Nos anos 90 aconteceu o marcante fenômeno da bolha especulativa na indústria dos quadrinhos. O sucesso da Marvel e DC era tanto que até transbordou no surgimento de uma nova editora, a Image, fundada por ex-artistas da Marvel e DC.
Naquela década, quadrinhos se tornaram o grande entretenimento nerd, o que inflacionou este mercado. As revistas aumentaram a tiragem, mas também o preço. Empolgados com as vendas, editores inventaram de lançar os mesmos títulos com várias capas variantes, visando os colecionadores. Também multiplicaram os títulos com minisséries, spin-offs e personagens desconhecidos ganhando revistas próprias.
Como era de se esperar, uma hora essa bolha iria estourar e estourou feio, tanto que a Marvel, endividada e à beira da falência, teve até que vender os direitos de vários de seus personagens para grandes studios, o que teve um lado bom, pois foi a partir daí que os live actions engataram no cinema, com os X-Men produzidos pela Fox e o Homem-Aranha pela Sony, pavimentando o caminho para a era dos Vingadores.
Pois bem, agora estamos vivendo a bolha na indústria de filmes e séries. De um lado, teve a HBO/DC produzindo série a rodo com o arrowverso, e de outro, a Disney, na ânsia de encher seu catálogo do streaming, também passou a encomendar novas séries com personagens da Marvel, como WandaVision, Loki, Gavião Arqueiro, Moon Knight, Ms. Marvel e She-Hulk.
Foi na She-Hulk que finalmente um problema dessa produção em massa começou a se tornar conspícuo. Ainda antes do lançamento, a personagem já despertou comentários negativos nas redes sociais devido ao seu CGI ruim de "massinha", um CGI mal acabado, tosco, algo que não era de se esperar da Marvel que passou uma década nos impressionando no cinema com filmes cheios de ótimo CGI.
O problema estético dessa série tem uma explicação simples: os studios de design contratados para produzir os conteúdos de CGI da Marvel estão atolados de serviço e com pouco tempo para entrega. É muita série, muito filme, mesmo que eles recebam malas cheias de dinheiro, não é assim que a banda toca. Animação 3D requer tempo. Vide o Avatar 2, que está em produção há pelo menos uma década justamente porque James Cameron faz questão de entregar um CGI polido e caprichado.
Mas o problema não para por aí. Aparentemente, há algo bem estranho acontecendo no orçamento das séries ultimamente, especialmente estas relacionadas a fantasia e super-heróis. Como podem os episódios serem tão caros e ainda assim entregar uma qualidade tão sofrível?
Vamos pegar um exemplo clássico de série de sucesso e um orçamento gordo muito bem investido: Game of Thrones. Lá nos idos de 2011, cada episódio da série custava cerca de 6 milhões de dólares, investidos em um gigantesco elenco, locação e construção de cenários, muito figurino, efeitos práticos, CGI, equipes talentosas em todas as áreas. A melhor qualidade que uma série poderia ter. Seis milhões muito bem investidos.
Dez anos depois, lá em 2019, cada episódio estava custando cerca de 15 milhões. Levando em conta a inflação e o aumento dos custos no CGI dos dragões, foi um orçamento bem apropriado. Quem não lembra das batalhas épicas que aconteciam em momentos climáticos de cada temporada? Aquilo era dinheiro bem gasto.
Também em 2019, a Netflix começou a produzir The Witcher¹, claramente uma tentativa de ter seu próprio Game of Thones, sua fantasia medieval para encantar o público. Assim como GoT, The Witcher precisava de muito investimento em cenário, figurino, CGI para os monstros e um razoável orçamento para o elenco, particularmente o Henry Cavill. O custo de cada episódio de The Witcher ficou em torno de 10 milhões. Um valor aceitável.
Aí veio Sandman². Cada episódio da primeira temporada de Sandman custou 15 milhões, ou seja, um orçamento nível Game of Thrones, mas o material que foi entregue estava muito aquém da qualidade de um GoT ou mesmo de The Witcher.
Sandman parecia uma série genérica da CW (me desculpe a CW, mas suas séries viraram sinônimo de CGI barato), com um elenco totalmente desconhecido e pouca ambientação. Os cenários do reino dos sonhos e do inferno, que aparecem em alguns momentos, são paupérrimos. Isto nos leva a questionar: onde diabos eles gastaram estes 15 milhões por episódio?
Temos outro exemplo ainda mais bizarro. A série The Rings of Power³ prometia ser uma grandiosa adaptação épica baseada no universo de Tolkien. O que de cara impressionou e criou expectativas foi a estimativa do orçamento. Só pelos direitos da franquia, a Amazon pagou 250 milhões e cada episódio da primeira temporada custou cerca de 60 milhões! 60 fucking milhões!
Um episódio de The Rings of Power equivale a quatro episódios de The Witcher ou três de House of the Dragon⁴, sua grande concorrente e que claramente parece ter uma produção bem mais profissional e tem CGI de dragões em praticamente todo episódio.
O que espanta em The Rings of Power é esta disparidade entre orçamento e qualidade. A série tem um CGI razoável, mas convenhamos, ela como um todo não parece ser uma superprodução. Não há nada nos cenários, no elenco ou nos figurinos que pareça digno dos 60 milhões semanais.
O mesmo acontece com a She-Hulk. Trata-se de um programa de comédia e que claramente é bem menos ambiciosa em termos de qualidade, mas mesmo assim esta série tosca está custando 25 milhões por episódio. She-Hulk é mais cara que House of Dragon e The Witcher juntos!
Como é possível isso? O que está acontecendo na produção destas séries que está torrando dinheiro sem conseguir entregar uma qualidade equivalente ao custo? É como se fosse uma bolha financeira prestes a estourar. A incompetência ou o olho gordo dos profissionais envolvidos nas finanças da série está fazendo a Disney, a Netflix e a Amazon sangrarem fortunas, o que provavelmente vai chamar atenção dos investidores em algum momento.
De fato, esta bolha já está chamando atenção, o que se nota nas atitudes do David Zaslav assim que assumiu a HBO, fazendo questão de cortar projetos e estabelecer o foco no "menos é mais", em produzir bom conteúdo, com dinheiro bem gasto, em vez de abrir as torneiras do caixa para fazer um monte de séries e filmes chinfrim.
Eu diria, aliás, que a bolha não é apenas financeira. Está cada vez mais claro que existe uma bolha ideológica contaminando a produção destes materiais. A She-Hulk se tornou um notável exemplo disso, uma vez que a série não esconde sua intenção em fazer uma espécie de "humor misândrico" e recheado de detalhes woke.
O resultado é que, em vez de ser uma série para os chamados normies, para o público em geral que quer apenas sentar diante da tela e ter uns momentos de entretenimento, She-Hulk parece visar um público bem específico, bem nichado, de militantes woke, o que representa uma pequena parcela da população nerd. É a minoria barulhenta, os chamados "lacradores de Twitter".
A indústria de entretenimento sempre esteve impregnada de ativistas políticos e desde os anos 60 ela foi se tornando majoritariamente ocupada por roteiristas, diretores e atores com viés mais para o lado dos democratas ou do progressismo, mas também tem uma galera mais conservadora e/ou republicana.
Só que geralmente sempre houve uma certa moderação na forma como os filmes e séries tocam em assuntos com viés político, pelo óbvio motivo de que, antes de tudo, a indústria de entretenimento deve visar aquilo que é sua principal missão: entreter e fazer dinheiro com isso.
Óbvio que há espaço para passar alguma mensagem em um filme, para ir além do mero escapismo da ficção, mas o escapismo é importante e é ele que mantém a indústria funcionando, que gera bilheteria, que dá o retorno financeiro necessário para que novos filmes e séries continuem sendo produzidos.
Por algum motivo, parece que algumas produções têm extrapolado o limite da moderação, resultando em produtos focados demais em militância política ou ideológica, inclusive usando a militância como uma forma de autodefesa, pois "se você não gostou da She-Hulk, é porque você é machista e não simpatiza com a mensagem feminista dela".
Esta é a armadilha oferecida ao público. Entrega-se um conteúdo com baixa qualidade, mas permeado de mensagem ideológica, de modo que a ideologia é usada como blindagem contra críticas à qualidade. É uma estratégia muito estranha, porém, pois isto não vai ajudar em nada a aumentar a popularidade e a aprovação de uma série.
Enfim, há uma bolha nesta indústria, uma bolha financeira e curiosamente também ideológica. A boa notícia é que bolhas estouram e quando isto acontece o mercado se renova e aprende com seus erros, se renovando.
Notas:
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