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The Wandering Earth, quando a Terra virou literalmente uma espaçonave

The Wandering Earth (2019)

Por acaso vi um comentário nas internets sobre um filme em que colocavam propulsores na Terra para literalmente transformá-la em uma nave espacial: The Wandering Earth (2019). Minha reação imediata foi: "Say no more. Quero ver esse filme!"

A princípio parece uma ideia bem boba, mas convenhamos que é uma ótima premissa pra um filme sci-fi. Fui logo no Google procurar por esse tal Terra à Deriva e eis que tinha na Netflix. Assisti de uma só vez.

The Wandering Earth (2019)

The Wandering Earth (2019)

A história é a seguinte: em 2061 o Sol começou estranhamente a se expandir e os cientistas estimaram que em 100 anos ele destruiria a Terra. O projeto de salvação do planeta e da humanidade consistia em construir 10 mil enormes propulsores em toda a superfície, de modo que eles empurrariam a Terra numa viagem para fora do sistema solar e, após 2500 anos, para próximo de outra estrela, estalebecendo ali sua nova moradia.

Pois é, é uma ideia ousadíssima e com milhares de chances de dar errado. A primeira coisa que dá errado é que, ao passar por Júpiter, a Terra é atraída com uma força gravitacional que superou a dos propulsores. Júpiter, o devorador de cometas e meteoros, agora devoraria a Terra.

The Wandering Earth (2019)

O filme não se dá ao trabalho de ficar super-explicando as consequências ambientais de toda essa empreitada, o que é bom. Estas consequências ficam visíveis, de modo que sao auto-explicativas. Vemos, por exemplo, terremotos, o esfriamento do planeta que entra em uma nova era do gelo, já que está se afastando do Sol,  as cidades aparecem cobertas por imensas montanhas de gelo, o que podemos deduzir que foram primeiro inundadas por gigantescos tsunamis (provocados pelo fato dos propulsores pararem a rotação da Terra - isto eles explicam em uma cena) que depois congelaram. O fenômeno mais impressionante, porém, é quando a atmosfera da Terra começa a ser sugada por Júpiter.

Eis que alguém tem uma ideia ousada (mais ousada que a ideia dos propulsores): aumentar o alcance dos jatos propulsores, transformando-os em feixes de modo a alcançar Júpiter e explodir o gigante gasoso! A onda de choque gerada na explosão empurraria a Terra para longe, libertando-a da prisão gravitacional.

The Wandering Earth (2019)

The Wandering Earth (2019)

Confesso que eu não esperava muito do filme e já estava satisfeito com a ideia da Terra viajando pelo espaço. Desliguei minha suspensão de descrença e fui curtindo a viagem sem grandes expectativas. Aí eis que o sujeito me vem com essa de explodir Júpiter e meu interesse pelo filme redobrou. Essa eu quero ver.

Claro que a solução não viria tão fácil. O feixe não conseguiu alcançar Júpiter. Aí veio outra opção. Acontece que, além dos propulsores, também foi construída uma enorme estação espacial que seguiria adiante da Terra e tinha o propósito de ser um plano B, carregando milhares de embriões e o código genético das espécies da Terra, como uma arca de Noé cósmica.

O ideal era salvar a Terra, que então continha 3,5 bilhões de pessoas (a outra metade morreu durante os tsunamis), mas, se algo desse errado, a estação espacial seguiria sozinha. Todavia, um dos pilotos da estação resolve tomar uma medida extrema para salvar a Terra: levar a estação até próximo de Júpiter e explodí-la. A quantidade imensa de combustível da nave geraria uma explosão potente o bastante para "acender" a atmosfera de hidrogênio jupiteriana.

The Wandering Earth (2019)
HAL 9000, digo, MOSS.

Temos um breve momento claramente inspirado em 2001, quando a IA da nave, MOSS, se opõe ao plano e tenta impedir o humano, mas ele taca fogo na máquina e executa o plano, destruindo a nave e se sacrificando para salvar a humanidade.

Aí acontece a coisa mais pirada do filme: Júpiter explode e sua onda de choque bate na Terra, empurrando-a para longe. A humanidade está salva e o planeta segue em sua viagem milenar pelo espaço.

Convenhamos que, em vez de construir 10 mil propulsores para turbinar a Terra numa louca viagem cheia de imprevistos, faria mais sentido construir milhares de naves e levar a humanidade na direção de algum planeta habitável. A entrada da Terra em outro sistema solar, aliás, seria bem problemática, afetaria a harmonia gravitacional deste novo sistema, poderia gerar uma grande bagunça. 

Além disso, sem rotação a Terra enfraqueceria seu campo magnético, sua atmosfera se esvairia no espaço. Após a viagem de dois mil anos, ela chegaria no destino na forma de uma rocha infértil. Mas isto não importa. Esta é uma história de sci-fi pesado e é tão mais divertida quanto mais a gente se deixa levar pelo absurdo. 

Bom notar que o filme é baseado em um conto homônimo de Cixin Liu (publicado em 2000), um brilhante autor de sci-fi contemporâneo que está cada vez mais ganhando notoriedade. Já comentei anteriormente sobre este autor em outro post¹. 

A continuação, The Wandering Earth 2, está prevista para 2023. Essa eu quero ver.

The Wandering Earth (2019)

O livro

Muitas das questões que levantamos ao ver o filme são bem respondidas no livro. O livro vai descrevendo em detalhes cada etapa deste longo processo de viagem espacial. Primeiro foram instalados os propulsores, alguns maiores que o monte Everest. Antes de tudo a função dos propulsores era parar a rotação da Terra, afinal, com a Terra girando, a propulsão não a levaria a lugar algum. 

Só esta primeira etapa levou 40 anos. Foi a chamada Braking Era (A Era do Freio - ou Travamento). O filme não tem tempo pra mostrar nada disso, então pode dar a impressão que a quebra da rotação foi brusca. Assim como no filme, é explicado que os propulsores são perpetuamente alimentados com rochas levadas por caminhões, usando o processo de fusão nuclear para gerar energia.

Também é explicado que a Lua recebeu propulsores e foi empurrada para alonge da Terra, evitando o risco de uma colisão. Além disso, a viagem não foi feita em linha reta, que é a impressão visual que o filme passa. A Terra continuou orbitando o sistema solar por um tempo, dando voltas cada vez maiores, até finalmente se libertar

Um detalhe curioso é que o autor menciona que, naquele futuro em que acontece a história, a engenharia genética foi usada para aumentar a inteligência das pessoas, produzindo verdadeiros gênios, de modo que seriam capazes de desenvolver a tecnologia necessária para a grande empreitada.

Falei acima sobre a opção de viajarem em naves, em vez de levar a própria Terra. Pois bem, o livro também responde isto. Há na humanidade esta polarização quanto ao método de fuga. Os que pensam em deixar a Terra e fugir em naves são chamados de Leavers, os que querem levar a Terra junto são chamados de Takers. Pelo visto, eu seria um Leaver.

O argumento Taker é explicado para justificar por que a humanidade optou por esta estratégia: uma vez que a viagem levaria milhares de anos, seria impossível manter um ecossistema sustentável dentro das naves por tanto tempo. 

O maior problema, porém, é que a estrela mais próxima, Proxima Centauri, não tem planetas adequados para a habitação humana e, caso fossem em naves, teriam que ir muito mais longe, viajando por centenas de milhares de anos até encontrar um sistema com um planeta parecido com a Terra. É, esse argumento aí me pegou.

O jeito então era levar a montanha até Maomé. Ou: já que Proxima Centauri não tem uma Terra, levamos a Terra até Proxima Centauri.

"There are no suitable planets in orbit around Proxima Centauri. The nearest fixed star with inhabitable planets is eight hundred and fifty light-years away. At present, the fastest spaceship we can build can only travel at 0.5 per cent of the speed of light, which means it would take us one hundred and seventy thousand years to get there. A spaceship-sized ecosystem would not last for even one-tenth of the voyage. Children, only an ecosystem the size of Earth, with its unstoppable ecological cycle, could sustain us indefinitely!"

Uma grande mudança cultural que o livro enfatiza sempre é como a humanidade passou a temer o Sol em vez de admirá-lo. Agora a simples aparição do Sol no horizonte era uma cena aterrorizante para as pessoas.

"In fact, we only began to fear the Sun three or four centuries ago. Before that, humans were not afraid of the Sun. It was just the opposite. In their eyes, the Sun was noble and majestic."

Sunshine (2007)

É interessante comparar esta abordagem de The Wandering Earth com o filme Sunshine (2007). Em Sunshine, o Sol, ao contrário, está esfriando, de modo que a Terra entrou em uma era glacial. Uma nave carregada de bombas nucleares é enviada ao Sol para "acendê-lo" de novo. Neste filme, o astro é sempre mostrado como algo belo e majestoso, que causa tanto encantamento que há até uma memorável cena em que um dos astronautas fica hipnotizado olhando o Sol enquanto é pulverizado pelo vento solar. 

O psicólogo da equipe, também fascinado, tenta se comunicar com o astronauta em seus últimos momentos e pergunta: "Kaneda, what do you see?". É como se ele quisesse saber de alguém que está transcendendo o que ele está vendo no além. Tal é a noção mística e admirada que as pessoas têm pelo Sol em Sunshine. The Wandering Earth segue no caminho oposto: o Sol se tornou um monstro do qual a humanidade precisa urgentemente fugir.

Notas:

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