A ficção distópica costuma imaginar um futuro decadente e marcado pela violência. Em raros casos ela pode se desviar desta tendência e explorar outras possibilidades, como Brave New World (1932), de Aldous Huxley. O mundo descrito nesta obra parece até de certa forma utópico, mas o sistema de controle social e lavagem cerebral, operado de uma forma dócil e pacata, é o que torna esta sociedade uma distopia.
No filme Idiocracia (2006), vemos um mundo em que a sociedade colapsou, mas não por causa da tirania e da violência e sim por causa da decadência cognitiva das pessoas. Uma cômica distopia baseada na idiotização da humanidade.
"I am the LAW!" |
Com relação ao modelo clássico de distopia, baseado em violência extrema, temos um exemplo no mundo do Juiz Dredd, personagem criado nos quadrinhos em 1977 e que teve sua primeira adaptação para o cinema em 1995, interpretado pelo Stallone.
Antes disto, Stallone atuou em outra distopia bem diferente, o filme Demolition Man (1993), que de uma forma um tanto satírica nos apresenta um futuro pacífico, estilo Brave New World, que tem sua estabilidade maculada pela presença de dois caras dos anos 90.
Nos anos 90, o mundo parece experimentar o auge da violência urbana. Em Los Angeles, vemos o mocinho, John Spartan (Sylvester Stallone) caçando o terrorista Simon Phoenix (Wesley Snipes) e a missão acaba se tornando um desastre, o que leva à prisão e condenação de ambos. A pena envolve uma nova tecnologia criogênica, de modo que os condenados devem permanecer congelados por décadas.
Em 2010 acontece um grande terremoto que destruiu Los Angeles, então a cidade é reconstruída e se funde a San Diego e Santa Mônica, formando a megalópole San Angeles. O progresso tecnológico favorece mais controle social e assim a criminalidade é eficientemente eliminada da sociedade. Surge um mundo pacífico, sem armas e sem assassinatos.
Em 2032, o maníaco Phoenix é descongelado e facilmente consegue fugir da prisão. A sua selvageria surpreende essa sociedade pacífica onde os policiais são verdadeiros maricas incapazes de lidar com uma pessoa violenta. A solução é despertar Spartan, um homem nos moldes dos anos 90 e mais capacitado para lidar com a ameaça. Assim a briga de gato e rato dos dois tem continuidade no futuro.
Até aí temos mais um filme de brucutus dos anos 90, misturando ação, luta, tiroteio e tecnologias futuristas. O mais interessante no filme, porém, é a forma satírica como ele desenha uma sociedade pacifista, onde as pessoas se tornaram extremamente mansas e sensíveis e as regras sociais são rigidamente impostas até nos mínimos aspectos da vida.
Um dos exemplos mais curiosos é a maquininha de multas por palavrão. Cada vez que um personagem fala um palavrão, esta máquina imprime uma notinha com a multa. Tanto Phoenix quanto Spartan tiram sarro deste sistema. Spartan começa a praguejar diante da máquina e recolher as notinhas a fim de usá-las como papel higiênico no banheiro.
Nesta cena somos apresentados a uma curiosa tecnologia que não é bem explicada, mas apenas vagamente mencionada, e que se tornou um dos elementos mais lembrados pelos fãs do filme: as tais das três conchas que servem para limpeza após a defecação.
Teleconferência, um futuro que já se tornou realidade. |
Chatbot motivacional. |
Há diversas outras tecnologias que são verdadeiramente proféticas. Vemos carros autônomos, tablets, teleconferência, travas de segurança com sensores biométricos, casas inteligentes que acendem as luzes com comandos de voz e até chatbots que conversam com as pessoas, dando conselhos e motivação.
A moda dos anos 2030. |
Outro detalhe curioso é a forma como as pessoas se vestem, cobrindo todo o corpo e sempre com óculos escuros e chapéus, como que querendo evitar o sol. Nos anos 80-90 o mote da ecologia era falar sobre a destruição da camada de ozônio e o aumento da incidência de raios UV, o que gerou temores que se refletiram na ficção. Nos filmes do Robocop, por exemplo, vemos menções ao aumento de câncer de pele e o comercial de um potente protetor solar.
Murder Death Kill. |
Como era de se esperar de uma sátira, o filme tem um certo ar de galhofa. Quando os policiais são informados da fuga de Phoenix, o computador apresenta um relatório, informando o nível de ameaça do criminoso com o código 187: MDK, que significa "Murder Death Kill". A tela do computador fica repetindo as palavras "Murder Death Kill", enquanto os policiais olham abobalhados.
Quanto ao comportamento das pessoas, elas são absurdamente certinhas, nunca falam palavrão, desconhecem a violência e até mesmo evitam contato físico. Elas nunca se tocam nem para um aperto de mãos, muito menos para o sexo, que é uma atividade apenas mental, realizada por meio de um aparelho de realidade virtual que conecta as mentes dos envolvidos em uma espécie de sexo telepático. O personagem do Stallone experimenta este troço com a Lenina Huxley¹ (Sandra Bullock), mas é algo estranho demais para um homem do século 20.
Uma das cenas mais galhofas é quando Phoenix invade um museu em busca de armas (afinal, como as armas no futuro foram banidas, só era possível encontrá-las em museus). Ele pega uma espingarda que estava em exposição e já começa a atirar. Pois é, em uma sociedade pacifista e desarmamentista, as armas do museu estão carregadas.
Pior, para quebrar as grades do museu ele usa um velho canhão. Onde ele arranjou a pólvora? Bom, não é o tipo de pergunta que a gente deva fazer em uma ficção intencionalmente zoeira.
Como era típico nos anos 90, há inúmeras frases de efeito, trocadilhos, referências nerds e piadas internas. Quando fala com um computador, Phoenix o chama de HAL (referência a 2001 A Space Odyssey). No museu, ao pegar a arma de um manequim, Phoenix o chama de Rambo. Spartan chama um dos policiais de Luke Skywalker e, quando está lutando contra Phoenix e taca uma televisão na cara dele, ele diz "you are on TV". Phoenix até usa a clássica fala do Scarface "say hello to my little friend".
Lenina é uma grande nerd de coisas dos anos 90 e vemos em seu escritório um monte de souvenires, brinquedos e até um pôster de Máquina Mortífera, um filme que foi um grande ícone do cinema de ação e violência dos anos 80-90.
E há ainda mais uma referência que ficou bem marcada neste filme: Arnold Schwarzenegger foi presidente dos Estados Unidos, para surpresa do Spartan. Obviamente uma piada interna de brucutu em que Stallone brinca com o velho amigo.
Sexo no metaverso. |
Um dos momentos mais memoráveis é a cena de sexo virtual entre Stallone e a Sandra Bullock. Naquele mundo extremamente focado em segurança, era de se esperar que a sociedade também tenha se tornado germofóbica, de modo que o contato físico foi banido. Nada de aperto de mãos, abraços, beijos, muito menos sexo. Os bebês, aliás, são gerados em incubadoras, bem ao estilo Brave New World.
O sexo se dá por meio de um capacete de Brain Computer Interface (BCI), uma tecnologia que nós já possuímos e estamos cada vez mais perto de desenvolver alguma experiência psíquica parecida. Stallone, como um marmanjo dos anos 90, não consegue se adaptar ao aparelho e propõe sexo à moda antiga, o que deixa a moça enojada.
É interessante a facilidade com que ela, a princípio, o convida para o sexo. Isto também é um conceito de Brave New World. Neste tipo de sociedade, não existem tabus sexuais e provavelmente também nem existem relacionamentos fixos ou casamento, de modo que uma pessoa convidar outra para o sexo virtual não deve ser muito diferente de convidar para jogar xadrez ou ver um filme. O tabu está no sexo físico, bem como em qualquer contato físico.
Ao longo da investigação em busca de Phoenix, Spartan e Lenina entram nos esgotos da cidade, descobrindo uma cidade subterrânea, um submundo, quando então a máscara da utopia cai e mostra seu lado mais distópico. As pessoas que não se submeteram ao sistema ultra controlador foram banidas da sociedade, refugiando-se no submundo e vivendo na miséria.
Este é um conceito relativamente comum na ficção: párias da sociedade vivendo nos esgotos ou embaixo da terra, escondidos como ratos. É o caso dos morlocks no mundo dos X-Men e dos mutantes em Futurama. Em Matrix, os próprios humanos são os párias, vivendo nas profundezas de Zion, escondidos das máquinas.
Ali vive um rebelde chamado Edgar Friendly, que é considerado um grande inimigo público (o que obviamente é irônico, já que seu nome é Friendly). Ele é um clássico anarquista, opondo-se às imposições do governo e enfatizando o valor da liberdade para fazer suas próprias escolhas.
O jogo começa igualzinho ao filme, com a cena em que Spartan salta de um helicóptero. |
Em 1994 o filme foi adaptado em um game para os consoles da Nintendo e Sega. É um joguinho plataforma bem decente, com uma boa variedade de mecânicas para os padrões da época. O Spartan pode escalar paredes, plataformas e deslizar em cabos, pode atirar em várias direções, incluindo diagonais, tem uma movimentação bem fluida e animações detalhistas. Um detalhe curioso é que na tela de score o número de inimigos mortos é representado pela sigla MDK, o famoso Murder Death Kill.
Demolition Man é uma pérola do sci-fi de ação noventista. Conta com um trio de atores que bombavam na época, os brucutus Stallone e Wesley Snipes, contrastando com Sandra Bullock que era a namoradinha do mundo com sua beleza, simpatia e fofura.
"Segurança acima de tudo", disse o ditador. |
A mensagem do filme, transmitida em forma de sátira, é um formidável alerta sobre o perigo de uma sociedade se render ao totalitarismo motivada pelo desejo de segurança². O ditador deste mundo é o cientista Dr. Cocteau (na certa uma referência ao cientista Dr. Moreau, criado por H. G. Wells), que projetou San Angeles e todo o seu sistema de controle social tecnocrático. Ele é a fusão de Big Tech com um governo de rígidas leis.
Spartan é conhecido como Demolition Man porque, como um típico brucutu, ele destrói tudo em seu caminho quando está caçando um vilão. No final do filme, seu apelido acaba ganhando uma camada mais profunda, pois ele também foi o demolidor daquela ordem social totalitária.
Agora que tanto Cocteau quanto Phoenix estavam mortos, surgiu uma oportunidade para que a sociedade se realinhasse. Spartan sugere tanto aos policiais quanto aos anarquistas que busquem um meio termo e assim possam conviver.
Ele termina tascando um beijo na Lenina, que já não reage enojada, mas curiosa com esta nova possibilidade de viver com contato físico, algo que aquela sociedade extremamente limpinha havia rejeitado por décadas.
Uma crítica ao puritanismo
Hoje em dia, devido à chamada "cultura do cancelamento", Demolition Man tem voltado à tona nas redes sociais, citado como um filme profético por satirizar o politicamente correto. No filme, as pessoas eram multadas meramente por dizer um palavrão, e hoje na internet qualquer coisa que você diga, por mais inofensiva que seja, pode ser alvo do cancelamento de uma turma que problematiza tudo.
O curioso é que o politicamente correto, que eu gosto de chamar de novo puritanismo, no século 20 era fruto de uma pressão de conservadores cristãos que se opunham a cenas de sexo, violência, drogas e palavrões. Nos quadrinhos inclusive teve o Comics Code que surgiu por causa disso e que quase extinguiu as revistinhas eróticas e de terror.
A sociedade norte-americana, de fato, tem em suas origens uma ligação com os puritanos originais. Chamava-se puritanismo a um movimento religioso protestante calvinista que floresceu na Inglaterra no século 17. A princípio a intenção era boa: purificar a igreja Anglicana e o próprio estilo de vida cristão, buscando ao máximo seguir uma vida livre de vícios e voltada para a virtude.
Quando os dissidentes anglicanos migraram para o Novo Mundo a fim de fugir da perseguição do estado britânico, levaram consigo a cultura puritana que se estabeleceu nas primeiras congregações religiosas e moldou os valores e costumes da sociedade americana.
Com o passar do tempo a sociedade americana foi se tornando mais aberta e gradativamente mais laica e mista, mesmo porque os Estados Unidos, com a fama de "terra das oportunidades", atraíram gente de todo o mundo, de várias culturas e costumes. De toda forma, sendo um país de maioria cristã, era natural que os valores cristãos predominassem.
Até por volta dos anos 50 estes valores estavam bastante presentes na indústria de entretenimento. Na televisão e cinema, evitava-se qualquer coisa que podia ofender ou desagradar o grande público formado pelo que se pode chamar de "família tradicional conservadora": não ter cenas de sexo ou violência exagerada e evitar palavrões, uso de drogas ou qualquer coisa que pudesse ser considerada uma má influência para os jovens.
Foi nos anos 60, com a revolução cultural, que este status quo foi desafiado e aos poucos a indústria cultural foi se tornando mais ousada em seu conteúdo, todavia no ambiente mainstream sempre predominou o modelo que ficou conhecido como "politicamente correto", que visava evitar qualquer tema e comportamento controverso para não desagradar o grande público.
Este termo, "politicamente correto", foi usado de diversas maneiras ao longo do século 20, tanto para se referir à direita quanto à esquerda no campo político, só que com o tempo, no uso da grande massa, ele foi se tornando sinônimo de uma postura que evita tocar em temas sensíveis ou potencialmente ofensivos, controversos, etc. Neste sentido, pode-se dizer que o politicamente correto na indústria do entretenimento tem sua origem no puritanismo ou nos valores conservadores da sociedade americana.
Demolition Man satirizava este puritanismo, este politicamente correto conservador. No filme vemos como a sociedade se tornou extremamente "limpinha" até no uso das palavras e até os palavrões mais inofensivos se tornaram tabu.
Mas voltemos ao termo "puritanismo". Sim, em sua origem este movimento foi fascinante e produziu algumas pessoas virtuosas e que genuinamente tentavam viver da maneira que achavam que era mais adequada ao ensinamento cristão de amor a Deus e ao próximo. Como é comum acontecer em todo tipo de movimento purista, com o tempo também surgem os extremistas e pessoas que exageram demais, tornando-se uma bizarra caricatura do movimento original.
E isto tem um exemplo bem mais antigo, milenar: o farisaísmo. Nos Evangelhos temos o registro de como eram os fariseus, provavelmente o grupo mais criticado por Jesus: eram arrogantes, gostavam de sinalizar virtude (daí Jesus ter dito "quando deres esmolas, não toque trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, para serem glorificados pelas pessoas"), viviam apontando o dedo, julgando os outros (daí Jesus ter dito "não julgueis para não serdes julgados"), e no fim das contas não viviam aquilo que pregavam, pois eram hipócritas. Em vários discursos Jesus mandou diretas e indiretas aos santarrões dos fariseus.
O movimento fariseu, assim como o puritanismo, surgiu com boas intenções, com o fim de purificar a religião, encontrar os genuínos valores, mas com o tempo a coisa foi se deturpando e acabou se tornando em um monte de extremistas cheios de regras absurdas e sempre dispostos a condenar os outros, pois se achavam moralmente superiores e os juízes do mundo.
Pois é, esta descrição do farisaísmo hoje cabe bem na chamada cultura do cancelamento. Se no século 20 predominou o farisaísmo conservador, agora no século 21 houve uma virada na indústria do entretenimento, na grande mídia: agora existe um novo puritanismo impulsionado pelo movimento progressista, focado em identitarismo e não mais na religião. É um farisaísmo laico.
Assim como na versão conservadora, este novo politicamente correto foi escalando até o nível das trivialidades, gente sendo cancelada por bobagens. Assim como o farisaísmo e o puritanismo, o politicamente correto progressista começou bem intencionado, tendo como alvo falas e comportamentos racistas, sexistas ou que atacassem as chamadas minorias da sociedade. Só que a coisa escalou a ponto de ter militantes se voltando contra qualquer um que fale ou faça algo que eles não gostem.
Um exemplo curioso é o do ator Chris Pratt, que em uma premiação em 2018 fez um discurso falando: “Deus é real. Deus ama você. Deus quer o melhor para você. Acredite nisso. Eu acredito”. Pronto, a partir daí ele passou a ser perseguido por militantes que têm, entre suas pautas, o combate ao cristianismo, visto como um obstáculo para uma sociedade laica. A simples afirmação de fé se tornou uma ofensa para algumas pessoas.
Existe o caso curioso da proposta progressista em substituir o termo "merry christmas" por "happy weekend", alegando que este último é um termo mais inclusivo, que as pessoas não cristãs podem se sentir discriminadas por uma comemoração cristã. Enfim, são bizarrices do extremismo.
Desta forma, Demolition Man acaba voltando a ser atual, porque puritanismo é puritanismo, independente do alinhamento político ou ideológico. Hoje temos este novo puritanismo laico que procura estabelecer uma enorme lista de regrinhas, bem ao estilo das centenas de mandamentos dos fariseus.
Agora temos palavras e expressões arbitrariamente sendo consideradas ofensivas, pecaminosas, como o termo "buraco negro", acusado pelos devotos mais árduos do novo politicamente correto como um termo racista, sendo que em sua origem e em seu uso cotidiano o termo não tem qualquer relação com cor de raça e sim com a pura e simples supressão da luz.
É por estas e outras que Demolition Man continua tão atual.
Notas:
1: Pois é, o nome da garota é Lenina Huxley, uma óbvia homenagem ao autor de Brave New World, o que deixa claro que esta obra de fato inspirou o filme. De fato, em certa cena o Phoenix literalmente chama aquele futuro de Brave New World. Também não é à toa o nome Lenina, certamente uma referência a Lênin. Lenina Huxley representa o resumo do conceito daquela sociedade utópica-distópica, um mundo socialista e totalitário, mas nos moldes pacifistas de Brave New World.
2: Já dizia Benjamin Franklin: "Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança".
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