Qaligrafia
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A geração replicante

Pink Floyd: The Wall (1982)

É atribuída a Sócrates a seguinte crítica aos jovens de seu tempo: "Os jovens de hoje gostam do luxo. São mal comportados, desprezam a autoridade. Não têm respeito pelos mais velhos, passam o tempo a falar em vez de trabalhar. Não se levantam quando um adulto chega. Contradizem os pais, apresentam-se em sociedade com enfeites estranhos. Apressam-se a ir para a mesa e comem os acepipes, cruzam as pernas e tiranizam os seus mestres".

Esta fala sempre nos soa como atual por um motivo simples: é uma tendência natural da juventude questionar e rebelar-se contra a ordem estabelecida. Jovens são rebeldes por natureza porque eles são motivados pela mudança, pela transformação. Em toda geração os mais velhos se queixam da rebeldia dos jovens e estes jovens, quando se tornarem velhos, vão igualmente se queixar das futuras gerações.

Todavia, estamos experimentando uma era singular em que os mais velhos demonstram mais disposição para a desobediência do que as novas gerações e parece que o motivo disso é a internet e as redes sociais, que, de uma maneira em parte espontânea e em parte projetada, têm moldado a mentalidade das crianças para o excesso de submissão.

Já é sabido que nas redes sociais a vida acontece na base do estímulo e recompensa em um nível bem mais intenso do que nas relações offline. A internet é como um caça níqueis que vai te recompensando a cada curtida, a cada seguidor, e as pessoas desenvolvem esse vício em serotonina que influencia o seu comportamento.

Ora, nessa busca constante por aprovação, por curtidas e atenção, os jovens são desde cedo treinados a performar um comportamento que evite desagradar os outros. Evitam desobedecer as inúmeras regrinhas tácitas de etiqueta virtual para não serem cancelados. Temem levar um ban, um unfollow ou receber menos likes do que receberiam se fossem mais certinhos e seguissem os protocolos do crédito social.

Black Mirror (2011-)

O já clássico seriado Black Mirror (2011-)¹ ilustrou muito bem isto no episódio Nosedive, onde as pessoas ficam forçando sorrisos amarelos e vivem pisando em ovos, temendo cometer qualquer deslize de etiqueta que leve a perder umas estrelinhas. Foram condicionadas pelas recompensas e punições das estrelinhas a buscar o bom comportamento e evitar qualquer demonstração de rebeldia.

Eu compararia estas novas gerações, mais pacatas e predispostas à submissão, aos replicantes da versão aprimorada em Blade Runner 2049 (2017)². Eles são incapazes de questionar ou desobedecer ordens. O personagem do Ryan Gosling, o Joe, tem essa atitude pacata e um tanto estoica. Não que ele não tenha senso crítico. Sua expressão niilista revela certo nojo e aversão a algumas coisas que ele é obrigado a fazer, mas mesmo assim ele obedece e nunca expressa qualquer questionamento.

Ryan Gosling; Blade Runner 2049 (2017)

O Joe é um verdadeiro contraste com o Roy Batty, do filme de 1982, que era rebelde, agressivo e questionador. Também o Deckard, interpretado pelo Harrison Ford, tinha este espírito meio punk e individualista.

Enfim, parece que esta nova sociedade que se molda sob o zeitgeist da internet é bem ao estilo do profético Brave New World, de Huxley, um mundo de pessoas mansas, de pacatos cidadãos. Convenhamos, isto tem lá seus benefícios que toda a sociedade desfruta, mas é também alarmante.

Só que nós conhecemos bem a natureza humana. Mesmo estes pacatos replicantes têm um ponto de ruptura se forem forçados além dos limites. Em algum lugar dentro destas almas mansas, está adormecida a capacidade de reagir. 

Notas:



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