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Uma palavra sobre pronomes neutros no português

Sou um usuário dedicado da língua portuguesa. Como autor de livros, ela é minha ferramenta de trabalho, como leitor, ela é o meu meio de instrução e entretenimento, e como blogueiro viciado e portador da mania da hipergrafia¹, ela é meu hobby.

Logo, é natural que questões envolvendo mudanças na língua chamem minha atenção. Tenho observado recentemente o desenrolar de uma discussão envolvendo o chamado "pronome neutro". Basicamente, consiste em uma proposta para inserir um pronome ou pronomes que não sejam classificados nem como masculinos nem como femininos, de modo a serem usados para identificação de pessoas ditas "não binárias". Como exemplos deste novo tipo de pronome, são citados "elu" e "elx²", entre outros.

Está evidente que a discussão a este respeito tem ocorrido mais no âmbito da política, da religião, dos costumes e ideologia do que propriamente da gramática. Não pretendo entrar nestes departamentos e aqui devo me ater à visão gramatical da coisa.

Devo salientar que, em termos de moral e costumes e de preferências individuais, não me oponho de forma alguma ao uso destes tratamentos, caso uma pessoa assim prefira ser tratada. E o termo "tratamento" é o X da questão quando se trata de analisar esta novidade de forma gramatical.

Gramaticalmente, a tentativa de criar pronomes neutros é bastante problemática, ou melhor, é mecanicamente impossível. São peças que não se encaixam na engrenagem da língua, de modo que seria necessário recriar toda a estrutura da língua para se adequar a esta novidade. Isto SE a proposta for a criação de pronomes pessoais neutros que se enquadrem na mesma categoria de ele e ela, a chamada "terceira pessoa".

Criar tais pronomes é mecanicamente (ou seja, morfológica e sintaticamente) impossível porque nossos vocábulos são feitos de tal forma que se baseiam na distinção masculino e feminino e é extremamente importante notar que tal distinção, na maioria dos casos, não tem a ver com sexo, sexualidade, gênero sexual ou preferência sexual. Masculino e feminino na língua portuguesa são categorias morfológicas, têm a ver com a forma das palavras.

Por exemplo, uma cadeira é um substantivo feminino e isto não significa de forma alguma que estamos identificando algum tipo de gênero ou sexualidade na cadeira, assim como um banco é masculino e não quer dizer que ele seja uma "cadeira macho". Reduzir os termos "masculino" e "feminino" ao campo da sexualidade gera tais equívocos. 

De certa forma, parece uma visão excessivamente antropocentrizada e narcisista da língua, reduzindo-a a ser sempre um reflexo do ser humano, quando na verdade uma língua surge e se desenvolve com uma visão global, uma cosmovisão. A língua de qualquer povo descreve tanto o ser humano quanto o mundo à sua volta. Mas aqui já estou entrando em digressões filosóficas. Voltemos...

A criação dos tais pronomes neutros quebraria a gramática, criando uma série de inconsistências entre o uso do pronome e dos nomes a que ele se refere. Por exemplo, ao falar que uma pessoa é bonita, podemos dizer "ele é bonito" ou "ela é bonita". O nome tem o seu sufixo modificado para se adequar ao gênero antes apontado pelo pronome. Isto é uma herança das declinações do latim. 

A uniformidade entre o gênero do pronome e do nome a que se refere é uma regra importante para a manutenção da coerência textual. Ora, sabemos que um estrangeiro, novato no idioma, erra ao falar que "comeu um maçã" ou "comprou uma livro". A inserção de um terceiro pronome em uma língua cujas palavras não possuem naturalmente o sufixo para se uniformizar ao mesmo geraria uma Torre de Babel gramatical.

Também é importante notar um princípio importantíssimo na evolução da gramática: por mais que as pessoas, no senso comum, pensem que uma gramática é criada por gramáticos e eruditos e o povo é obrigado a adotá-la, na verdade quem faz a língua é o povo e os gramáticos apenas a estudam e classificam, identificando suas regras intrínsecas e o estado atual de seu vocabulário.

Ou seja, não existe isto de se criar arbitrariamente um pronome e inserir via decreto em uma língua. Quem determina os neologismos, as mudanças morfológicas e até sintáticas de uma língua é o uso prático que as pessoas em massa fazem dela. Logo, é uma questão de costume. Não costume no sentido moral, mas no sentido de hábito. É isto que faz uma língua funcionar, pois as pessoas estão habituadas a ela.

Quando uma gíria nova surge, por exemplo, ninguém é obrigado a usá-la ou reconhecê-la. Pode ser uma invenção de um grupinho bem específico, uma tribo urbana, de modo que a princípio a gíria é uma linguagem cifrada. Com o uso, a palavra vai se espalhando e se tornando aceita pela compreensão geral das pessoas. 

Recentemente é possível coletar muitos exemplos disto por meio do "internetês". Na internet, devido ao contato constante com a língua inglesa e com termos técnicos relativos ao uso da internet e de computadores, se tornou comum surgirem gírias anglicizadas como "printar", palavra que vem do inglês "print", que equivale ao nosso "imprimir". Hoje já é relativamente comum as pessoas usarem o termo: "me manda um print", "vou printar a conversa que tive pra você ver".

A princípio, termos assim são corpos estranhos na língua e só se normalizam mesmo com o uso, de forma espontânea. É assim que agora palavras como "internet" já são tão normalizadas que se encontram nos dicionários, pois os dicionaristas reconheceram que o uso popular integrou definitivamente o termo ao nosso léxico. 

Já uma palavra como "lootear", usada pelos gamers, ainda não chegou ao ponto de entrar nos nossos dicionários, porque ainda é um jargão de um grupo específico de pessoas, mas como os games estão cada vez mais integrados à vida cotidiana da maioria da população, não duvido que em alguns anos "lootear" se torne de uso tão comum que entre para os dicionários.  

Tais exemplos mostram que a língua muda sim, e está sempre mudando, mas a mudança é espontânea, orgânica, feita pelo cidadão comum³. O mesmo deve valer para os chamados pronomes neutros. No momento, ainda são elementos estranhos, jargões de grupos específicos, e não podem ser forçados na população, muito menos obrigados a se ensinar nas escolas, uma vez que é uma novidade não integrada pelo uso comum.

Adianto, porém, que, como já disse antes, não há espaço para a inserção de pronomes neutros na morfossintaxe portuguesa, não sem o custo de quebrar todo o funcionamento da língua. E tenho uma solução extremamente simples para isto: que se encaixem tais pronomes na categoria de tratamento.

Pronomes de tratamento, como o termo já diz, se referem a vocábulos usados para distinguir pessoas conforme qualidades específicas ou status social. É um instrumento de hierarquia social, de demonstração de respeito e reconhecimento de títulos, funções, etc. Usar um pronome de tratamento é uma atitude de etiqueta social e o debate sobre os pronomes neutros tem ocorrido justamente no âmbito da etiqueta social mais do que no da gramática em si.

Ao lidar com um juiz, você o chama de Vossa Excelência para demonstrar respeito à sua autoridade. Sacerdotes são tratados com diversas distinções como Reverendíssimo ou Sua Santidade. Aos reis nos dirigimos como Vossa Majestade. Aos idosos ou adultos em geral tratamos como Senhor ou Senhora. Também há tratamentos mais informais e que se pretendem ser amistosos, como Dona, Moço, Tia, Mano...

A categoria dos pronomes de tratamento é maleável e pode receber termos novos a qualquer momento, bastando que haja adoção popular do novo termo. Isto não afetará a morfossintaxe e a língua seguirá seu curso sem traumas. 

Imagine-se que a língua seja um castelo de cartas. Os pronomes pessoais como "ele" e "ela" são cartas localizadas na base e centro do castelo, de modo que seria praticamente impossível inserir cartas novas ao lado destas sem abalar a estrutura do castelo. Os pronomes de tratamento são cartas postas no topo e podem-se inserir e remover a gosto, sem risco de desmoronar o castelo da língua.

Enfim, se uma pessoa quer ser tratada como "elu" ou "elx", é um direito dela, e tal termo, gramaticalmente falando, pode muito bem ser classificado como um pronome de tratamento, um termo adotado em respeito à identidade com que a pessoa se apresenta. 

Haverá, porém, situações práticas no uso da língua em que os pronomes pessoais ignoram os pronomes de tratamento, principalmente ao tratar pessoas de forma generalizada. Por exemplo, imagine que haja em um estádio dois times de futebol, um masculino e um feminino. Alguém pergunta quando os times vão jogar e outro responde: "eles vão jogar às sete e elas às nove". Ora, é possível que dentro do grupo masculino exista um jogador que se identifique como "elu", todavia, em termos gerais, será incluído no grupo do "eles", pois o pronome facilita a identificação do grupo, independente de como cada membro deste grupo especificamente prefira se identificar.

Logo, neste debate e negociação entre os contra e os a favor da adoção destes novos termos, será necessário que ambos façam concessões. O sujeito identificado como "elu" precisará entender que em determinadas situações será chamado de "ele" ou "ela", principalmente nas situações práticas do cotidiano em que as outras pessoas não o conhecem e não têm como saber de que forma se identifica em termos de tratamento. 

O pronome de tratamento existe justamente para o contato mais íntimo, para quando a pessoa que se dirige a você tem conhecimento de seu status social. Se a proposta do pronome neutro se direcionar a esta categoria, sua inserção no idioma será bem mais fácil e pacífica. 

Notas:


2: Além do chamado pronome neutro trazer um problema morfossintático, conforme explicado neste artigo, o termo "elx" traz ainda outro problema que é o fonético. É simplesmente impossível, para a fonética portuguesa, se pronunciar a junção de "l" e "x", uma vez que a fonética é intrinsecamente dependente de vogais para mediar a pronúncia das consoantes. 

3: Existem, de fato, casos em que novidades são inseridas na língua por grupos e pessoas específicas, como poetas e romancistas que criam neologismos, acadêmicos que cunham termos técnicos. Assim nascem as palavras eruditas e são reconhecidas não pelo uso massivo da população, mas pelo mérito intelectual, acadêmico ou artístico de quem as cunhou. Não é o caso, porém, da proposta do pronome neutro, que se pretende ser um termo de uso popular e, portanto, deve submeter-se à aprovação popular por meio do costume.  

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