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Dadaísmo e psicodelia em Doom Patrol

Doom Patrol (2019-)

A primeira vez que vi o Doom Patrol foi numa rápida participação desta equipe na série dos Titans¹. Trata-se de uma equipe beeem antiga no mundo da DC, criada em 1963, mas que, apesar de toda sua idade, nunca ganhou alguma popularidade.

Dar uma série para um grupo tão impopular é uma aposta arriscada, mas o James Gunn já tinha mostrado que era possível pegar personagens desconhecidos e transformá-los em super astros, como foi o caso dos Guardiões da Galáxia. 

Doom Patrol, além de ser uma aposta incomum no mundo das séries de super-heróis, tem um estilo bem peculiar, voltado para o nonsense e o humor bizarro. Neste aspecto ela se assemelha a Legion, da Marvel², com a diferença que em Legion os protagonistas são extremamente poderosos, enquanto a equipe de Doom Patrol parece um bando de trapalhões.

De fato, o grupo parece inspirado no clássico show de horrores dos circos antigos, pessoas com deformações e habilidades ou características estranhas que, por isto, se tornam uma atração. Ao longo de toda a série, os poderes dos personagens parecem mais com issues e fardos do que propriamente habilidades heroicas.

Doom Patrol (2019-)

Cliff, o Robotman, é um cara que teve o corpo destruído em um acidente e seu cérebro foi a única parte preservada dentro de um corpo robótico que parece o Homem de Lata de O Mágico de Oz (referências ao Mágico de Oz, aliás, são frequentes na série e há até uma personagem chamada Dorothy). Neste corpo metálico, Cliff não tem sensações humanas e os constantes defeitos mecânicos da máquina só tornam sua vida ainda mais irritante. Para piorar, o seu cérebro, sua única parte humana, desenvolve uma doença degenerativa.

Elasti-Girl tem a capacidade de mudar de forma e esticar as partes do corpo, um poder já bem conhecido no mundo dos quadrinhos. Só que ela não consegue usar esta habilidade da mesma forma badass de uma Sra. Incrível ou um Sr. Fantástico. O corpo dela "derrete" e se deforma em momentos de estresse, de modo que em certas ocasiões ela precisa ser carregada em um balde ou um saco porque não consegue manter sua forma humana. É um "poder" que mais parece uma doença.

O Homem Negativo teve seu corpo inteiro queimado em um acidente, de modo que vive a esconder sua aparência sob faixas, como uma múmia viva. Um ser alienígena de pura energia usa seu corpo como hospedeiro, mas é uma relação complicada, já que não há uma comunicação clara entre os dois.

Crazy Jane é a mais problemática, porém mais poderosa. Como fruto de traumas de infância e experimentos científicos, ela possui 64 personalidades, bem como uma variedade de poderes. O mundo mental de Jane é bem rico a vasto, o que é bastante explorado ao longo da série.

Enquanto os outros três membros remontam à equipe original, criada por Arnold Drake, Bob Haney e Bruno Premiani em 1963, Crazy Jane faz parte da reformulação feita por Grant Morrison em 1989, que tornou as histórias ainda mais psicodélicas, o que é a especialidade de Morrison.

Por fim, a série acrescentou o Cyborg, dos Titans, sabe-se lá por quê. Ele acaba sendo o menos freak do grupo e o menos problemático, mas também tem seu drama particular, que é a mágoa pelo pai que o transformou em um ciborgue.

Doom Patrol (2019-)
Uma clara referência a O Mágico de Oz.

Todos os personagens vivem constantemente enfrentando suas crises pessoais. O Cliff vive o remorso de ter sido um pai irresponsável; Elasti-Girl sofre a frustração de ter perdido a brilhante carreira de atriz por causa de sua deformidade; Homem Negativo viveu atormentado pelo preconceito devido à sua sexualidade; Jane, então, nem se fala. É a mais problemática de todas, pois foi abusada na infância e todas as suas personalidades vivem numa constante luta para proteger este seu cerne psíquico que é a frágil criança interior.

O grupo existe graças ao cientista e explorador Niles (interpretado por Timothy Dalton, que curiosamente teve um papel bem parecido em Penny Dreadful, como o aventureiro Malcolm que recrutou pessoas com habilidades diversas, montando um time de freaks). Niles é uma espécie de professor Xavier do grupo, o recrutador e líder que abriga os superseres em sua mansão, só que ele está longe de ter o carisma de Xavier e alguns membros da equipe, como o Cliff, claramente o odeiam.

Os constantes dramas na vida de cada um dos personagens são intercalados por aventuras extremamente bizarras e surreais. É aí que entra o lado Grant Morrison da série. Aliens, robôs gigantes e criaturas interdimensionais são frequentes na rotina destes heróis trapalhões. Ao longo da jornada conhecem aliados tão esquisitos quanto eles, como o Flex Mentalo (outra criação de Morrison), um cara musculoso de sunga que tem poderes psíquicos acionados cada vez que ele flexiona um músculo.

Doom Patrol (2019-)

Bem no começo do primeiro episódio, já é calibrado o tom nonsense da série, quando vemos a equipe viajar para outra dimensão ao entrar pela boca de um jumento. Pois é, não é algo para se entender mesmo. Apenas aprecie. 

Mais adiante, eles conhecem um grupo de vilões chamado Irmandade de Dadá, que é uma clara referência ao dadaísmo, movimento artístico, filosófico e intelectual baseado no absurdo e na falta de sentido e do qual Grant Morrison era um grande simpatizante.

Este é um bom termo para descrever Doom Patrol: é uma série dadaísta.

De todo o elenco, quem desde o início chama mais atenção é o Brendan Fraser. Fraser é o "Tom Cruise que não deu certo". A partir do filme A Múmia (1999), ele começou a ficar famoso como um novo galã de filmes de aventura e comédia e desde então ele nunca parou de atuar, mas ele sumiu do cinema mainstream, dando aquela sensação de "por onde anda Brandan Fraser?".

Ele teve problemas de saúde, depressão, sofreu um abuso sexual, engordou, perdeu cabelos, enfim, já não tinha a aparência de galã de antes, diferente, por exemplo, do Tom Cruise que até hoje dorme no formol. Assim ele acabou se afastando da indústria, participando apenas de pequenos papéis.

Doom Patrol, portanto, pode ser considerado o grande retorno de Fraser à atuação e um retorno triunfal, pois seu personagem é marcante, debochado e desbocado, sempre xingando tudo e todos. Ele resolveu se assumir como um anti-herói e um anti-galã e parece que encaixou muito bem nesta posição.

Diane Guerrero; Doom Patrol (2019-)
Diane Guerrero se desdobrando nas várias versões de Jane.

Outro destaque é para a Diane Guerrero que entrou no modo full Tatiana Maslany (ver resenha de Orphan Black³), tendo que interpretar diversas versões de sua personagem, já que Jane tem múltiplas personalidades.

Enfim, Doom Patrol é uma série beeem diferente da maioria do gênero. Ela consegue ser original, fugir da fórmula pronta dos super heróis e ousar muito no absurdismo, no dadaísmo, algo raro de se ver mesmo em filmes e séries de super heróis, pois a maioria tenta adotar um nível mais "realista" ou, quando muito, dar uma explicação verossímil, científica ou mágica pra tudo. Doom Patrol não se preocupa em explicar nada. As coisas acontecem das formas mais loucas e ninguém faz ideia do porquê.

Também vale mencionar  a excelente abertura da série, que ilustra cada um dos personagens de uma forma bem estética e com uma música-tema igualmente agradável. É uma abertura que dá vontade de assistir e reassistir a cada episódio.  

Doom Patrol (2019-)

Notas:



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