra no site, inclusive crianças. 

Só que as regulações foram aumentando e aumentando e, assim como deve haver um limite para a liberdade (ora, se não houvesse, o Youtube poderia ficar cheio de conteúdo explicitamente criminoso e grotesco), também deve haver um limite para a restrição. Vejo que hoje em dia o Youtube já extrapolou este limite para a restrição.

No começo, os vídeos eram removidos da plataforma quando alguma pessoa denunciava. O vídeo então era analisado por uma pessoa em algum escritório da empresa. Aí vieram os algoritmos cada vez mais inteligentes e hoje a coisa é quase toda automatizada. O algoritmo reconhece palavras e imagens, ele pode identificar um corpo nu, uma música com direitos autorais e até uma lista de palavras proibidas.

Acontece que este algoritmo ainda não é tão esperto a ponto de entender contextos. Os youtubers agora vivem pisando em ovos quando fazem seus vídeos, eles mesmos censurando palavrões e evitando palavras que possivelmente podem chamar atenção do algoritmo censor. 

Há casos em que a simples menção de palavras como "guerra" e "tortura" já bastam para levar o algoritmo a reduzir a visibilidade do vídeo, mesmo que o cara esteja apenas fazendo um vídeo educativo sobre a história da Segunda Guerra.

Em 2020 a coisa ficou ainda mais maluca, pois as redes sociais empreenderam uma campanha intensa de controle da informação referente à pandemia. Qualquer menção ao assunto despertava o algoritmo que, ou inseria uma tarja informativa na postagem, ou a removia impiedosamente e até causava o banimento de quem postou, sob a alegação de estar promovendo "fake news". Como em muitos casos isto era um processo automático do algoritmo, houve vários banimentos injustos que aconteciam pela má compreensão do contexto das postagens.

Também há os curiosos casos de pessoas com tourette, uma síndrome que faz com que a pessoa não tenha controle sobre tiques, movimentos do corpo e até palavras. As pessoas com tourette são famosas por soltarem palavrões aleatórios e acidentalmente proferir palavras que são um tabu na sociedade, como a famosa "n word". Assim, já houve streamers com tourette que foram banidos por causa de seus xingamentos involuntários, a ponto deste fenômeno chamar atenção e as plataformas abrirem algumas exceções.

O resultado é curioso. Na Twitch, por exemplo, alguns streamers com tourette já conseguiram carta branca para fazer suas lives sem o risco de levar um ban a cada palavra proibida que falam. Isto cria uma pitoresca situação em que, mesmo que existam palavras proibidas, elas são proferidas livremente pelas pessoas com tourette, pois se o site ousar banir tal comportamento corre o risco de levar um processo por discriminação contra pessoas com problemas psicológicos ou neurológicos.

De toda forma, o mundo do streaming hoje ainda é um ambiente bastante livre. Durante as lives, streamers falam palavrões que há décadas não vemos na TV aberta, como um "porra" ou um "caralho", afinal o que as pessoas gostam da espontaneidade dos streamers, de se sentirem "resenhando" com os amigos, como em uma conversa de bar. 

Claro que existe um certo senso de responsabilidade e os streamers em geral procuram não passar dos limites de uma conversa socialmente aceitável. Na verdade, não é preciso nenhum algoritmo ou lei monitorando isto. Basta o bom senso. Em uma live, o streamer sabe que será rejeitado pela maioria do público se ele se tornar extremamente impróprio, mas também soará artificial se for certinho demais.

Antigamente, a pressão popular sobre o conteúdo da mídia era mais comum por parte de parcelas mais religiosas e conservadoras da sociedade. Eram estas pessoas que reclamavam dos palavrões, do "tava quente pra caraca" e de cenas de nudez ou semi-nudez na TV.

Agora parece que quem assumiu essa tocha do moralismo foi a parcela mais progressista, os defensores do politicamente correto. São estes que costumam fazer mais pressão sobre os conteúdos na internet. Na verdade, hoje em dia temos pressões dos dois lados, tanto o moralismo conservador quanto o progressista. E nesta briga entre o mar e a rocha, a internet é o caranguejo.

Tem um streamer de jogos que ocasionalmente assisto e ele tem o hábito de falar "viado". Esta é uma gíria antiga no Brasil e que tem sido usada tanto como insulto quanto como um tratamento informal e amistoso. Dois amigos tranquilamente se saúdam assim: "e aí, viado". É neste sentido que o streamer em questão usa a palavra, como um tratamento amistoso. 

Felizmente ele parece não sofrer nenhuma censura a este respeito, mas fico pensando que a qualquer momento algum puritano pode denunciá-lo alegando homofobia. Na certa ele já deve ter recebido denúncias, mas os moderadores do site tiveram bom senso de entender o contexto.

Contexto. Como isto é importante. Qualquer palavra, absolutamente qualquer palavra, só será de fato uma ofensa de acordo com o contexto em que é usada. Não existe isto de palavras proibidas. Mesmo a chamada "n-word", que nada mais é do que "nigger" ou "nigga", é uma palavra livremente usada entre os negros norte-americanos como um tratamento comum, às vezes até como elogio. 

Existe um contexto em que esta palavra se torna ofensa. Por exemplo, está na regra tácita daquela sociedade que uma pessoa branca não deve chamar um negro de "nigga", pois há um contexto histórico. Se um branco faz isto soa como uma atitude insolente, de desrespeito. E mesmo assim existem também exceções, pois brancos que têm amizade e intimidade com negros podem ganhar o "free pass" para usar amistosamente a palavra com seus amigos.

Enfim, contexto. Sempre contexto. Citar a palavra "nigga" a fim de explicá-la, por exemplo, não pode ser considerado ofensivo, pois não estamos direcionando a palavra a nenhum alvo humano. Não há uma intenção de ofensa. 

Imagine, por exemplo, que loucura seria banir palavras do dicionário por serem consideradas ofensivas. Como então definir uma palavra, como explicar por que ela é ofensiva, se ela sequer pode ser mencionada? 

Não podemos permitir que a internet chegue neste nível de restrição, pois é aí que se extrapola o limite entre um mundo saudável e uma distopia. 

Notas:


House of the Dragon: Primeiras impressões

House of the Dragon (2022-)

Game of Thrones (2011-2019) foi o grande campeão entre as séries da HBO. Virou um medidor de padrão de qualidade. Uma série muito bem produzida passou a ser considerada "nível Game of Thrones". Foi uma renascença do gênero de fantasia medieval comparável ao sucesso da trilogia Lord of the Rings uma década antes (2001-2003).

A fortuna que Game of Thrones rendeu garantiu a produção de um spin-off, House of the Dragon (2022-). Curiosamente, esta série foi lançada com poucos dias de diferença de outra relativamente semelhante: The Rings of Power (2022-)¹, que é baseada no universo de Lord of the Rings.

Desta forma, iremos acompanhar uma batalha de dois serviços de streaming, Amazon e HBO, cada qual com seu campeão de fantasia medieval. 

Ambas as séries envolvem a fantasia dita "medieval", que não necessariamente se passa na idade média da nossa história, mas que apresenta um mundo com alguma semelhança ao que o imaginário popular tem da idade média, com castelos, cavaleiros e, do ponto de vista fantástico, dragões.

House of the Dragon (2022-)
HotD, assim como GoT, não é para quem tem gatilho com cenas de violência.

Além destas semelhanças, ambas as séries se diferenciam em outros aspectos. House of the Dragon, seguindo o tom de Game of Thrones e dos livros de George R. R. Martin, é uma série adulta, com sexo explícito e muita violência até ao nível do gore. Rings of Power, seguindo o tom mais infantil e family friendly que vem desde a obra literária de Tolkien, é mais contida em termos de violência e provavelmente jamais terá sexo explícito, contentando-se apenas com sugestões e uma tensão sexual pairando no ar entre alguns personagens.

Em termos de crítica e score, parece claro que House of the Dragon começou na frente. No momento, está com pontuação de 8,8 no IMDb contra 6,8 de Rings of Power. Também basta assistir ao primeiro episódio de cada série que fica evidente a diferença de qualidade. E olha que Rings of Power teve um investimento colossal. Cada episódio custa em média 60 milhões de dólares, enquanto House of the Dragon tem um orçamento de cerca de 20 milhões por episódio.

House of the Dragon (2022-)

Basta observarmos a maneira como são feitos os takes de câmera e os cortes. Neste aspecto, House of the Dragon parece bastante superior, parece ter o toque de direção e edição mais profissional, mais criativo, com ângulos de câmera inteligentes, um uso maior de recursos como gruas e drones para takes panorâmicos, trilhos para movimentação acompanhando os personagens e câmeras colocadas em locais inesperados, como em uma cena de duelo de cavaleiros em que a câmera parece posicionada na base da lança do cavaleiro, oferecendo uma visão diferenciada do combate.

Em Rings of Power não temos este tipo de brincadeira com a câmera. A câmera parece mais estática, com takes semelhante ao de uma novela, onde mostram ora o cenário, ora os rostos dos atores se alternando durante os diálogos.

Também em termos de roteiro a filha de Game of Thrones parece mais profunda e densa e, somado à boa atuação do elenco, produz um apego mais fácil aos personagens. Os personagens de Rings of Power, ao menos nestes dois episódios iniciais, parecem não ter muito carisma e não são interessantes.

Enfim, a série está indo muito bem em cada detalhe. É fruto de um trabalho caprichado de todos os envolvidos, do roteiro, direção, filmagem, figurino, cenários, CGI e até os figurantes que povoam este mundo fictício.

Daemon Targaryen, Mikitaka Hazekura
Is this  Jojo reference?

É no final do terceiro episódio que a série realmente mostra a que veio, com sua primeira grande cena de batalha. As batalhas sempre foram um forte de Game of Thrones e agora elas estão de volta. O Daemon Targaryen (interpretado pelo Matt Smith) brilhou muito nesta cena, mostrando o quão badass e estrategista pode ser. Além disso a atuação do Matt Smith está impecável. Ele sabe administrar até o silêncio, transmitindo a aura arrogante e hostil de Daemon.

Sendo assim, até o momento, devo dizer que House of Dragon está ganhando de braçada de Rings of Power.

The Song of Ice and Fire

Palavras-chave:

A profética distopia pacifista de Demolition Man

Demolition Man (1993)

A ficção distópica costuma imaginar um futuro decadente e marcado pela violência. Em raros casos ela pode se desviar desta tendência e explorar outras possibilidades, como Brave New World (1932), de Aldous Huxley. O mundo descrito nesta obra parece até de certa forma utópico, mas o sistema de controle social e lavagem cerebral, operado de uma forma dócil e pacata, é o que torna esta sociedade uma distopia.

No filme Idiocracia (2006), vemos um mundo em que a sociedade colapsou, mas não por causa da tirania e da violência e sim por causa da decadência cognitiva das pessoas. Uma cômica distopia baseada na idiotização da humanidade.

Sylvester Stallone; Judge Dredd (1995)
"I am the LAW!"

Com relação ao modelo clássico de distopia, baseado em violência extrema, temos um exemplo no mundo do Juiz Dredd, personagem criado nos quadrinhos em 1977 e que teve sua primeira adaptação para o cinema em 1995, interpretado pelo Stallone.

Antes disto, Stallone atuou em outra distopia bem diferente, o filme Demolition Man (1993), que de uma forma um tanto satírica nos apresenta um futuro pacífico, estilo Brave New World, que tem sua estabilidade maculada pela presença de dois caras dos anos 90.

Sylvester Stallone; Demolition Man (1993)

Nos anos 90, o mundo parece experimentar o auge da violência urbana. Em Los Angeles, vemos o mocinho, John Spartan (Sylvester Stallone) caçando o terrorista Simon Phoenix (Wesley Snipes) e a missão acaba se tornando um desastre, o que leva à prisão e condenação de ambos. A pena envolve uma nova tecnologia criogênica, de modo que os condenados devem permanecer congelados por décadas.

Em 2010 acontece um grande terremoto que destruiu Los Angeles, então a cidade é reconstruída e se funde a San Diego e Santa Mônica, formando a megalópole San Angeles. O progresso tecnológico favorece mais controle social e assim a criminalidade é eficientemente eliminada da sociedade. Surge um mundo pacífico, sem armas e sem assassinatos.

Em 2032, o maníaco Phoenix é descongelado e facilmente consegue fugir da prisão. A sua selvageria surpreende essa sociedade pacífica onde os policiais são verdadeiros maricas incapazes de lidar com uma pessoa violenta. A solução é despertar Spartan, um homem nos moldes dos anos 90 e mais capacitado para lidar com a ameaça. Assim a briga de gato e rato dos dois tem continuidade no futuro.

Sylvester Stallone, Sandra Bullock; Demolition Man (1993)

Até aí temos mais um filme de brucutus dos anos 90, misturando ação, luta, tiroteio e tecnologias futuristas. O mais interessante no filme, porém, é a forma satírica como ele desenha uma sociedade pacifista, onde as pessoas se tornaram extremamente mansas e sensíveis e as regras sociais são rigidamente impostas até nos mínimos aspectos da vida.

Sylvester Stallone; Demolition Man (1993), ticket machine

Um dos exemplos mais curiosos é a maquininha de multas por palavrão. Cada vez que um personagem fala um palavrão, esta máquina imprime uma notinha com a multa. Tanto Phoenix quanto Spartan tiram sarro deste sistema. Spartan começa a praguejar diante da máquina e recolher as notinhas a fim de usá-las como papel higiênico no banheiro.

Sandra Bullock; Demolition Man (1993)

Nesta cena somos apresentados a uma curiosa tecnologia que não é bem explicada, mas apenas vagamente mencionada, e que se tornou um dos elementos mais lembrados pelos fãs do filme: as tais das três conchas que servem para limpeza após a defecação.

Nigel Hawthorne; Demolition Man (1993)
Teleconferência, um futuro que já se tornou realidade.

Demolition Man (1993)

Demolition Man (1993)
Chatbot motivacional.

Demolition Man (1993)

Demolition Man (1993)

Há diversas outras tecnologias que são verdadeiramente proféticas. Vemos carros autônomos, tablets, teleconferência, travas de segurança com sensores biométricos, casas inteligentes que acendem as luzes com comandos de voz e até chatbots que conversam com as pessoas, dando conselhos e motivação.

Demolition Man (1993)
A moda dos anos 2030.

Outro detalhe curioso é a forma como as pessoas se vestem, cobrindo todo o corpo e sempre com óculos escuros e chapéus, como que querendo evitar o sol. Nos anos 80-90 o mote da ecologia era falar sobre a destruição da camada de ozônio e o aumento da incidência de raios UV, o que gerou temores que se refletiram na ficção. Nos filmes do Robocop, por exemplo, vemos menções ao aumento de câncer de pele e o comercial de um potente protetor solar.

Demolition Man (1993)
Murder Death Kill.

Como era de se esperar de uma sátira, o filme tem um certo ar de galhofa. Quando os policiais são informados da fuga de Phoenix, o computador apresenta um relatório, informando o nível de ameaça do criminoso com o código 187: MDK, que significa "Murder Death Kill". A tela do computador fica repetindo as palavras "Murder Death Kill", enquanto os policiais olham abobalhados.

Quanto ao comportamento das pessoas, elas são absurdamente certinhas, nunca falam palavrão, desconhecem a violência e até mesmo evitam contato físico. Elas nunca se tocam nem para um aperto de mãos, muito menos para o sexo, que é uma atividade apenas mental, realizada por meio de um aparelho de realidade virtual que conecta as mentes dos envolvidos em uma espécie de sexo telepático. O personagem do Stallone experimenta este troço com a Lenina Huxley¹ (Sandra Bullock), mas é algo estranho demais para um homem do século 20.

Uma das cenas mais galhofas é quando Phoenix invade um museu em busca de armas (afinal, como as armas no futuro foram banidas, só era possível encontrá-las em museus). Ele pega uma espingarda que estava em exposição e já começa a atirar. Pois é, em uma sociedade pacifista e desarmamentista, as armas do museu estão carregadas.

Pior, para quebrar as grades do museu ele usa um velho canhão. Onde ele arranjou a pólvora? Bom, não é o tipo de pergunta que a gente deva fazer em uma ficção intencionalmente zoeira.

Wesley Snipes; Demolition Man (1993)

Como era típico nos anos 90, há inúmeras frases de efeito, trocadilhos, referências nerds e piadas internas. Quando fala com um computador, Phoenix o chama de HAL (referência a 2001 A Space Odyssey). No museu, ao pegar a arma de um manequim, Phoenix o chama de Rambo. Spartan chama um dos policiais de Luke Skywalker e, quando está lutando contra Phoenix e taca uma televisão na cara dele, ele diz "you are on TV". Phoenix até usa a clássica fala do Scarface "say hello to my little friend".

Demolition Man (1993)

Lenina é uma grande nerd de coisas dos anos 90 e vemos em seu escritório um monte de souvenires, brinquedos e até um pôster de Máquina Mortífera, um filme que foi um grande ícone do cinema de ação e violência dos anos 80-90.
 
E há ainda mais uma referência que ficou bem marcada neste filme: Arnold Schwarzenegger foi presidente dos Estados Unidos, para surpresa do Spartan. Obviamente uma piada interna de brucutu em que Stallone brinca com o velho amigo.

Sylvester Stallone, Sandra Bullock; Demolition Man (1993)
Sexo no metaverso.

Um dos momentos mais memoráveis é a cena de sexo virtual entre Stallone e a Sandra Bullock. Naquele mundo extremamente focado em segurança, era de se esperar que a sociedade também tenha se tornado germofóbica, de modo que o contato físico foi banido. Nada de aperto de mãos, abraços, beijos, muito menos sexo. Os bebês, aliás, são gerados em incubadoras, bem ao estilo Brave New World.

O sexo se dá por meio de um capacete de Brain Computer Interface (BCI), uma tecnologia que nós já possuímos e estamos cada vez mais perto de desenvolver alguma experiência psíquica parecida. Stallone, como um marmanjo dos anos 90, não consegue se adaptar ao aparelho e propõe sexo à moda antiga, o que deixa a moça enojada.

É interessante a facilidade com que ela, a princípio, o convida para o sexo. Isto também é um conceito de Brave New World. Neste tipo de sociedade, não existem tabus sexuais e provavelmente também nem existem relacionamentos fixos ou casamento, de modo que uma pessoa convidar outra para o sexo virtual não deve ser muito diferente de convidar para jogar xadrez ou ver um filme. O tabu está no sexo físico, bem como em qualquer contato físico. 

Ao longo da investigação em busca de Phoenix, Spartan e Lenina entram nos esgotos da cidade, descobrindo uma cidade subterrânea, um submundo, quando então a máscara da utopia cai e mostra seu lado mais distópico. As pessoas que não se submeteram ao sistema ultra controlador foram banidas da sociedade, refugiando-se no submundo e vivendo na miséria.

Este é um conceito relativamente comum na ficção: párias da sociedade vivendo nos esgotos ou embaixo da terra, escondidos como ratos. É o caso dos morlocks no mundo dos X-Men e dos mutantes em Futurama. Em Matrix, os próprios humanos são os párias, vivendo nas profundezas de Zion, escondidos das máquinas.

Ali vive um rebelde chamado Edgar Friendly, que é considerado um grande inimigo público (o que obviamente é irônico, já que seu nome é Friendly). Ele é um clássico anarquista, opondo-se às imposições do governo e enfatizando o valor da liberdade para fazer suas próprias escolhas.

Demolition Man (1994)
O jogo começa igualzinho ao filme, com a cena em que Spartan salta de um helicóptero.

Demolition Man (1994)

Em 1994 o filme foi adaptado em um game para os consoles da Nintendo e Sega. É um joguinho plataforma bem decente, com uma boa variedade de mecânicas para os padrões da época. O Spartan pode escalar paredes, plataformas e deslizar em cabos, pode atirar em várias direções, incluindo diagonais, tem uma movimentação bem fluida e animações detalhistas. Um detalhe curioso é que na tela de score o número de inimigos mortos é representado pela sigla MDK, o famoso Murder Death Kill.

Demolition Man é uma pérola do sci-fi de ação noventista. Conta com um trio de atores que bombavam na época, os brucutus Stallone e Wesley Snipes, contrastando com Sandra Bullock que era a namoradinha do mundo com sua beleza, simpatia e fofura.

Nigel Hawthorne; Demolition Man (1993)
"Segurança acima de tudo", disse o ditador.

A mensagem do filme, transmitida em forma de sátira, é um formidável alerta sobre o perigo de uma sociedade se render ao totalitarismo motivada pelo desejo de segurança². O ditador deste mundo é o cientista Dr. Cocteau (na certa uma referência ao cientista Dr. Moreau, criado por H. G. Wells), que projetou San Angeles e todo o seu sistema de controle social tecnocrático. Ele é a fusão de Big Tech com um governo de rígidas leis.

Spartan é conhecido como Demolition Man porque, como um típico brucutu, ele destrói tudo em seu caminho quando está caçando um vilão. No final do filme, seu apelido acaba ganhando uma camada mais profunda, pois ele também foi o demolidor daquela ordem social totalitária. 

Agora que tanto Cocteau quanto Phoenix estavam mortos, surgiu uma oportunidade para que a sociedade se realinhasse. Spartan sugere tanto aos policiais quanto aos anarquistas que busquem um meio termo e assim possam conviver. 

Sylvester Stallone, Sandra Bullock; Demolition Man (1993)

Ele termina tascando um beijo na Lenina, que já não reage enojada, mas curiosa com esta nova possibilidade de viver com contato físico, algo que aquela sociedade extremamente limpinha havia rejeitado por décadas.

Uma crítica ao puritanismo

Hoje em dia, devido à chamada "cultura do cancelamento", Demolition Man tem voltado à tona nas redes sociais, citado como um filme profético por satirizar o politicamente correto. No filme, as pessoas eram multadas meramente por dizer um palavrão, e hoje na internet qualquer coisa que você diga, por mais inofensiva que seja, pode ser alvo do cancelamento de uma turma que problematiza tudo.

O curioso é que o politicamente correto, que eu gosto de chamar de novo puritanismo, no século 20 era fruto de uma pressão de conservadores cristãos que se opunham a cenas de sexo, violência, drogas e palavrões. Nos quadrinhos inclusive teve o Comics Code que surgiu por causa disso e que quase extinguiu as revistinhas eróticas e de terror. 

A sociedade norte-americana, de fato, tem em suas origens uma ligação com os puritanos originais. Chamava-se puritanismo a um movimento religioso protestante calvinista que floresceu na Inglaterra no século 17. A princípio a intenção era boa: purificar a igreja Anglicana e o próprio estilo de vida cristão, buscando ao máximo seguir uma vida livre de vícios e voltada para a virtude. 

Quando os dissidentes anglicanos migraram para o Novo Mundo a fim de fugir da perseguição do estado britânico, levaram consigo a cultura puritana que se estabeleceu nas primeiras congregações religiosas e moldou os valores e costumes da sociedade americana.

Com o passar do tempo a sociedade americana foi se tornando mais aberta e gradativamente mais laica e mista, mesmo porque os Estados Unidos, com a fama de "terra das oportunidades", atraíram gente de todo o mundo, de várias culturas e costumes. De toda forma, sendo um país de maioria cristã, era natural que os valores cristãos predominassem.

Até por volta dos anos 50 estes valores estavam bastante presentes na indústria de entretenimento. Na televisão e cinema, evitava-se qualquer coisa que podia ofender ou desagradar o grande público formado pelo que se pode chamar de "família tradicional conservadora": não ter cenas de sexo ou violência exagerada e evitar palavrões, uso de drogas ou qualquer coisa que pudesse ser considerada uma má influência para os jovens.

Foi nos anos 60, com a revolução cultural, que este status quo foi desafiado e aos poucos a indústria cultural foi se tornando mais ousada em seu conteúdo, todavia no ambiente mainstream sempre predominou o modelo que ficou conhecido como "politicamente correto", que visava evitar qualquer tema e comportamento controverso para não desagradar o grande público.

Este termo, "politicamente correto", foi usado de diversas maneiras ao longo do século 20, tanto para se referir à direita quanto à esquerda no campo político, só que com o tempo, no uso da grande massa, ele foi se tornando sinônimo de uma postura que evita tocar em temas sensíveis ou potencialmente ofensivos, controversos, etc. Neste sentido, pode-se dizer que o politicamente correto na indústria do entretenimento tem sua origem no puritanismo ou nos valores conservadores da sociedade americana.

Demolition Man satirizava este puritanismo, este politicamente correto conservador. No filme vemos como a sociedade se tornou extremamente "limpinha" até no uso das palavras e até os palavrões mais inofensivos se tornaram tabu.

Mas voltemos ao termo "puritanismo". Sim, em sua origem este movimento foi fascinante e produziu algumas pessoas virtuosas e que genuinamente tentavam viver da maneira que achavam que era mais adequada ao ensinamento cristão de amor a Deus e ao próximo. Como é comum acontecer em todo tipo de movimento purista, com o tempo também surgem os extremistas e pessoas que exageram demais, tornando-se uma bizarra caricatura do movimento original.

E isto tem um exemplo bem mais antigo, milenar: o farisaísmo. Nos Evangelhos temos o registro de como eram os fariseus, provavelmente o grupo mais criticado por Jesus: eram arrogantes, gostavam de sinalizar virtude (daí Jesus ter dito "quando deres esmolas, não toque trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, para serem glorificados pelas pessoas"), viviam apontando o dedo, julgando os outros (daí Jesus ter dito "não julgueis para não serdes julgados"), e no fim das contas não viviam aquilo que pregavam, pois eram hipócritas. Em vários discursos Jesus mandou diretas e indiretas aos santarrões dos fariseus.

O movimento fariseu, assim como o puritanismo, surgiu com boas intenções, com o fim de purificar a religião, encontrar os genuínos valores, mas com o tempo a coisa foi se deturpando e acabou se tornando em um monte de extremistas cheios de regras absurdas e sempre dispostos a condenar os outros, pois se achavam moralmente superiores e os juízes do mundo.

Pois é, esta descrição do farisaísmo hoje cabe bem na chamada cultura do cancelamento. Se no século 20 predominou o farisaísmo conservador, agora no século 21 houve uma virada na indústria do entretenimento, na grande mídia: agora existe um novo puritanismo impulsionado pelo movimento progressista, focado em identitarismo e não mais na religião. É um farisaísmo laico.

Assim como na versão conservadora, este novo politicamente correto foi escalando até o nível das trivialidades, gente sendo cancelada por bobagens. Assim como o farisaísmo e o puritanismo, o politicamente correto progressista começou bem intencionado, tendo como alvo falas e comportamentos racistas, sexistas ou que atacassem as chamadas minorias da sociedade. Só que a coisa escalou a ponto de ter militantes se voltando contra qualquer um que fale ou faça algo que eles não gostem.

Um exemplo curioso é o do ator Chris Pratt, que em uma premiação em 2018 fez um discurso falando: “Deus é real. Deus ama você. Deus quer o melhor para você. Acredite nisso. Eu acredito”. Pronto, a partir daí ele passou a ser perseguido por militantes que têm, entre suas pautas, o combate ao cristianismo, visto como um obstáculo para uma sociedade laica. A simples afirmação de fé se tornou uma ofensa para algumas pessoas.

Existe o caso curioso da proposta progressista em substituir o termo "merry christmas" por "happy weekend", alegando que este último é um termo mais inclusivo, que as pessoas não cristãs podem se sentir discriminadas por uma comemoração cristã. Enfim, são bizarrices do extremismo.

Desta forma, Demolition Man acaba voltando a ser atual, porque puritanismo é puritanismo, independente do alinhamento político ou ideológico. Hoje temos este novo puritanismo laico que procura estabelecer uma enorme lista de regrinhas, bem ao estilo das centenas de mandamentos dos fariseus. 

Stallone, buraco negro

Agora temos palavras e expressões arbitrariamente sendo consideradas ofensivas, pecaminosas, como o termo "buraco negro", acusado pelos devotos mais árduos do novo politicamente correto como um termo racista, sendo que em sua origem e em seu uso cotidiano o termo não tem qualquer relação com cor de raça e sim com a pura e simples supressão da luz. 

É por estas e outras que Demolition Man continua tão atual.

Notas:

Wesley Snipes; Demolition Man (1993)

DiCaprio meme

1: Pois é, o nome da garota é Lenina Huxley, uma óbvia homenagem ao autor de Brave New World, o que deixa claro que esta obra de fato inspirou o filme. De fato, em certa cena o Phoenix literalmente chama aquele futuro de Brave New World. Também não é à toa o nome Lenina, certamente uma referência a Lênin. Lenina Huxley representa o resumo do conceito daquela sociedade utópica-distópica, um mundo socialista e totalitário, mas nos moldes pacifistas de Brave New World.

2: Já dizia Benjamin Franklin: "Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança".

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