Ao contrário do que pensam alguns moderninhos, que acham que a roda foi inventada depois dos anos 2000, a diversidade sexual existia e era explícita nos anos 80-90 e este fato ficou registrado na grande mídia.
Termos como "homossexual" e "bissexual" eram conhecidos pelas pessoas em geral. Não era um conceito estranho, apenas pouco convencional. Em vez do longo termo LGBTQIA+ (e provavelmente esta sigla aumentou, se você está lendo isto alguns anos depois da data de publicação), havia uma versão bem simples e que qualquer pessoa comum podia lembrar: GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes). Obviamente não era um termo que descrevia em minúncias toda a possível diversidade de opções sexuais, mas ora, LGBTQIA+ também não. O importante era a ideia: existem outras opções sexuais além da heterossexualidade. É o que bastava saber.
Falando em termos, lembro também de um que saiu de moda há alguns anos, o "metrossexual". Era uma forma fancy de se descrever como um homem que cuidava bastante da aparência e que não queria ser confundido com gay ou afeminado. Lembro de uma amiga que uma vez brincou chamando um metrossexual de "centímetro sexual".
Já existia a noção de que existem espectros na sexualidade, pois algumas pessoas se declaravam gays, mas também havia quem se dizia apenas "afeminado" ou "andrógino". Pepeu Gomes já registrou em música a androginia ao cantar em 1983:
"Ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino.
Se Deus é menina e menino,
Sou masculino e feminino".
Se Deus é menina e menino,
Sou masculino e feminino".
Pepeu Gomes viveu como um homem hétero. Casou três vezes com mulheres, teve vários filhos, foi um "pai de família" convencional, mesmo assim, cantava acerca de sua androginia. Este termo, aliás, era relativamente comum para descrever artistas. A androginia era algo que fascinava o público e era o caso, entre outros, de Ney Matogrosso e David Bowie.
Ney Matogrosso até fazia piada disto, pois, cheio de maquiagem e com um figurino exótico, em 1981 ele cantava enquanto requebrava naquele jeito que só ele sabia requebrar:
"Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem.
Se correr o bicho pega,
Se ficar o bicho come.
Porque eu sou é home.
Porque eu sou é home.
Menino eu sou é home.
Menino eu sou é home.
E como sou".
Tem outra, Calúnias, de 1983, que é hilária, pois descreve o que parece ser um senhorzinho bem pai de família convencional que na juventude curtiu a "brotheragem". Até a escolha do nome da esposa, Telma, nos faz imaginar um casal bem carola e antiquado.
"Diz que vai dar, meu bem,
Seu coração pra mim.
Eu deixei aquela vida de lado
E não sou mais um transviado.
Telma, eu não sou gay.
O que falam de mim são calúnias, meu bem,
Eu parei...
Não me maltrate assim. Não posso mais sofrer.
Vamos ser um casal moderno.
Você de bobs e eu de terno.
Eu sou introvertido até no futebol.
Isso tudo não faz sentido.
E não é meu esse baby doll.
Telma, ô Telminha, não faz assim comigo.
Não me puna por essas manchas no meu passado.
Já passou, esses rapazes são apenas meus amigos.
Agora eu sou somente seu, meu amor".
Artistas gays, bissexuais ou simplesmente andróginos foram muito comuns, estavam no mainstream, apareciam na TV, tocavam nas rádios. Não havia um boicote a estas pessoas por causa de sua opção sexual. Pra falar a verdade, ninguém se importava em curtir um artista com base em sua sexualidade. O importante era gostar da música e da arte de quem quer que fosse. A exceção, como sempre, ficava só para grupos específicos de pessoas reacionárias que não representavam a maioria da população.
O mágico Woodstock. |
A verdade é que um dos grandes responsáveis por esta liberação sexual no Brasil foi a influência cultural americana que, por sua vez, experimentou a liberação nos anos 60-70 em um grande movimento social sem precedentes. Foi uma atitude a princípio adotada com mais intensidade pelos hippies e que acabou plantando uma semente na conservadoríssima sociedade protestante americana.
Eu diria que o Woodstock foi um evento místico que, congregando esta energia reprimida e ali representada naqueles jovens, criou a poderosa egrégora da liberação sexual que rapidamente se expandiu na nação e no mundo.
Uma verdade sobre o capitalismo é que ele é por natureza sincrético. Todo comerciante tende ao sincretismo, pois, uma vez que você não pretende perder clientes e sim alcançar o máximo possível, é melhor ter a mente aberta para culturas e pessoas diferentes. Já era assim lá com os fenícios.
O capitalismo americano nasceu nas águas de batismo do protestantismo¹ (e o protestantismo, com seu espírito separatista e independentista, forjou o cerne do espírito americano de busca de independência e liberdade, a ponto de levar a nação a se tornar imperialista, pois a melhor forma de não ser dominado é se tornando o mais forte), mas com o tempo se imbuiu de todo tipo de influência. Acolheu com muita satisfação os judeus e sua milenar experiência com comércio, também árabes, chineses, europeus, latinos, enfim, todos que chegavam à terra das oportunidades davam sua cor e doses de sua cultura ao caldeirão cultural americano.
Os hippies eram contra o capitalismo, mas o capitalismo não se incomoda em absorver influências mesmo daqueles que o criticam. Ele aceita tudo, como um bom sincrético. Não à toa, hoje existem lojas que vendem camisas com foto de Guevara ou o símbolo da foice e do martelo. O capitalismo não se importa com isto. Se dá pra fazer dinheiro, ele acolhe a ideia. Deus e o Diabo têm suas lojinhas de souvenires.
A liberação sexual é um conceito europeu, particularmente francês. Já era discutida lá nos tempos de Sartre e encontrou no acolhedor capitalismo americano a encubadeira onde pôde se desenvolver e proliferar. Assim, ela foi propagada pelo mundo por meio do cinema e da música, por meio do instrumento de propaganda do capitalismo americano. No Brasil, bastante simpático aos EUA desde os tempos do governo militar, foi rapidamente acolhida.
É algo irônico. O pensamento militar brasileiro era claramente reacionário e carola, de raízes católicas. A censura era institucionalizada e visava não apenas proibir manifestações políticas consideradas nocivas (o comunismo em si), como tudo que fosse contra a moral e os bons costumes. Os artistas tinham que ser criativos pra burlar a censura, fazendo piadas de duplo sentido e brincando com as palavras.
Sendo simpático aos EUA, o governo militar brasileiro abriu as portas para a importação de sua produção cultural que, ironicamente, trouxe uma estética contrária ao moralismo destes mesmos militares. A colorida influência de David Bowie, Elton John, Boy George, Sher, Prince, Pete Burns, Madonna, Michael Jackson e tantos outros alimentou os artistas brasileiros.
A outra ironia é que os artistas, muitos deles simpáticos ao comunismo, aderiam à liberação sexual como uma forma de combater o rígido sistema moralista dos reacionários. Eram comunistas, ou simpatizantes do comunismo, que abraçavam uma cultura que nasceu no ninho do capitalismo e voou pelo mundo como uma propagadora do capitalismo e seu ideal de estilo de vida livre.
Havia, alás, comunistas mais radicais que percebiam isto e criticavam a liberação sexual como um estilo de vida burguês. Pois é, também existe comunismo reacionário e careta. É o mais coerente com seu sistema de crenças, eu diria, pois o comunismo raiz e ortodoxo é coletivista e enxerga as pessoas como peças ativas e responsáveis por uma sociedade organizada e dedicada constantemente à busca deste dito bem comum. Inevitavelmente, um sistema assim dedicado a uma causa coletiva e a uma ordem social, torna-se moralista, como um sistema religioso².
Assim, os comunistas mais caretas eram contra a "libertinagem" promovida pelo capitalismo, pois esta tendia ao individualismo, a focar o indivíduo na sua busca particular subjetiva pelo que considera felicidade e prazer, tendo o tal bem comum como algo secundário ou mesmo sem importância. Já os comunistas mais "americanizados", mais dados à busca da liberdade individual aos moldes capitalistas, eram no Brasil apelidados de "esquerda festiva". Ora, o Brasil é o pais da festa e, para frustração dos comunistas caretas, foi a esquerda festiva que frutificou.
Com o fim do clima de censura e vigilância do governo militar, a mídia foi a primeira a buscar abrir as portas e janelas pra ventilar a casa com liberdade de expressão. Por isto a TV naquela época era tão sem filtros. Havia erotismo em horário nobre e apresentadores falando palavrão em programa ao vivo com a maior naturalidade. Comparada com aquela época, a TV de hoje é bem careta.
O fato da mídia estar repleta de diversidade sexual revela bem o zeitgeist dos anos 80-90 quanto ao sexo. Havia um espírito de liberação, só não havia o espírito do politicamente correto, pois fazer piadas sobre opção sexual, sobre sair do armário etc, era algo também comum, assim como era comum fazer piada envolvendo todo tipo de estereótipo na sociedade (anão, loira, negro, gordo, magro, branquelo, japa, gringo, português, nordestino, carioca, rico, pobre, etc, etc). Os tempos de censura criaram no povo aversão ao cerceamento da liberdade de expressão, de modo que não havia ambiente para o politicamente correto se instalar.
É difícil explicar para a atual geração corretíssima como estas coisas não eram consideradas ofensivas nem por quem fazia a brincadeira nem por quem era alvo. Obviamente havia sim o bullying e a chacota com clara intenção de ser ofensiva e talvez aí esteja a diferença daqueles tempos para os dias de hoje: as pessoas sabiam diferenciar os contextos. Uma pessoa sabia quando você estava fazendo uma piada dela por mero gracejo ou para ofender. No primeiro caso, ela riria com você, no segundo, ela te xingaria de volta.
As relações humanas estão cheias destas sutilezas, de linguagem tácita, de situações e falas que só podem ser entendidos em um contexto bem específico e temporário. Parece que a humanidade se tornou mais robótica e menos capaz de ler tais contextos, de modo que, como um algoritmo do Youtube, as pessoas têm dificuldade em analisar uma cena e entender se há de fato algo ofensivo ou não.
Mas voltando ao assunto. Outros bons exemplos da presença de gays na grande mídia foram Cazuza, Renato Russo, Sandra de Sá, que todo mundo sabia que era, nos termos da época, "sapatão". Havia muitas cantoras que as pessoas sabiam que eram gays e ninguém por isso as boicotava. Também não eram ouvidas pelo simples fato de serem gays. Não eram artistas consumidas só pelo nicho gay.
Na TV tinha apresentadores assumidamente gays, inclusive com trejeitos que "davam pinta" pra não deixar dúvidas disso. Foi o caso do Clodovil e Leão Lobo, assistidos pelas tradicionais donas de casa sem acanhamento.
Um exemplo ainda mais chamativo era do ator Jorge Lafond, o mais famoso gay negro do país. Por anos participou do programa A Praça é Nossa, interpretando a Vera Verão, uma travesti valente que não aceitava desaforo. Ficou famosa pelo seu gesto de "rodar a baiana" e soltar o bordão "Êpa, bicha não! Eu sou quase mulher".
As pessoas sabiam que estes artistas eram gays ou bissexuais. No chamado meio artístico havia mais liberdade a este respeito, o que acabava influenciando a população em geral por meio da TV. Claro que, assim como havia a aceitação, também havia o preconceito. Cazuza já expôs o uso pejorativo dos termos ao cantar em 1988: "Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro".
O preconceito havia, como há hoje, em diversos graus, mas não era algo tão intenso na sociedade a ponto silenciar artistas. Alguns de fato optavam por não "se revelar", como ocorre até hoje, mas é uma questão de intimidade da pessoa. Aqueles que tornavam pública a sua sexualidade não tinham a carreira cancelada por causa disso.
A existência de tantos artistas aparecendo e fazendo fortunas na grande mídia, sendo consumidos por milhões de brasileiros, mostra que a diversidade sexual já era algo presente na consciência coletiva.
Roberta Close na finada revista Manchete. |
Esta diversidade ia além da homossexualidade e da androginia e chegava até a transexualidade. Não se usava este termo e sim travesti. Era, porém, o suficiente para que as pessoas entendessem que um homem de alguma forma se identificava como mulher ou como feminina. Bem mais raro era o caso oposto, de uma mulher vestida e se portando como homem. A travesti mais famosa foi a Roberta Close, que tinha sempre presença garantida nos desfiles de carnaval, posou na Playboy e apareceu nas capas de muuuitas revistas.
O Silvio Santos tinha um quadro em que promovia desfiles de travestis, isto em pleno domingo, para a família tradicional brasileira que assistia em massa. Entre os jurados tinha o Pedro de Lara que era uma espécie de caricatura de velho machão reacionário e as pessoas riam dele pela forma como ele ficava intimidado com as travestis.
O conceito de drag queen já era conhecido no Brasil, popularizado pelo cinema americano. Creio que no Brasil a drag queen mais famosa foi a Elke Maravilha, uma figura pitoresca, com um jeito e um figurino bem peculiar. Parecia uma colorida pavoa com seus penteados e roupas espalhafatosas e todos a admiravam. Drag queen era um conceito estético que poderia ser adotado por homens, mulheres ou trans.
Havia o curioso caso da Vovó Mafalda, que era um homem idoso vestido como uma simpática palhaça vovozinha e apresentando um programa infantil. Outra vovozinha que de fato era travesti era a Mamma Bruschetta, que já foi caloura no programa do Silvio Santos e participou de mil outros programas na TV.
Enfim, o clima do brasileiro em geral nos anos 80-90 (excetuando-se os preconceituosos radicais que não representavam a maioria) era de liberação sexual, de aceitação de diferentes opções (o que não excluía o humor politicamente incorreto, pois o brasileiro é debochado desde os tempos de Gregório de Matos). Aliás, naquelas décadas a sexualidade era liberada até demais na mídia, pois a TV não tinha a menor noção de pudor. A banheira do Gugu que o diga.
Houve um fenômeno inesperado que afetou a liberação sexual dos anos 90: a AIDS. A princípio, esta doença ficou associada aos gays, o que ficou retratado no filme Philadelphia (1993), sobre um gay, advogado bem sucedido, que é demitido da firma porque tinha AIDS.
No Brasil, dois grandes mártires desta doença foram Cazuza e Renato Russo. Mais do que mártires, foram "garotos-propaganda" involuntários da campanha para semear o medo nas pessoas e incentivar a precaução nos hábitos sexuais. A revista Veja exibiu o Cazuza esquelético como a atração de um show de horrores.
Não demorou para que a AIDS deixasse de ser considerada apenas uma "doença de gays" e se tornasse comum nos casais héteros. O medo do sexo se tornou generalizado, mas foi arrefecido pela normalização do uso da camisinha. A camisinha virou símbolo de prevenção contra a AIDS e de bônus também favoreceu o controle de natalidade. Foi conveniente, convenhamos.
Lembro vagamente de um filme em que uma mulher é infectada e o namorado (ou marido, não lembro) promete continuar com ela. Eles fazem sexo seguro com camisinha e tal, mas aí algumas horas depois a mulher acorda e vai ao banheiro, onde vê o marido esfregando freneticamente os genitais com o sabonete, como se estivesse com nojo. O medo da AIDS criou nele essa sensação que o simples toque no corpo da mulher poderia contaminá-lo.
Algumas pessoas ficaram com esta aversão ao contato físico e, como ilustrado no Philadelphia, começou a surgir uma segregação sanitária na sociedade. O aidético era o imprudente, o devasso, alguém que não tomou a precaução da camisinha ou se envolveu com prostitutas. Nada que o tempo não arrefeça, pois, por fim, o hábito da camisinha foi o que restou dos tempos de terror da doença e o desenvolvimento de tratamentos, do chamado coquetel, também diminuiu a aura apocalíptica da AIDS.
Notas:
1: Não sou eu que estou inventando isso. Vide o clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber.
2: O comunismo ao longo das décadas foi se diluindo em muitas nuances e versões, inclusive contradizendo o "comunismo raiz" dos tempos de Lenin. Originalmente, a proposta comunista era bem ordeira, moralista, pode-se dizer até tradicional. Depois vieram versões mais anarquistas e o progressismo com suas inúmeras gradações, misturando a simpatia ao comunismo com filosofias de vida hippies, punks, libertarianismo de esquerda, ideologias sexuais, etc.
Nenhum comentário:
Postar um comentário