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Snyder Cut, quatro horas de fan service numa tela quadrada

Zack Snyder's Justice League (2021)

Antes da resenha, deixo aqui duas observações iniciais. Eu levei quatro dias pra assistir a este filme inteiro. Não só por causa da duração de quatro horas, mas porque o filme realmente tem um formato de série que convida a ser visto aos pouquinhos. A história tem 6 capítulos, além de prólogo e epílogo.

Quanto ao formato da tela quadrada, é difícil entender por que o Zack Snyder optou por isto. Fica feio, tira a aparência de tela de cinema, que é retangular. Não combina nem com tela de celular nem com TV ou monitor de PC e notebook. Não combina com nada. Parece só uma experimentação do diretor pra tentar fazer algo diferentão.

Por outro lado, confesso que foi até prático pra mim, porque assisti no PC e deu pra eu deixar a janela do filme na metade da tela, enquanto na outra metade fiquei navegando na internet ou fazendo anotações pra essa resenha. O longa (e põe longa nisso) até prendeu minha atenção em alguns momentos, mas nas cenas mais boring eu fiquei nessa multitarefa.

O filme original da Liga da Justiça foi lançado em 2017¹ e teve uma recepção controversa. Mesmo os fãs mais fervorosos do Zack Snyder não podiam defender muito o longa, porque ele passou por uma pós-produção nas mãos de Joss Whedon, que deu uma "des-snyderzada" na obra.

A intenção era marvelizar mesmo, deixar a coisa mais com cara de filme da Marvel e reduzindo o tom sombrio típico de Snyder. O resultado foi um Frankenstein meio Snyder meio Whedon. E assim surgiu a campanha pelo Snyder Cut, a versão full Snyder, sem a intervenção marvelística de Whedon. 

Após quatro anos, eis que os fãs conseguiram convencer a Warner a dar essa moral pro tio Zeca e o resultado foi um longa realmente longo, com quatro horas de duração e que custou mais 70 milhões de pós-produção em cima do material de 2017 (que havia custado cerca de 300 milhões e fez uma bilheteria de 660 milhões).

Um fator que pesou para convencer a Warner a bancar este projeto foi o lançamento do novo serviço de streaming, o HBO Max. Assim como a Disney estava se empenhando em produzir um monte de séries da Marvel para engordar o seu catálogo de streaming, a Warner também tinha que produzir conteúdo para sua vitrine. 

O Snyder Cut veio bem a calhar, pois assim o HBO Max já chegava oferecendo um filme de quatro horas para segurar o público na sua nova plataforma. Além disso, o filme já estava pago, pois mesmo com os 70 milhões a mais, a Liga da Justiça ainda estava no lucro com sua bilheteria de mais de meio milhão. 

Zack Snyder's Justice League (2021)

Prólogo

O filme já começa com o recurso preferido do Zack Snyder: slow motion. Vemos a recapitulação da morte do Superman nas mãos do Doomsday. Superman solta um grito cujas ondas sonoras ecoam por vários quilômetros. A cena destas ondas se propagando é toda em slow motion e demora um bocado. Disseram pro Snyder que ele teria o tempo que quisesse pra fazer estas coisas e ele aproveitou.

Parte 1
Don't count on it, Batman

É, tá certo que é só um filme de super-heróis e a gente tem que manter a suspensão de descrença ligada sempre, mas mesmo neste gênero certos detalhes precisam ter alguma verossimilhança. Uma coisa que me incomodou logo no começo foi a maneira como as amazonas guardaram a motherbox.

Cada motherbox é uma verdadeira arma cósmica, com um poder absurdo. Uma delas foi guardada pelas amazonas e o objetivo era impedir que esta arma caísse nas mãos de algum vilão. Aí como fazem isso? Mantêm a caixa em um domo de pedra na superfície da Terra. Ora, no mínimo um troço tão valioso e perigoso devia merecer um cofre menos conspícuo, pelo menos alguns quilômetros dentro do subsolo. Em vez disso o cofre estava ali a céu aberto.

Mas digamos que aquele domo era mágico e não apenas um edifício de pedra que alguns mísseis facilmente poderiam destruir. O pior vem depois. A invasão ao domo de fato só foi possível por meios mágicos, ou de altíssima tecnologia, pois o Steppenwolf chegou lá dentro por meio de um portal dimensional ou algo assim. Aí as amazonas fogem com a motherbox... a cavalo.

Ok também que elas lutem com arcos e flechas contra alienígenas que atiram raios. Os arcos provavelmente têm qualidades mágicas. Já os cavalos, parecem ser cavalos normais e de longe a melhor forma de transporte para se fugir com uma arma de destruição cósmica. Mas eu não devia pensar nestes detalhes, pois a cena de ação em si, do Steppenwolf com seus parademônios perseguindo as amazonas em seus cavalos, é bem legal.

Detalhe que as amazonas em geral não são superfortes como a Wonder Woman. Prova disso é a cena em que uma delas é atropelada por um cavalo e fica presa embaixo dele. Convenhamos que qualquer super humano com um mínimo de força sairia de baixo de um cavalo como se fosse um travesseiro.

Zack Snyder's Justice League (2021)
Tem o total de 01 lanterna verde neste filme (e ele morre em segundos).

Parte 2
The age of heroes

Na segunda parte, conhecemos a versão Snyder da mitologia antiga da Terra. Foi uma era de heróis tão fodas que nem Darkseid conseguiu enfrentar. A batalha de Darkseid é extremamente rápida e ele é derrotado e expulso. No exército terráqueo, vemos amazonas, atlantes, até um lanterna verde e Zeus atirando raios. A Terra nesta época era badass

Por isto Darkseid nunca mais retornou, até a era atual, quando enfim a Terra se mostrou fragilizada. Steppenwolf  comenta que agora não tem lanternas verdes nem kryptonianos para defendê-la. 

Até aí é tudo massa, a batalha é foda, mas aí acontece a partilha das motherboxes entre amazonas, atlantes e humanos. Eu tinha falado que era estranho as amazonas guardarem um objeto tão perigoso em um mero domo na superfície, pois eis que os humanos foram ainda mais imprudentes: enterraram a bendita caixa numa floresta com apenas dois palmos de areia!

Zack Snyder's Justice League (2021)

Parte 3
Beloved mother, beloved son

Nesta parte finalmente é explorada a história do Cyborg, ele que foi o personagem da Liga menos aproveitado no filme de 2017. Agora ele tem bastante tempo de tela e sua presença na equipe também ganha mais importância.

Não se engane, o Snyder Cut continuou com o esforço de inserir piadinhas, algo que foi feito no primeiro filme claramente numa tentativa de imitar o humor da Marvel. Só que as piadas neste universo sombrio do Snyder não combinam. Acaba parecendo forçado e causando uma reação de tédio.

Um bom exemplo acontece nesta parte. O pai do Cyborg está analisando um material exposto a calor intenso e o colega dele comenta que "isto é a coisa mais quente da Terra", aí mete uma piada besta: "Foi exatamente o que falei pra minha namorada do baile... Ela me dispensou, aliás". A reação do velho foi soltar um "yeah" desinteressado.

Esta cena ilustra bem como as piadas não funcionam no filme. Primeiro, o cara que conta essa piadota já parece meio insosso. É como se o ator soubesse que a fala não tem graça e a pronunciou mecanicamente. O outro que ouviu a piada nem prestou atenção, apenas soltou um "yeah" e continuou concentrado. Ninguém ri na cena. Nem os personagens, nem o público. É uma piada apenas na intenção, mas não no resultado. Melhor seria que nem estivesse ali.

Várias destas piadotas acontecem ao longo do filme.

Zack Snyder's Justice League (2021)
Mais um fan service legal: podemos ver o clássico raio ômega do Darkside.

Parte 4
Change machine

Finalmente temos a formação de uma equipe. Batman, Wonder Woman, Flash e Cyborg partem pra salvar reféns do Steppenwolf e travam um primeiro combate contra ele. O Aquaman antes disso já teve uma breve luta no oceano, mas o Steppenwolf conseguiu pegar a motherbox dos atlantes e fugir.

A cena dos heróis em ação é legal, com o bônus de ter um dos brinquedinhos do Batman, o tanque crawler. Steppenwolf foge e causa uma rachadura no túnel de Gotham, iniciando uma inundação. Eis que por uma graaande coincidência, o Aquaman aparece, vindo pela rachadura, e se junta à equipe.

Outro detalhe aqui sobre a preguicinha do roteiro. Além das piadotas sem graça, também é frequente a tentativa de enfatizar o empoderamento da Mulher Maravilha. Quando ela está cara a cara com o Steppenwolf, ele fala para os parademônios não interferirem e diz: "Ela é minha", ao que ela responde: "Eu não sou de ninguém". Este tipo de fala é frequente, como se o roteirista estivesse tentando deixar claro o quanto ela é independente e forte. Uma mensagem de empoderamento.

Definitivamente a ficção, mais ainda a ficção de ação e super-heróis, é carente de personagens femininas. Elas são poucas e poucas são aquelas que se destacam pelo poder e independência. É uma lacuna que realmente precisa ser preenchida nos filmes. Os meninos têm muitos heróis masculinos para se inspirar, para admirar; as meninas têm poucas heroínas.

Todavia, você não engrandece um personagem simplesmente colocando falas clichê na boca dele. A Wonder Woman não é uma grande heroína porque fica repetindo o quanto ela é independente e forte. Ela é porque demonstra no comportamento, nas ações. É assim que se faz uma personagem badass. Um dos grandes exemplos é a Sarah Connor. A danada era foda porque agia como uma personagem foda e não ficava lembrando todo mundo quanto a isso. Aliás, ela era bem lacônica. Nem precisava falar para parecer foda.

Enfim, estas falas da Wonder Woman tipo "Eu não sou de ninguém" acabam soando como as piadotas, como linhas de roteiro inseridas apenas para preencher uma lista de requerimentos. Falta espontaneidade.

Pela segunda vez vemos Darkside, que agora aparece apenas em uma daquelas holografias 3D clichês para falar com Steppenwolf. Toca uma música grandiosa, ele diz que destruiu milhares de mundos e tal, mas convenhamos, não dá pra comprar o personagem. Não tão rápido.

É inevitável comparar Darkside a Thanos e aí vemos a diferença na construção de um vilão. Thanos foi aparecendo aos poucos ao longo de uma década e quando chegou de vez mostrou a que veio, deu uma surra em ninguém menos que o Hulk, se mostrou alguém realmente temível. 

Darkside não teve tempo para mostrar nada. Pior, no início do filme vemos ele ser rapidamente derrotado pelos terráqueos. Chegamos à metade deste longo filme e Darkside continua sendo um personagem vago e que não causa a devida impressão de grande vilão.

Zack Snyder's Justice League (2021)

Parte 5
All the king's horses

Aqui chega o momento em que a turma resolve usar uma motherbox pra ressuscitar o Superman. Superman desperta confuso da cabeça e a luta dele contra a liga foi uma das melhores cenas do primeiro filme de 2017 e igualmente aqui no Snyder Cut.

Obviamente deram uma prolongada na cena, mas a mudança mais importante foi no finalzinho. Na primeira versão, o Superman agarrou o pobre Batman pelo maxilar e, com a aparição de Lois, ele joga o Batman pro lado como se fosse um saco de batatas. O filme de 2017, como ilustrado nesta cena, foi humilhante para o Batman. Ele se tornou um mero peso morto na equipe.

No Snyder Cut, ele continua parecendo o mais fraco do grupo, mas pelo menos nesta cena ele oferece alguma resistência ao Superman, se protegendo dos raios oculares com os braceletes. Desta vez ele não é jogado como um saco de batatas, pelo menos.

Zack Snyder's Justice League (2021)

Parte 6
Something darker

Superman ressuscita e com o direito a um fan service que fora negado no filme de 2017: ele veste o uniforme preto, uma referência ao retorno do Superman nos quadrinhos, após sua morte nos anos 90. Só faltou terem a coragem de colocar um mullet nele.

Na batalha final contra Steppenwolf, administraram bem o papel do Batman. Seria estranho ele, apenas um humano, lutar contra o gigante ao lado dos outros heróis superpoderosos. Logo, ele ficou encarregado de enfrentar os minions, os parademônios, enquanto Wonder Woman e Aquaman, os dois mais fortes, encaravam o Steppenwolf. Cyborg se ocupou em conter as motherboxes e o Flash em gerar a corrente elétrica para tal.

Curioso que, mesmo sendo o Snyder Cut uma versão ampliada, acrescentando cenas novas e material antes cortado, teve uma cena do filme de 2017 que foi removida: quando a equipe ajuda a evacuar a cidade tomada pelos parademônios. Tinha aquela cena meio zoada em que o Superman carregava no ar um edifício inteiro cheio de gente. Era algo pouco verossímil, já que um edifício erguido daquela maneira iria desmoronar com o próprio peso e deve ser por isso que removeram a cena.

Enfim o Superman chega como um deus ex machina, lidando com Steppenwolf com extrema facilidade. Todavia, eles não conseguem impedir as motherboxes e acontece uma explosão que deveria desintegrar e remoldar todo o planeta. Aí que vem o evento mais foda do filme, um segundo deus ex machina.

Numa fração de segundo, o Flash vê a destruição se alastrando. Os outros heróis foram desintegrados e tudo parece perdido. Ele finalmente demonstra seu grande poder, algo consagrado nos quadrinhos. Ultrapassando a velocidade da luz, o Flash literalmente reverte o tempo, desfazendo o momento da explosão e dando à Liga uma segunda chance para desativar as motherboxes. Com esta cena, fica provado que o Flash é de longe o personagem mais poderoso da Liga.

Por fim, Steppenwolf é derrotado no momento em que Darkside aparece em um portal. O tirano vê seu lacaio ser perfurado pelo Aquaman, espancado pelo Superman e decapitado pela Wonder Woman. Ele observa friamente e não age. Estratégico como é, decidiu recuar para planejar a revanche, ordenando que suas tropas se preparem para uma invasão. 

Aí está deixada a ponta que outro filme completaria. Sabemos, porém, que esta invasão de Darkside nunca acontecerá, pois o snyderverso terminou aí. Ficamos só com o gostinho de um confronto Liga versus Darkside que não vai acontecer, pelo menos não nesta série de filmes iniciada em 2013. Talvez daqui a uma década uma nova série faça as coisas direito. 

Zack Snyder's Justice League (2021)
O Jared Joker.

Epílogo
A father twice over

Agora temos o momento do final feliz, vemos os heróis retomando a vida normal e tem aquela cena do Lex Luthor fazendo uma aliança com o Deathstroke e revelando a identidade do Batman. Isto deveria ser uma preparação para um possível filme do Batman, ainda com o Ben Aflleck, ou talvez até a formação de uma equipe de super vilões para um segundo filme da Liga, deixando o Darkseid para um encerramento da trilogia. 

Enfim, o filme da Liga, desde 2017, plantou muitas possibilidades que não se realizaram. Neste epílogo do Snyder Cut, porém, as possibilidades foram ainda mais ampliadas. De fato, a melhor parte deste longa de quatro horas é o breve epílogo, pois ele oferece um show de fan service.

No filme de 2017, temos aquela interessante cena do "Batman do deserto", vivendo em um mundo apocalíptico e encontrando um Superman vilão, uma clara homenagem aos games Injustice. A frustração foi o fato disto ter sido apenas um sonho do Batman.

Zack Snyder's Justice League (2021)
Este Flash de armadura ficou feio, mas ao mesmo tempo cool.

Eis que aqui no epílogo, Snyder traz de volta o Batman do deserto, o mundo apocalíptico, e vemos que ele formou uma espécie de Liga da Justiça remanescente, com Cyborg, Mera, Flash (usando uma intrigante armadura) e ainda aliados inesperados, como o Deathstroke e até o Coringa do Jared Leto.

Zack Snyder's Justice League (2021)
Superman putaço.

Nesta breve cena, diversos detalhes são pincelados em rápidas menções, como a morte do Aquaman e da Lois, bem como do Robin, o que é uma referência à história em quadrinhos Morte em Família, em que o Coringa mata Jason Todd. Também o Batman fala que segurou a Arlequina nos braços enquanto ela morria. Então aparece o Superman putaço, olhos em chamas. Ele é o vilão.

Só neste epílogo, portanto, temos material para diversas histórias, uma saga completa. Mas pera, no fim vemos o Bruce Wayne acordando. Era só mais um sonho. Foi só um gostinho de algo que nunca vai acontecer, mas valeu pelo fan service.

É isto que pode ser dito afinal sobre este longo filme: foi um grande fan service. Definitivamente não é uma boa história, está longe de ter a grandiosidade que a Liga da Justiça merecia, mas pelo menos tem o gostinho do fan service

Notas:

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