Qaligrafia
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Sobre restrição de conteúdo nas mídias

Estes dias eu estava revendo Demolition Man (1993)¹, uma "distopia pacifista" que mostra um mundo extremamente regulado e politicamente correto, e relembrei algumas mudanças em nossa própria realidade.

É de se esperar que a mídia, com o tempo, se torne mais cautelosa e restrita em seu conteúdo, não apenas por causa do acúmulo de leis (muitas delas absurdas, convenhamos), mas pela pressão da própria sociedade, das pessoas que reagem com boicotes e processos ao que não gostam.


Um exemplo curioso que me recordo é um comercial da Brahma que foi ao ar em 2003 no horário nobre da TV, chamado Sol Louco. Vemos as pessoas na praia, como era costume na maioria dos comerciais de cerveja, e um Sol de CGI ficava pulando no céu e cantando aos gritos "Tava quente pra caraca, mas eu me refresquei".

Era um comercial bem chamativo e bizarro, mas o mais bizarro foi a reação de algumas pessoas moralistas que protestaram contra o uso da palavra "caraca", considerando-a um palavrão. Engraçado que "caraca" já é a suavização de um verdadeiro palavrão, o "caralho". Lembro que a Xuxa, em seu programa infantil, costumava falar "caraca" e se tornou mais uma interjeição do que um palavrão. Mesmo assim, ainda tinha gente que implicava com a palavra. 

A resposta da empresa de cerveja foi interessante. O comercial voltou reformulado, agora com o Sol cantando "tava quente pra cacilda" e com uma voz meio Bob Esponja, claramente debochando da censura que recebeu.


A TV já foi bem mais livre em termos de palavrões. Uma das pérolas da publicidade brasileira é um comercial de raspadinhas com o humorista Costinha falando "se fudeu". E também havia nos anos 80-90 mais semvergonhice na TV aberta. Os programas de auditório tinham dançarinas com bundas à mostra e quem nunca ouviu falar na "banheira do Gugu" que ia ao ar em pleno Domingo à tarde.

Com o tempo este tipo de conteúdo foi se tornando mais e mais restrito e até mesmo se tornou proibida a veiculação de comerciais infantis. O argumento era que a lei deveria proteger as crianças, um excesso de protecionismo do estado, querendo impor o que alega ser mais saudável. Acontece que as crianças adoravam os comerciais de brinquedos, bonecas, carrinhos, etc. 

Este banimento da publicidade infantil também acabou matando os programas infantis, privando as crianças do entretenimento dos desenhos animados. E foi assim que morreu a TV Globinho e no lugar entraram programas insossos para donas de casa.

Hoje a TV aberta é extremamente limpinha. Até o Faustão, que antigamente costumava falar muito "pentelho" e "orra, meu", dando uma amenizada no "porra", ao longo dos anos foi ficando mais e mais contido.

Então veio a era da internet e no começo estava tudo liberado. Tenho umas lembranças de coisas pesadas que por acaso encontrei quando comecei a usar o Youtube há mais de uma década. Lembro de ter visto uma cena de empalamento. Isso mesmo. Era, se não me engano, um estuprador na Índia que foi capturado pelos moradores locais, amarrado e atravessado com uma enorme lança, ficando exposto ao público enquanto agonizava.

Também no Youtube dos velhos tempos era comum haver vídeos denunciando violência animal. Lembro de um que mostrava um certo país onde se comercializava pele de cachorros. O feirante, da maneira mais grotesca possível, batia a cabeça do animal no chão para deixá-lo grogue, então fazia uns cortes e removia todo o couro como se puxasse fora uma roupa, deixando o bicho ainda vivo a agonizar.

Pois é, o Youtube não era para corações frágeis. Hoje em dia este tipo de conteúdo só existe na chamada deep web ou em sites mais obscuros. Não vou dizer que foi errado o site estabelecer uma política banindo material com violência explícita, afinal o Youtube é a nova TV e gente de todo tipo entra no site, inclusive crianças. 

Só que as regulações foram aumentando e aumentando e, assim como deve haver um limite para a liberdade (ora, se não houvesse, o Youtube poderia ficar cheio de conteúdo explicitamente criminoso e grotesco), também deve haver um limite para a restrição. Vejo que hoje em dia o Youtube já extrapolou este limite para a restrição.

No começo, os vídeos eram removidos da plataforma quando alguma pessoa denunciava. O vídeo então era analisado por uma pessoa em algum escritório da empresa. Aí vieram os algoritmos cada vez mais inteligentes e hoje a coisa é quase toda automatizada. O algoritmo reconhece palavras e imagens, ele pode identificar um corpo nu, uma música com direitos autorais e até uma lista de palavras proibidas.

Acontece que este algoritmo ainda não é tão esperto a ponto de entender contextos. Os youtubers agora vivem pisando em ovos quando fazem seus vídeos, eles mesmos censurando palavrões e evitando palavras que possivelmente podem chamar atenção do algoritmo censor. 

Há casos em que a simples menção de palavras como "guerra" e "tortura" já bastam para levar o algoritmo a reduzir a visibilidade do vídeo, mesmo que o cara esteja apenas fazendo um vídeo educativo sobre a história da Segunda Guerra.

Em 2020 a coisa ficou ainda mais maluca, pois as redes sociais empreenderam uma campanha intensa de controle da informação referente à pandemia. Qualquer menção ao assunto despertava o algoritmo que, ou inseria uma tarja informativa na postagem, ou a removia impiedosamente e até causava o banimento de quem postou, sob a alegação de estar promovendo "fake news". Como em muitos casos isto era um processo automático do algoritmo, houve vários banimentos injustos que aconteciam pela má compreensão do contexto das postagens.

Também há os curiosos casos de pessoas com tourette, uma síndrome que faz com que a pessoa não tenha controle sobre tiques, movimentos do corpo e até palavras. As pessoas com tourette são famosas por soltarem palavrões aleatórios e acidentalmente proferir palavras que são um tabu na sociedade, como a famosa "n word". Assim, já houve streamers com tourette que foram banidos por causa de seus xingamentos involuntários, a ponto deste fenômeno chamar atenção e as plataformas abrirem algumas exceções.

O resultado é curioso. Na Twitch, por exemplo, alguns streamers com tourette já conseguiram carta branca para fazer suas lives sem o risco de levar um ban a cada palavra proibida que falam. Isto cria uma pitoresca situação em que, mesmo que existam palavras proibidas, elas são proferidas livremente pelas pessoas com tourette, pois se o site ousar banir tal comportamento corre o risco de levar um processo por discriminação contra pessoas com problemas psicológicos ou neurológicos.

De toda forma, o mundo do streaming hoje ainda é um ambiente bastante livre. Durante as lives, streamers falam palavrões que há décadas não vemos na TV aberta, como um "porra" ou um "caralho", afinal o que as pessoas gostam da espontaneidade dos streamers, de se sentirem "resenhando" com os amigos, como em uma conversa de bar. 

Claro que existe um certo senso de responsabilidade e os streamers em geral procuram não passar dos limites de uma conversa socialmente aceitável. Na verdade, não é preciso nenhum algoritmo ou lei monitorando isto. Basta o bom senso. Em uma live, o streamer sabe que será rejeitado pela maioria do público se ele se tornar extremamente impróprio, mas também soará artificial se for certinho demais.

Antigamente, a pressão popular sobre o conteúdo da mídia era mais comum por parte de parcelas mais religiosas e conservadoras da sociedade. Eram estas pessoas que reclamavam dos palavrões, do "tava quente pra caraca" e de cenas de nudez ou semi-nudez na TV.

Agora parece que quem assumiu essa tocha do moralismo foi a parcela mais progressista, os defensores do politicamente correto. São estes que costumam fazer mais pressão sobre os conteúdos na internet. Na verdade, hoje em dia temos pressões dos dois lados, tanto o moralismo conservador quanto o progressista. E nesta briga entre o mar e a rocha, a internet é o caranguejo.

Tem um streamer de jogos que ocasionalmente assisto e ele tem o hábito de falar "viado". Esta é uma gíria antiga no Brasil e que tem sido usada tanto como insulto quanto como um tratamento informal e amistoso. Dois amigos tranquilamente se saúdam assim: "e aí, viado". É neste sentido que o streamer em questão usa a palavra, como um tratamento amistoso. 

Felizmente ele parece não sofrer nenhuma censura a este respeito, mas fico pensando que a qualquer momento algum puritano pode denunciá-lo alegando homofobia. Na certa ele já deve ter recebido denúncias, mas os moderadores do site tiveram bom senso de entender o contexto.

Contexto. Como isto é importante. Qualquer palavra, absolutamente qualquer palavra, só será de fato uma ofensa de acordo com o contexto em que é usada. Não existe isto de palavras proibidas. Mesmo a chamada "n-word", que nada mais é do que "nigger" ou "nigga", é uma palavra livremente usada entre os negros norte-americanos como um tratamento comum, às vezes até como elogio. 

Existe um contexto em que esta palavra se torna ofensa. Por exemplo, está na regra tácita daquela sociedade que uma pessoa branca não deve chamar um negro de "nigga", pois há um contexto histórico. Se um branco faz isto soa como uma atitude insolente, de desrespeito. E mesmo assim existem também exceções, pois brancos que têm amizade e intimidade com negros podem ganhar o "free pass" para usar amistosamente a palavra com seus amigos.

Enfim, contexto. Sempre contexto. Citar a palavra "nigga" a fim de explicá-la, por exemplo, não pode ser considerado ofensivo, pois não estamos direcionando a palavra a nenhum alvo humano. Não há uma intenção de ofensa. 

Imagine, por exemplo, que loucura seria banir palavras do dicionário por serem consideradas ofensivas. Como então definir uma palavra, como explicar por que ela é ofensiva, se ela sequer pode ser mencionada? 

Não podemos permitir que a internet chegue neste nível de restrição, pois é aí que se extrapola o limite entre um mundo saudável e uma distopia. 

Notas:


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