Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Considerações sobre o metaverso

Metaverse

A realidade holográfica já foi imaginada há décadas na ficção, como se via, por exemplo, naquelas chamadas de vídeo de Star Wars em que os personagens apareciam como pequenos hologramas 3D. Isto foi na década de 70. Desde então, a ficção científica no cinema explorou bastante a ideia.

O mundo real também já vem tentando criar uma realidade holográfica há décadas. No documentário Cyberpunk, de 1990, vemos que já existiam protótipos de óculos e luvas de VR¹. Pois é, os dispositivos VR já têm pelos menos 3 décadas de existência e ainda assim parece que estamos longe de viver em um mundo estilo Matrix.

O filme Matrix, aliás, na virada do século e do milênio, popularizou este conceito de mundo virtual, um mundo que aos poucos fomos experimentando nos games. Hoje em dia já se pode dizer que temos mundos virtuais em que podemos caminhar e interagir com os objetos. Todos os jogos em primeira pessoa são assim. Todavia, ainda são fragmentos do que de fato será o mundo do metaverso. 

Além disso, o metaverso não será apenas um mundo virtual totalmente separado do real, como acontece nos jogos. Será um misto de ambos, pois as tecnologias de realidade aumentada vão nos fazer enxergar objetos virtuais em cenários reais e vice-versa. O Pokemon Go, joguinho em que você apontava o celular para cenários reais no mundo e via os bichinhos virtuais para capturar, foi um bom exemplo de como funciona a realidade aumentada.

Olhando desta forma, Pokemon Go já era uma espécie de proto-metaverso, uma pequena amostra do que virá. Acontece que o metaverso não poderá ser "palpável" e fluido enquanto não trocarmos o celular pelos óculos. 

Não é natural enxergar o mundo pela minúscula tela do celular. Este aparelho, ainda que tenha se tornado o computador mais popular do mundo, está aqui apenas de passagem. É apenas um estágio no desenvolvimento do mundo virtual. Então virão os óculos.

Acontece que óculos de realidade virtual são mais difíceis de se tornarem comuns e práticos do que os celulares. Como disse, desde os anos 90 já existiam protótipos destes trambolhos quase do tamanho de capacetes. O desafio é transformar os enormes óculos VR em óculos comuns, mas com suas funções de VR.

A Google tentou. Desde 2006 ela vinha empreendendo um projeto que resultou no protótipo de óculos chamado Google Glass, anunciado em 2012. Era de fato um par de óculos simples, apenas com um pequeno dispositivo de câmera na frente da lente. Era algo que dava pra usar na rua sem se sentir desconfortável. O aparelho chegou a ser vendido para alguns usuários, mas o projeto acabou em 2016.

Agora é o Facebook, ou melhor, o Meta que vem prometendo trazer estes óculos, substituindo de vez os celulares. Convenhamos, será um grande progresso e remodelará o comportamento das pessoas de muitas maneiras.

O celular moldou o comportamento da maioria das pessoas ao longo desta última década. Tornou-se algo comum ficar com a cabeça baixa olhando para o aparelho. Em eventos sociais, as pessoas agora parecem viver isoladas, ensimesmadas consultando as notificações e só interagindo com a realidade em volta para tirar selfies. Será que os óculos vão mudar isto?

Com os óculos, a sua maneira de interagir com a internet terá uma mecânica diferente do celular ou do computador. Você vai olhar para a frente e não para baixo. E, com a realidade aumentada, você vai ver na sua frente as pessoas que estão na internet, praticamente hologramas imersos no seu campo de visão, como os pokemons no joguinho.

O celular criou hábitos estranhos no nosso corpo, gestos estranhos. O ato de tirar selfies faz que você pareça um mímico gesticulando e fazendo poses em ambientes públicos. As pessoas já não estranham isto. Se tornou socialmente aceitável. 

Pois bem, com o VR, vamos gesticular ainda mais, já que iremos interagir com objetos virtuais visíveis através dos óculos. Imagine você folheando um livro digital, movendo as mãos no ar, segurando o que, para um observador de fora, parece um livro invisível. Vai ser como brincar de air guitar a todo momento. 

Esta realidade vai acontecer. A questão é quando. O Meta, usando o Zuckerberg como seu rosto público, se mostra bem otimista a respeito, tanto que a empresa está investindo bilhões na criação deste novo mundo. Não duvido, porém, que este investimento se torne um grande flop nesta década.

A realidade virtual é algo imaginado e tentado desde os primórdios da internet e a cada década os profetas do metaverso acreditavam que a coisa já estava pronta para se concretizar em poucos anos. É como a singularidade. Já houve quem pensasse que ela aconteceria em 2000 ou 2010 ou 2020 e até agora nada.

Talvez ainda tenhamos mais uma década de reinado do celular e os óculos precisem de mais tempo para se tornarem acessíveis, práticos, algo que você possa usar na rua, no dia a dia, correndo na avenida como se fossem óculos de sol comum. O fato é que o tal metaverso não poderá ser "real" enquanto os óculos não se tornarem o aparelho básico de acesso a ele.

O motivo da empolgação do Facebook/Meta em investir neste projeto da próxima fase da internet é óbvio: money. Os dez bilhões ou mais que a empresa está injetando agora vão parecer trocados perto do que ela vai ganhar se o projeto realmente engatar.

O computador pessoal, o PC, revolucionou a indústria e a economia no século XX. Tudo se tornou mais prático, mais rápido, gerou novos empregos, novas formas de gerar renda e lucro, novos negócios. Além disso, multiplicou exponencialmente a geração de dados no mundo. Toda a informação produzida pela humanidade por meios analógicos ao longo de milênios foi rapidamente superada ano a ano pelo volume de informação gerado e compartilhado na internet.

Veio a era do celular e novamente outro salto no volume de informação, na criação de novos empregos, melhoramento de logísticas e geração de renda. Com um celular, qualquer pessoa consegue tocar um pequeno negócio, vender quentinhas, divulgar seu salão de beleza num perfil do Instagram. Isto não se pode negar: o celular virou uma potente ferramenta de negócios acessível à maioria das pessoas.

A diferença do metaverso, acessível pelos óculos, é que ele vai permitir a criação de um segundo mundo, um verdadeiro mundo virtual. A internet atual não é ainda outro mundo. É uma biblioteca de dados e um meio de comunicação por meio do qual as pessoas podem interagir remotamente. Neste caso, não é diferente de um telefone analógico dos anos 50. A internet como a conhecemos não criou ainda uma realidade "palpável".

O metaverso, por sua vez, vai se expandir na forma de um mundo literal, porém digital. Ou seja, haverá cidades virtuais, você terá sua casa virtual, seu escritório virtual, vai poder comprar terras, fazer investimentos imobiliários neste outro mundo. 

Os bens digitais já existem hoje e compõem um vasto comércio, como e-books, músicas, filmes. Quando você acessa Netflix, está consumindo bens digitais que são os filmes e séries. O metaverso vai levar este conceito a outro nível, pois praticamente tudo pode ser criado na forma de um bem digital. 

Como você vai se mover no metaverso com um avatar, seu avatar vai usar roupas digitais, maquiagens (o que hoje já existe na forma dos filttros de imagem), adereços, tênis, anéis, vai ter seu carrão digital, vai decorar sua casa com sofás, tapetes, papéis de parede... 

Pois é, é como brincar de casinha, brincar de cortar figurinhas de uma revista e criar uma casa imaginária. Parece algo até ridículo ou infantilóide, mas isto vai se normalizar. No anime Paprika, de 2006, já havia um bom exemplo disso. As pessoas moravam em apartamentos que na verdade não passavam de cômodos vazios e que eram "mobiliados" por hologramas.

Enfim, a criação deste segundo mundo, esta second life, vai trazer um novo boom no comércio mundial e de certa forma um comércio sem limites, pois, diferente dos bens do mundo material, que dependem da escassa matéria-prima, no mundo virtual tudo pode ser criado do nada, apenas juntando bits e pixels. O único custo material será o da energia envolvida. 

De fato, a maior preocupação no mundo da tecnologia nas próximas décadas será a geração de energia para manter toda esta estrutura, manter a internet ligada. É o curso lógico de uma civilização tecnológica, tanto que Freeman Dyson imaginou o nível das civilizações conforme a quantidade de energia que conseguem produzir, a ponto de haver civilizações tão absurdamente avançadas que usam uma enorme esfera em torno do seu sol para captar o máximo de energia possível para atender a suas demandas e manter seu épico maquinário funcionando. 

Bom, a nossa civilização é uma formiga perto do colosso de centenas de quilômetros de altura que seria uma civilização avançada ao ponto de construir uma esfera de Dyson. 

Para as empresas de tecnologia, o metaverso vai promover um salto gigantesco na mineração de dados. Dados de usuário são o ouro da nossa era. As empresas usam a internet pra colher muuuitos dados sobre as pessoas, um oceano de estatísticas usadas para compreender o mercado consumidor, os interesses das pessoas, descobrir nichos, direcionar melhor a publicidade, etc. 

A chamada Big Data consiste em todo esse massivo volume de informação que todos nós geramos ao usar a internet. Empresas, geralmente, usam isto para os fins acima mencionados. Governos usam para espionar a população, supostamente com o objetivo da segurança nacional, mas também pela pura paranoia e espírito control freak que é típico dos governos.

O celular é um trocinho que alimenta bastante a Big Data. Ele está constantemente coletando, recebendo e enviando os mais diversos dados, alguns de forma passiva (relatórios de erro, atualizações de software, backups, geolocalização, cookies), outros é o próprio usuário que voluntariamente produz (mensagens, fotos, vídeos, arquivos de áudio).

Os óculos e outros aparelhos que compõem o kit VR (além dos óculos há pulseiras, luvas e outras peças que podem ser vestidas nas pernas, cintura, etc.) são capazes de gerar muito mais dados do que um celular. O simples fato de você usar os óculos implica que você estará constantemente com a câmera ligada, filmando o ambiente à sua volta. Hoje a gente ocasionalmente saca o celular do bolso pra filmar algo, já os óculos VR vão filmar tudo a todo momento.

Com o VR e o metaverso, o mundo experimentará um novo nível de mapeamento, pois os softwares de realidade aumentada estarão constantemente escaneando tudo que aparecer diante de sua vista, a fim de mapear o ambiente, digitalizar objetos, inserir objetos digitais no cenário real, etc. 

Tal volume colossal de dados em constante tráfego é inviável com a internet móvel atual. É aí que entra o papel do 5G no metaverso. Só quando o 5G estiver bem difundido é que vai ser possível frequentar o metaverso.

Do ponto de vista histórico e arqueológico, toda essa geração de dados poderá ser bem interessante para as gerações futuras, caso sejam preservados os registros da nossa Big Data. Os detalhes mais banais da nossa vida cotidiana estarão gravados e os futuros poderão ver em minúcias como viviam seus antepassados.

A estatística é a alma da ciência e a Big Data é antes de tudo uma imensa montanha de estatísticas. Ao analisar tais dados matemáticos, é possível não só obter informações úteis ao comércio, como também entender melhor a própria sociedade humana e mesmo a sua psicologia. São informações preciosas para a ciência, mas também para totalitaristas e manipuladores.

A criação do metaverso também virá a calhar na resolução de um problema que a humanidade aos poucos está começando a enfrentar: os robôs estão substituindo os humanos em diversas atividades. Nós seremos expulsos dos empregos no mundo material, logo, o mundo virtual será o refúgio dos humanos. É aí que surgirão as novas oportunidades e atividades, como já vêm surgindo na atual internet. 

Os robôs se ocuparão cada vez mais das atividades braçais, físicas. Tudo o que requer toque, contato, será feito por um robô. De faxinas a construção civil e cirurgias. Também atividades intelectuais como pesquisa e ensino serão em grande parte realizadas por inteligência artificial. O que sobrará para os humanos?

Calma, não criemos pânico. Enquanto houver criatividade e curiosidade, haverá pessoas fazendo coisas e pessoas comprando. O metaverso será um terreno fértil para estas novas atividades. Parece uma visão otimista demais, mas é a conclusão lógica do próximo passo da internet.

Pois é, a Matrix está surgindo e nem foi criada pelas máquinas como uma forma de vingança. Somos nós que a estamos criando, como demiurgos moldando um segundo mundo, um segundo aeon

Este novo mundo terá implicações no mundo real, até benéficas (a redução do consumo de bens materiais fará muito bem ao ambiente, reduzirá a geração de lixo industrial, de poluição, etc.), e transformará o curso da civilização, mas, acima de tudo, esse troço vai modificar a psique humana de uma forma nunca vista antes. Se isto será bom ou ruim, nós seremos os primeiros a descobrir.

Uma consideração final. O metaverso será cada vez mais impressionante, imersivo, fantástico. Todavia, ainda por muito tempo ele vai se resumir a imagem, som e, quando muito, algumas sensações hápticas (por meio de luvas e outros aparelhos que transmitem algum feedback táctil). Isto está muito longe da experiência sensorial do mundo real. 

Visitar uma praia virtual pode nos encantar com sua beleza, mas não sentiremos o mesmo vento, o mesmo cheiro de chuva e maresia, a temperatura e a real imponência do mar à sua frente. Existem sensações sutis no mundo, que sequer somos capazes de descrever, pois as sentimos inconscientemente. Estas dificilmente serão simuladas em um mundo virtual. Você pode pedir uma pizza digital no metaverso, mas só no mundo real pode sentir o seu sabor.

Aí, algum dia, virá outra etapa no metaverso, quando também as sensações se tornarão possíveis. Será a "era Neuralink", quando já não será necessário usar óculos, pois seu próprio cérebro estará literalmente conectado, praticamente amalgamando-se ao computador. 

Neste ponto, real e virtual serão quase indistintos. As próprias sensações humanas serão registradas na Big Data e até replicadas. Por meio de impulsos elétricos um software pode fazer seu cérebro sentir gostos, toques, emoções (como na "caixa de empatia" em Blade Runner).

É, parece sinistro pensar a respeito e dá até pra imaginar que nos tornaremos meio parecidos com os borgs de Star Trek. Acho, porém, que estamos muito longe de chegar neste nível de tecnologia, pois a mente humana é um universo imenso ainda a ser decodificado.

Notas:

Nenhum comentário:

Postar um comentário