Blade Runner é uma das franquias mais influentes na cultura nerd sci-fi. Muitas histórias, filmes, livros e quadrinhos se inspiraram nesta obra. O primeiro filme é um dos precursores do cyberpunk, misturado com o clássico noir policial. Até hoje, muitos de seus elementos futuristas continuam à frente do nosso tempo, especialmente os replicantes e os carros voadores.
O livro
O livro de Philip K. Dick (Do Androids Dream of Electric Sheep?), lançado em 1968, enfatiza alguns elementos que nos filmes receberiam pouca ou nenhuma atenção. É bastante abordado o aparelho que manipula as emoções, o supressor e estimulador talâmico. É a versão de Blade Runner para o Soma de Admirável Mundo Novo. Em ambos os casos, trata-se de um meio para tratar as emoções humanas de forma automatizada, ligando ou desligando sentimentos conforme convém.
As pessoas literalmente tratam os sentimentos como um software e se programam para seu dia. Curiosamente, a esposa de Deckard gosta de programar o sentimento de depressão. Ela praticamente ficou viciada em "curtir uma bad".
No livro, Deckard é casado e parece encarar seu trabalho de caçador como um ganha-pão entediante. Ele ainda tenta poupar uma graninha pra comprar um animal de estimação (uma cabra), pois bichos são um sonho de consumo neste futuro em que o ecossistema colapsou. Quem tem um animal gosta de ostentar para os vizinhos. Convenhamos que é um detalhe que não combina muito com uma história de ação e sci-fi, de modo que o filme deixa isso de lado.
Todavia, existe a cena em que Deckard entra no escritório da Tyrell e vê uma coruja, perguntando se é verdadeira. Ali fica estabelecido que no mundo de Blade Runner animais são raros. Algo parecido acontece em Blade Runner 2049, quando K encontra Deckard e pergunta se o cachorro que está com ele é "real".
O livro faz um big deal com o negocio dos pets. É uma saga paralela à historia principal. De um lado, a caçada aos androides e de outro a busca por um pet de verdade. O "catalogo Sidney", contendo a lista de animais à venda, é mencionado várias vezes. O autor deu muita importância a essa coisa dos animais, já os filmes cortam essa gordura da história, apenas fazendo referencias, como a coruja e o cachorro.
Sobre a profissão de caçador de androides (eles usam o termo "aposentar", quando se referem a matar um androide), é mencionada uma figura lendária, o caçador Franklin Powers, que aposentou sete androides. Imagino que isto daria um spin-off bem filme de ação. O caçador mais badass do universo Blade Runner.
A TV é descrita como um aparelho capaz de transmitir sensações: "sentiu a mesma velha dor, a irregular aspereza sob seus pés e, mais uma vez, o cheiro da névoa amarga do céu – não o céu da Terra, mas de algum lugar estranho, distante, e ainda, por causa da caixa de empatia, instantaneamente presente".
O mundo é descrito como radioativo, tomado por uma estranha poeira. Também ocorrem chuvas radioativas, boa parte dos animais foram extintos, muitos humanos migraram para outro planeta. O mundo ficou assim após a apocalíptica Guerra Mundial Terminus. Replicantes foram criados para trabalhar como escravos nas colônias. Entre as colônias, é mencionada a Nova América, em Marte.
"O ar da manhã – transbordando partículas radioativas acinzentadas por todos os lados, encobrindo o sol – arrotava ao redor dele, infestando seu nariz; involuntariamente, farejou a contaminação da morte".
"Mil pensamentos vieram à sua mente, pensamentos sobre a guerra, sobre os dias em que as corujas caíram do céu; lembrou-se de como, em sua infância, descobria-se que uma espécie após a outra era declarada extinta, e como isso era publicado todo dia nos jornais".
A Terra, após a guerra e a migração para as colônias, se tornou um lugar desértico. Poucas pessoas, pouco movimento, um "mundo-silêncio".
Então surgiu a religião do mercerismo, que tem algo de alienígena. É cultivada por meio do dispositivo chamado "caixa de empatia", pelo qual as pessoas têm uma experiência transcendente em que se sentem mais ligadas umas às outras. Por meio do aparelho também é possível compartilhar suas emoções com as outras pessoas conectadas. É uma espécie de internet dos sentimentos.
"Senti todos os outros, em todo o mundo, todos que haviam feito a fusão ao mesmo tempo".
Este aspecto religioso do livro é algo típico de autores formados no ambiente cultural dos anos 60, com toda aquela coisa de psicodelia e Nova Era. O filme deixou isto de lado, mesmo porque nos anos 80 a vibe já era outra.
O autor enfatiza o aspecto poeirento e entulhado do mundo, um mundo cheio de lixo e sucata, como no desenho Wall-E.
"A coleta de resíduos e remoção de entulho tinha se tornado, desde a guerra, uma das indústrias mais importantes da Terra... O planeta inteiro começava a se desfazer em lixo, e mantê-lo habitável para a população remanescente exigia que o lixo fosse removido de vez em quando".
Então ele usa constantemente o termo "bagulho" (em inglês: kipple, um termo cunhado pelo autor), o que enfatiza a visão de mundo como um grande entulho em processo de entropia.
"O universo inteiro está se movendo na direção de um estado final de total e absoluta bagulhificação (kippleization)".
O primeiro Blade Runner não mostra muito esse aspecto poeirento e entulhado do mundo. Esteticamente, o elemento mais marcante é a chuva, que faz parte da ambientação noir do cenário. Já Blade Runner 2049 investe bastante em mostrar cenários cheios de poeira. K visita diversos locais em que uma forte névoa de poeira domina todo o ambiente. Ele encontra apenas uma árvore e já morta e ressecada. Quando sai dos limites da metrópole, passa por enormes lixões frequentados por imensos "caminhões de lixo" voadores. Este é o mundo que Dick imaginou em seu livro.
O mundo de Blade Runner é cheio de enormes lixões. |
O enigma de Deckard
A grande questão envolvendo os filmes é o fato de Deckard ser ou não um replicante. Por décadas a nerdaiada discutiu a respeito e elaborou suas teorias. A eterna dúvida que paira sobre se Deckard é ou não um replicante é uma questão que nos concerne bastante, pois estamos cada vez mais assombrados por este tipo de dúvida.
A partir do momento em que Deckard percebe que um replicante pode ter memórias artificialmente implantadas, no momento em que se dá conta de que a tecnologia é capaz de tal feito, é inevitável que ele questione a realidade das próprias memórias ou, se não ele, o público que assiste o filme.
Agora que realidades simuladas estão cada vez mais presentes na nossa vida, nos questionamos se a nossa vida é uma simulação. Quando um dia o implante ou edição das memórias for uma tecnologia acessível, a incerteza quanto ao que é real ou fantasia se tornará permanente.
A humanidade viveu ciclos de realismo e fantasia. Em tempos mais supersticiosos, tínhamos dificuldade em distinguir o concreto do abstrato, víamos criaturas mágicas por toda parte. Na verdade, hoje não podemos afirmar com certeza que os seres fantásticos que nossos antepassados viam eram mera imaginação. Cientificamente falando, este é um fenômeno que simplesmente não somos capazes de estudar, porque o objeto de estudo já não é acessível, de modo que cabe apenas a especulação.
Algumas das histórias míticas podiam ter algum grau de veridicidade. Nem tudo era real, nem tudo era imaginário. O fato é que, com o avanço das eras, esta disposição para enxergar um mundo surreal foi se tornando cada vez mais escassa, principalmente a partir da era moderna, com o advento das máquinas.
Ironicamente, as máquinas é que estão agora nos despertando para uma nova era do imaginário, por meio da realidade virtual e aumentada. O metaverso desenvolverá um mundo que mescla as realidades. Ora, uma vez que será comum enxergarmos pelos óculos VR objetos virtuais inseridos no cenário real, nossa mente pode entender que está liberado criar visões e algumas pessoas vão enxergar objetos imaginários mesmo sem os óculos. Uma nova era de fantasia está vindo.
Uma cena típica do primeiro filme e que consagrou a estética noir-futurista de filmes do gênero. |
O bladerunnerverso
Este mundo noir-cyberpunk de Blade Runner (mais noir do que cyberpunk, pois o cyberpunk propriamente dito só viria na década de 80 com o Neuromancer, do Philip K. Dick) possui um ritmo bem lento de desenvolvimento em termos de adaptações audiovisuais. O primeiro filme só viria 17 anos após o livro, em 1985. Depois disto, levariam mais 32 anos até que Blade Runner 2049 viesse para expandir o universo.
Um remake literário baseado em Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968) viria com o nome de Blade Runner 1: A Story of the Future (1982), que nada mais é do que uma adaptação novelizada do próprio filme, escrita por Les Martin, com apenas 90 páginas.
Depois viria Blade Runner 2: The Edge of Human (1995), mas escrito por outro autor, K. W. Jeter., baseando-se tanto no livro quanto no filme. Por fim, Jeter também lançou Blade Runner 3: Replicant Night (1996) e Blade Runner 4: Eye and Talon (2000), encerrando a tetralogia literária.
Ocasionalmente, algumas editoras também publicam o livro original de Dick com o título Blade Runner, a fim de facilitar a divulgação da obra, pois convenhamos que Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? não é um título de muito apelo comercial.
Rachael, a bela e misteriosa dama de olhar melancólico. |
Os filmes
No gênero noir é comum o detetive ou policial se apaixonar por uma mulher misteriosa de olhar melancólico. No caso de Blade Runner, obviamente esta personagem é a Rachael.
A cena mais polêmica é a do beijo entre Deckard e Rachael. Não é uma cena fácil de analisar. Rachael visita Deckard, ela já sabe que é uma replicante, mas ele vai deixar ela fugir, porque ela salvou a vida dele quando ele caçava outra replicante. Já há uma história entre eles.
Deckard está cansado e um pouco embriagado, enquanto Rachael vai dando sinais de estar interessada nele. Ele toma iniciativa e tenta beijá-la, mas, confusa, ela se levanta pra ir embora. Aí começa a parte polêmica.
É sempre importante salientar que "não é não" e que, mesmo que tenha rolado um clima entre duas pessoas, se uma delas desiste no meio do caminho, não pode ser forçada a continuar.
Acontece que o Harrison Ford já tinha este typecast bem estabelecido de cafajeste, ou melhor, de galã com uma forte atitude. A intenção não era ser um personagem abusivo e de fato não era assim que o público o enxergava nos anos 70-80.
É complicado explicar para novas gerações certos modelos e gostos das gerações anteriores. Sim, o tipo de cara que o Harrisson Ford interpretava era considerado um "partidão" por muitas mulheres naquela época. Era o cara com iniciativa, que compensava a indecisão das mulheres mais inseguras, insistindo, de modo que a moça acabava se abrindo para o relacionamento. A hesitação inicial era apenas um teste.
Olhando desta forma, Deckard (que a esta altura não era o mesmo cara do livro de Philip K. Dick, mas o personagem típico do Harrison Ford) estava certo de seus sentimentos por Rachael, mas percebeu que ela, confusa com toda essa história de ser uma replicante, hesitava, então ele insistiu a fim de fazer ela tomar uma atitude.
Fisicamente, ele não a força em momento algum. Ele diz "agora você me beija... agora você diz isso e aquilo" e logo vemos que Rachael assume uma atitude e dá o consentimento para que comecem a rolar os "amassos" entre os dois. Ele a manipulou psicologicamente ou a ajudou a se decidir? Se ele a tivesse deixado ir embora sem ao menos tentar, ambos teriam se arrependido?
Enfim, esta cena é complicada porque humanos são complicados (e replicantes, no fim das contas, têm sentimentos humanos). O fato é que Rachael continuou com Deckard após este evento. No final do filme, quando ele volta da última caçada, ela está dormindo na casa dele.
O trágico e dramático encontro da criatura com o criador. |
O melhor personagem, porém, é o replicante Roy Batty. Falar sobre a sua cena final é chover no molhado (pun intended), pois é provavelmente a cena mais marcante, com a linha de diálogo mais memorável do filme: "All those moments will be lost in time, like… tears in rain".
Roy Batty não era simplesmente um monstro de Frankenstein que não sabia amar e se tornou um frio psicopata. Ele era forte, super inteligente, matou pessoas para fugir e sobreviver, mas não parece que tinha orgulho disso. Batty tinha este ar filosófico. Era conhecedor de muitas coisas, discutiu a genética do próprio corpo com seu criador Tyrell e na certa devia ter conhecimento de ética e questões humanistas e religiosas.
Seu encontro com Tyrell foi uma grande cena, pois é o encontro da criatura com o criador. Tyrell age com tranquilidade, mesmo sabendo que o replicante estava ali como uma ameaça. Ela trata Batty como um filho e o filho, num gesto de vingança mitológica, esmaga o crânio do próprio pai. A expressão no rosto de Batty enquanto faz isto não é nem de prazer nem de fúria, mas de luta interior, de agonia e confusão. O ator Rutger Hauer realmente brilhou neste papel.
A cena mais bizarra foi a morte da Pris, interpretada pela Daryl Hannah. Ela era a replicante mais esteticamente peculiar, pois gostava de maquiagem pesada, tinha um cabelo de rockstar e parecia uma boneca viva. Seu jeito de lutar também chama atenção, cheio de piruetas. Quando Deckart atira nela, ela cai se estrebuchando como uma máquina em pane e solta gritos assustadores.
O medo cria a escravidão e vice-versa. |
Então acontece o embate final entre Deckard e Batty. A superioridade de Batty é notável e Deckard, mesmo estando armado, tem que fugir dele, que se diverte como se fosse uma brincadeira de gato e rato. Vendo o pavor do policial, o replicante solta uma de suas memoráveis falas: "É uma experiência e tanto viver com medo, não é? É isto que significa ser um escravo".
No fim das contas, Batty só queria dar uma lição, mostrar para o humano (se é que Deckard era humano) como é viver temendo a morte sempre próxima. Ele ainda salva Deckard de cair do edifício e, serenamente, morre diante dele, após recitar seu poema sobre as lágrimas na chuva. O prazo de validade do replicante expirou e ele "desligou".
Na saída do edifício, Deckard encontra Gaff, o personagem que ficou conhecido como o cara dos origamis. Gaff diz que "é uma pena que ela não tenha sobrevivido", uma referência a Rachael, afinal ela também estava na lista de replicantes procurados. Deckard corre pra casa e curiosamente encontra Rachael viva e dormindo tranquilamente, ou seja, Gaff resolveu mentir no relatório pra salvar a pele da Rachael, em consideração ao Deckard.
Blade Runner se passa em 2019. Tyrell, o dono da megaempresa criadora de replicantes é morto por Batty, mas a empresa segue funcionando. Blade Runner 2049 se passa trinta anos depois e começa com um resumo do que aconteceu neste período: os replicantes foram definitivamente proibidos, o que levou a Tyrell à falência.
São mencionados "modelos antigos Nexus 8 que tinham uma vida útil em aberto", ou seja, diferente dos Nexus 6, do primeiro filme, que só viviam 4 anos, as versões posteriores ganharam a bênção da vida sem limites, talvez porque a empresa chegou à conclusão que os replicantes seriam mais dóceis sem a cruel limitação de 4 anos que os angustiava e levava à rebelião. De toda forma, rebeliões aconteceram mesmo nestes últimos modelos, o que levou ao encerramento do projeto.
Jaré o dileto. |
Em 2020 o ecossistema colapsou de vez e aí entra outra empresa no jogo, liderada por Niander Wallace (Jared Leto), voltada à produção de alimentos sintéticos. Wallace comprou os espólios da Tyrell e reativou a produção de replicantes, porém bem mais obedientes. Os modelos antigos que ainda estavam vivos continuam sendo caçados pelos blade runners.
Na época do lançamento de Blade Runner 2049, foram também lançados alguns curtas animados que expandem a lore da franquia. Foram eles: 2036: Nexus Dawn (2017); 2048: Nowhere do Run (2017) e Blade Runner Black Out 2022 (2017).
Em 2021, a franquia ganhou um anime lançado na Crunchyroll: Blade Runner: Black Lotus.
Blade Runner 2049 traz um upgrade do ambiente tecnológico, afinal a história se passa décadas após os eventos do primeiro filme. Os replicantes de Wallace são melhores que as versões de Tyrell e, de bônus, são extremamente obedientes, mantidos em rédea curta pelas empresas que os utilizam. Existe um teste psicológico que é rotineiramente usado para detectar qualquer sutil mudança nesse estado de submissão.
Ryan Gosling e sua eterna cara de "não quero comer o cereal". |
Curiosamente, os novos blade runners, responsáveis por "aposentar" os replicantes obsoletos, são também replicantes e um deles é o nosso protagonista, o K, interpretado por Ryan Gosling. Ele foi a escolha perfeita para este tipo de personagem, pois Gosling é conhecido por seus papéis de caras apáticos, expressando apenas uma constante sensação de desconforto.
É assim que K parece se sentir. Ele é um estranho no mundo dos humanos, todavia, não nutre qualquer sentimento de rebeldia, já que é geneticamente programado para obedecer. Desta forma, ele parece encarar com naturalidade a sua servidão, cumprindo as ordens da patroa sem nenhum questionamento. É o oposto do Deckard, que era um cara difícil de lidar, teimoso, independente e sarcástico.
O replicante K leva uma vida "humana" e "normal". Depois do trabalho volta pro seu pequeno apartamento e convive com sua parceira Joi. Mas aí tem um importante detalhe: Joi é uma inteligência artificial.
Neste aspecto, o filme combina bem com o zeitgeist atual, agora que vislumbramos o horizonte de evento de nossa futura civilização cibernética, com toda essa coisa de inteligência artificial, robôs humanoides e metaverso.
Comida com skin virtual. Só assim pro Ryan Gosling conseguir comer. |
Tudo isto está no filme. Vemos exemplos de realidade aumentada quando Joi serve um prato holográfico que funciona como uma skin, dando uma cara mais apetitosa à gororoba que o K ia comer.
Isto nos parece deprimente, mas, acredite, com a popularização da realidade aumentada, botar skin na comida pra deixá-la mais atrativa vai se tornar uma trend. Ora, hoje em dia as pessoas alteram até a própria aparência, usando filtros fofinhos dos aplicativos. Usar skins virtuais no mundo real já está se tornando normal.
Diferente da nossa realidade aumentada, que depende de óculos de VR, em Blade Runner existe algum tipo de projetor holográfico que literalmente imprime feixes de "luz sólida" no mundo físico. A Joi é projetada com um corpo holográfico que parece ter certa substância.
Quando ela ganha um projetor portátil e sai na chuva, as gotas de chuva de fato batem e escorrem em seu corpo. Só que ela não é tããão sólida e seu corpo tem uma certa translucidez. Logo, é fácil distinguir uma pessoa holográfica de uma real.
Mesmo sendo visivelmente um ser artificial, esta IA possui um grau de complexidade afetiva que cria a impressão de ser uma pessoa com sentimentos e consciência. É assim que K a trata, como uma parceira romântica genuína.
Por outro lado, há momentos em que ele percebe a ilusão de seu relacionamento. Por exemplo, quando ele está abraçando Joi na chuva, ela entra num modo pause pra que ele atenda o telefone. Depois ele simplesmente a desliga e guarda o projetor no bolso. Ela não é uma pessoa real e independente. Ela é produto de um dispositivo e pode ser pausada, ligada e desligada.
Este relacionamento entre K e Joi nos apresenta diferentes camadas da questão do livre-arbítrio e do que é o "eu" verdadeiro. Se fica claro que Joi não é um ser totalmente livre e que ela age conforme foi programada pela empresa que vende este produto, K também parece com ela nesse aspecto, porém em um grau menor. Ele tem seu livre-arbítrio limitado por uma programação. Ele é um servo dos humanos, como Joi é serva dele.
E quanto a nós, humanos, até que ponto somos livres ou escravos de algum tipo de programação?
A trama de Blade Runner 2049 começa quando K é enviado para "aposentar" um velho replicante. Após matá-lo, ele encontra uma caixa enterrada que contém restos mortais de uma replicante fêmea. A autópsia revela que ela morreu de complicações no parto. Esta descoberta é chocante: uma replicante foi capaz de engravidar!
K resolve investigar o caso por conta própria, mergulhando em um rabbit hole em busca da verdade. Para sua surpresa, ele descobre que ele era a própria criança nascida de uma replicante. Não pera, depois vem outro plot twist e ele descobre que a criança era outra pessoa, privando-o de seu breve momento de importância. No fim, ele acaba voltando a ser apenas um replicante como todos os outros, mas se sacrifica pra salvar o segredo da criança replicante.
É interessante a diferença comportamental dos replicantes fabricados pela Wallace e os antigos da Tyrell. Os antigos modelos eram rebeldes, trabalhavam à força e viviam amargurados. Wallace conseguiu criar seres com tal nível de customização cerebral que eles eram até programados para não sentir qualquer desejo de revolta.
Um curioso exemplo disto é o fato de que os novos replicantes sabem que suas memórias de infância são implantes. Pelo menos é o que se nota no caso de K. Ele sabe que foi projetado em um laboratório, que é geneticamente programado para obedecer, que recebeu implantes de memória com o objetivo de lhe dar uma sensação existencial mais humana e aceita tudo isto estoicamente.
Normalmente, em histórias sobre memórias falsas, a pessoa tem um momento de choque quando descobre que são falsas. Neste filme, porém, acontece o inverso. K vivia "tranquilo" sabendo que tinha memórias falsas, mas depois que investiga seu passado, descobre que eram verdadeiras e entra em crise. Parece até que ele sente um alívio quando, depois, descobre que elas eram falsas mesmo e pertenciam a outra pessoa, a verdadeira criança replicante.
Agora ele será caçado pelos blade runners, já que é ilegal um replicante ter filhos, mas também será caçado pela Luv, braço direito do Wallace, pois o megaempresário tem a ambição de criar replicantes capazes de se reproduzir, a fim de turbinar a sua produção e a colonização interestelar.
Falemos de Wallace. Interpretado pelo versátil Jared Leto, ele é um grande gênio e visionário. Tyrell parecia ser apenas um bilionário que tocava o negócio dos replicantes visando lucro. Wallace, por sua vez, é um megalomaníaco literalmente com complexo de Deus. Ele retomou a colonização interplanetária, alcançando 9 mundos, mas ambiciona expandir seu império de forma ilimitada, "conquistar os céus".
Ora, como o próprio Wallace diz, as civilizações sempre experimentaram prosperidade ao empregar trabalho escravo, e agora os replicantes são os novos escravos, bem mais eficientes que humanos, mais obedientes e, caso ele solucione o mistério da reprodução, poderá produzi-los aos bilhões e enviá-los por todo o espaço.
Luv, cujo nome obviamente soa como Amor, foi projetada para ser a assistente mais próxima de Wallace. Ela é tremendamente fiel a ele. Mais ainda, ela o venera, pois foi programada para tal. A fim de realizar o grande sonho de Wallace, Luv vai em busca de K, para desvendar esse mistério da criança replicante.
Diferente da maioria dos replicantes, Luv é uma privilegiada. Em uma cena, vemos ela tendo as unhas minunciosamente pintadas por um empregado. Ela ocupa um cargo de alta patente na megaempresa de Wallace, é a pessoa mais próxima dele. Também tem uma atitude de imponência e, quando luta contra K, ela mantém esta imponência até o fim. Mesmo quando ele começa a afogá-la, ele se debate sob a água grunhindo como uma fera.
O Harrison Ford, convenhamos, parecia estar bem desleixado neste último filme, assim como foi nos últimos Star Wars. O cara já nem se esforça muito em entrar no papel, mas de toda forma, o fan service foi feito. Embora Blade Runner 2049 tenha K como protagonista, a história gira em torno de Deckard e termina o que começou há 32 anos: o velho Deckard enfim encontra a filha que teve com Rachael.
O poeirento mundo de Blade Runner. |
Parabéns pela postagem. Bastante abrangente. No meu blogo tem uma postagem similar acho que vc iria gostar...
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