Cixin Liu é uma mistura de Asimov com Lovecraft. Ele desenvolve histórias futuristas cheias de imaginação científica. Às vezes adota um ar de admiração pelo progresso, mas com frequência também embebe suas histórias no pessimismo do horror cósmico. A trilogia O Problema dos Três Corpos¹ é o seu maior exemplo disso.
Em The Wandering Earth, conto que até virou filme², há na verdade um teor de esperança no potencial da humanidade para superar obstáculos, afinal levaram a própria Terra numa viagem cósmica para fugir do Sol. O Sol, porém, é um monstro cósmico, na visão de Liu.
Algo que gosto no autor é que ele não tem medo de ousar e pirar nas ideias. A própria ideia de botar propulsores na Terra e fazer ela sair voando pelo espaço é bem ousada e um tanto infantil para o gênero sci-fi.
Outro de seus contos, Mountain, começa de uma forma bem casual. Um montanhista está navegando no oceano e tendo uma longa conversa com o capitão. No começo fiquei pensando: "Tá, onde essa história quer chegar? Cadê o sci-fi?". Aí eis que de repente surge uma nave alienígena do tamanho da Lua e cuja gravidade eleva uma parte do oceano como uma montanha. É, parece até que isto inspirou aquela cena de Interstellar³.
Aí vem a piração. O mundo está prestes a ser destruído por uma nave alienígena e o protagonista do conto só pensa em uma coisa: escalar aquela montanha de água. Será seu último grande feito.
Acompanhamos a descrição da aventura insólita de nadar em uma espécie de tsunami estático (pois a imensa onda não se movia) e quando o protagonista chega ao topo, parece um bom final para o conto. Mas espera que tem mais. Os aliens entram em contato com ele e amistosamente rola uma conversa e aqueles seres começam a contar a história deles.
Eles surgiram em um planeta oco, que, para compreensão do humano, chamaram de Bubble World. A abóbada celeste deste mundo era rocha. As civilizações que se desenvolvem na superfície, como a nossa, têm o privilégio de contemplar as estrelas. O universo visível está evidente desde sempre. Já os habitantes do Bubble World tiveram uma condição peculiar em que o universo visível eram as paredes rochosas e nada mais.
Com o tempo, os cientistas deste mundo desenvolveram duas teorias sobre a natureza do universo: The Solid Universe Theory e The Open Universe Theory. A primeira era a noção tradicional e baseada na evidência empírica imediata. Se o céu era rochoso, o universo devia ser composto de pura rocha, mas poderia haver outras bolhas, outros mundos incrustados na rocha.
A teoria do Open Universe imaginava que a camada de rocha devia ter um limite e após ela haveria o espaço aberto. A única maneira de provar isso era enviando naves para escavar a rocha em busca da saída.
Assim se desenrola uma longa era de explorações por meio de naves que perfuravam as rochas, até que finalmente chegaram à superfície, descobriram a água e depois o céu estrelado. Agora, milhares de anos depois, esta civilização enviava naves pelo espaço e a nave que visitou a Terra estava em uma missão em busca dos limites do universo, mas, nas próprias palavras deles, eles estavam só de passagem e resolveram conferir se a Terra tinha vida inteligente e bater um papo.
"We are just passing by, and we wanted to see if there was intelligent life here with which we could have a chat."
Pois é, os aliens, no fim das contas, eram seres bem pacíficos e amistosos, guiados pela pura curiosidade científica em explorar o espaço, mas esta curiosidade os levou a provocar um grande cataclismo na Terra ao se aproximar com sua nave do tamanho da Lua.
Os danos causados ao planeta não são descritos no conto. Apenas é dito que, após a conversa que os aliens têm com o humano que escalou a montanha de água, eles partem em um piscar de olhos e a enorme onda começa a recuar. Fica aí subentendido que a montanha de água, uma vez que não era mais puxada pela gravidade da nave, desabou no oceano e toda sua imensa energia cinética deve ter gerado um tsunami sem precedentes, arrasando continentes.
De toda forma, há uma lição no conto. A história de como aqueles aliens, seres que viviam debaixo da terra como toupeiras e que, guiados pela curiosidade, alcançaram as estrelas, era uma exemplo de quão longe uma civilização pode ir. A montanha é uma metáfora, pois sempre há uma montanha maior a ser explorada. O universo é a última montanha.
"You are standing at the foot of the mountain. We are all always at the foot. The speed of light is the foot of a mountain; the three dimensions of space are the foot of a mountain. You are imprisoned in the deep gorge of light-speed and three-dimensional space."
Por terem desenvolvido uma cosmovisão baseada em seu mundo original que era uma bolha cercada de rocha, os aliens também expandiram a ideia para todo o universo. Eles creem que nos limites do nosso universo existe algum tipo de cápsula "sólida" e que além dela deve haver outros universos, assim como no planeta rochoso em que viviam devia existir outras bolhas. É a teoria do multiverso.
"Our universe is an empty bubble, a bubble within something more solid."
Este conceito de que há algo sólido ou pesado além do universo pode ter a ver com a teoria da matéria escura e a tentativa moderna da ciência em explicar por que as galáxias estão se expandindo tão rápido, como se houvesse uma força a puxá-las, algo superior à própria gravidade que a massa das galáxias poderia gerar. Seria isto provocado pela misteriosa matéria escura, ou nos limites do universo existe algo muito denso, com uma gravidade colossal a esticar o nosso universo?
No conto intitulado Sun of China, ele externa seu lado patriota e sua admiração pelo progresso tecnológico do país. O protagonista é um homem de origem humilde que vai progredindo na vida e se deparando com as maravilhas da tecnologia na cidade grande.
Ele passa a trabalhar como limpador de vidros em arranha-céus e daí é chamado, junto com outros da sua profissão, para um trabalho bem especial: ir para o espaço a fim de limpar o vidro de uma enorme estrutura na órbita da Terra chamada China Sun, um orbe construído para funcionar como um segundo sol sob o controle humano e que serve para modificar o clima de regiões agrícolas da China.
Após certo tempo de uso, um novo propósito é dado ao China Sun: ele irá navegar pelo espaço e se tornar a primeira nave terrestre a sair do sistema solar e visitar outras estrelas. Bom, por volta dos anos 2000, quando o autor escreveu este conto, de fato nenhuma nave havia feito esta proeza, mas hoje temos as sondas Voyager 1 e 2 que já se encontram no espaço interestelar.
O protagonista, assim como outros voluntários, agora irá se aventurar dentro desta nave em direção às estrelas, mesmo sabendo que é um caminho sem volta. Assim como em Mountain, este conto louva a curiosidade científica e o espírito aventureiro de seres que têm um início de vida bem humilde, mas ousam ir além, literalmente alcançando as estrelas.
For the Benefit of Mankind ou The Wages of Humanity é uma curiosa história de invasão alienígena. No início, a presença das naves alienígenas no céu serve apenas como uma ambientação de fundo para a história. É contado que uma antiga e avançadíssima civilização, chamada de Creators, criou seis Terras com suas respectivas civilizações. O povo da primeira Terra, tendo seu mundo já devastado, resolveu fazer as malas e vir morar na nossa Terra. Eles são chamados de Elder Brothers.
A história central gira em torno de um assassino de aluguel, Smoothbore, que é contratado por uma estranha organização chamada The Council for Liquidation of Social Wealth. Este grupo é formado pelas pessoas mais ricas do mundo e tem um estranho propósito de distribuir as riquezas a fim de igualar a condição humana. O mais bizarro é que estes bilionários contratam Smoothbore para matar mendigos que vivem num lixão.
O assassino fica bastante intrigado e quebra seu código da profissão, questionando os mandantes qual o motivo deles, pessoas tão ricas, se importarem em matar miseráveis. Que mal um catador de lixo poderia causar a gente tão poderosa? Aí vem a história mirabolante.
Acontece que os Elder Brothers, em seu plano de habitar a Terra, pretendem nada menos do que tomar todos os continentes para eles, realocando os humanos para a Austrália. Os bichos são extremamente poderosos e inclusive dão uma amostra, exterminando toda a população da Austrália com apenas um raio. O recado é: "vamos morar neste planeta por bem ou por mal".
A humanidade escolhe o método "por bem", que é aceitar os termos dos aliens. Os aliens vão levar todos os humanos e apertá-los na ilha australiana e, com sua tecnologia avançada, vão até mesmo ser os provedores de todas as necessidades. Ou seja, os humanos vão virar gado, aprisionado e alimentado por seus conquistadores.
Os aliens antes disto vão fazer um censo, consultando uma parcela da humanidade a fim de ter uma noção das condições materiais de cada um e estabelecer uma média. Com base nesta média é que vão prover as necessidades dos humanos depois de realocados. Pois é, uma espécie de comunismo alienígena.
É aí que entra o problema dos miseráveis. O tal Conselho para Liquidação da Riqueza está visitando os pobres e oferecendo malas cheias de dinheiro. Os ricaços estão dissolvendo a própria fortuna a fim de acabar com a pobreza e fazer com que o censo dos aliens calcule uma média generosa para a humanidade. Quanto aos miseráveis que se recusarem a receber o dinheiro do Conselho, a única solução é mandar matá-los.
Pois é, tem gente que rejeita as malas de dinheiro. Uma minoria, claro. Alguns são doidos varridos, mas alguns são pessoas conscientes e que não querem a caridade dos ricos por orgulho e até como um gesto de desprezo. Só que estas pessoas não sabem que estão prejudicando a humanidade com este gesto, pois vão fazer que o resultado do censo caia bastante e assim a "renda universal" que os aliens vão prover vai ser bem baixa.
Smoothbore, como um bom assassino treinado, não tem afetos por suas vítimas ou sentimentos éticos pela humanidade, mas de toda forma ele se dá por satisfeito em saber que matar os miseráveis será um gesto para o bem da humanidade toda. Afinal, se eles conseguirem enganar os aliens neste censo, o nível de vida da humanidade sob os "cuidados" dos aliens vai ser bem satisfatório.
Entre os seus alvos está um pintor de rua. Tranquilamente eles travam uma conversa e o pintor explica que não aceitou o dinheiro dos ricos porque sua arte sempre foi voltada a retratar a pobreza e, se ele de repente enriquecesse, a sua arte morreria. Antes de morrer, ele contrata os serviços de assassino de Smoothbore e este aceita como pagamento um dos quadros do pintor. A missão é matar os ricaços do Conselho.
Então Smoothbore encontra um dos aliens. Ele simplesmente se parece com um humano comum, afinal todos os habitantes das seis terras vieram dos mesmos criadores. O alien explica o que aconteceu em seu planeta. É aí que a coisa fica ainda mais surreal.
Na Primeira Terra, que era bem mais antiga que a nossa, a Quarta Terra, a tecnologia evoluiu a ponto de haver implantes cerebrais capazes de aumentar imensamente a inteligência das pessoas. Naturalmente, quem podia pagar pelos melhores implantes se tornava muito superior às outras pessoas, de modo que a sociedade acabou dividida em seres superinteligentes que eram praticamente outra espécie, uma espécie mais avançada que fazia os outros humanos parecerem animais.
"Those who received this premium education were vastly more intelligent than those who did not. The cognitive differences between these educated elites and ordinary humans were as large as those between humans and dogs, and these differences manifested themselves in every aspect of human life – even artistic sensibility, for example. This super-intelligentsia formed a new culture – a culture as incomprehensible to the rest of humanity as a symphony is incomprehensible to a dog. They could master hundreds of languages, and on any given occasion they would use the particular language that etiquette demanded. From the perspective of these super-intellects, conversing with ordinary people seemed as condescending as cooing to puppies. And so, quite naturally, something happened. You’re smart, you should be able to guess.’ Smoothbore hesitated. ‘Rich people and poor people were no longer the same... the same...’ ‘The rich and the poor were no longer the same species. The rich were as different to the poor as the poor were to dogs. The poor were no longer people."
Este conto, escrito por volta dos anos 2000, abordou um tema cada vez mais atual, ainda mais agora com essa coisa de Neuralink. Parece ser a tendência óbvia do nosso futuro: as pessoas com os implantes mais caros vão ter acesso a funcionalidades mais poderosas. Convenhamos, porém, que sempre foi assim. Os mais ricos têm acesso à melhor educação, podem comprar livros caros, etc, e no futuro vai ser assim com os implantes cerebrais.
Só que a tecnologia tem esta formidável tendência a se tornar barata e acessível. O celular nos anos 90 era um troço caríssimo e de luxo e servia apenas pra fazer ligações. Hoje boa parte da população tem um smartphone e com acesso a uma quantidade absurda de funcionalidades e acesso a informação. O que hoje é exclusivo dos ricos, em termos de tecnologia, amanhã será do povão.
Logo, essa coisa de se formarem duas espécies diferentes na sociedade não será bem assim. O que vai acontecer é que haverá uma população na vanguarda da tecnologia, os ricos que podem pagar pelas novidades, seguida pelo restante da população que vai gradativamente tendo acesso ao que antes era vanguarda. Ao menos este costuma ser o curso natural do progresso tecnológico.
Anyway, na Primeira Terra a separação de classes se deu de forma muito intensa, bem como a concentração de renda, o que claramente é uma anedota do autor para o nosso mundo. No nosso mundo existe a classe dos 1% mais ricos que têm uma riqueza absurdamente superior à dos outros 99% da humanidade.
O autor leva esta ideia ao extremo na Primeira Terra, de modo que a concentração foi se afunilando até o ponto em que apenas uma pessoa se tornou literalmente dona de todo o planeta. Ele foi chamado de O Último Capitalista.
"During my great-grandfather’s lifetime, sixty percent of the wealth on First Earth was controlled by ten million people. During my grandfather’s lifetime, eighty percent of our world’s wealth was controlled by ten thousand people. During my father’s lifetime, ninety percent of the wealth belonged to just forty two people. When I was born, capitalism had reached its apex on First Earth and had worked an unbelievable miracle: ninety-nine percent of the planet’s wealth was held by a single person! This person became known as the Last Capitalist... ‘Do you want to know what the Last Capitalist owned?’ The alien raised his voice. ‘He owned First Earth! Every continent and ocean on the planet became his parlor rooms and private gardens. Even the atmosphere of First Earth was among his personal property. ‘The remaining two billion individuals inhabited fully enclosed dwellings – miniature, self-contained life-support units. They lived sealed away in their own tiny worlds, sustained by their own paltry supplies of water, air, soil and other resources. The one resource that did not belong to the Last Capitalist, and the only thing they could lawfully take from the outside world, was sunlight...He looked like a trim middle-aged man, but in reality he was over two thousand years old. Genetic engineering guaranteed that he would live for at least another two millennia, perhaps even forever. But he seemed perfectly ordinary to me."
Claro que esta mudança não se deu rapidamente. O Último Capitalista tinha dois mil anos de idade, algo que ele conseguiu com as maravilhas da tecnologia. Sua conquista global levou vários séculos até chegar ao ponto absurdo dele possuir até a atmosfera.
O empobrecimento do restante da população também se deu por causa da automação. As máquinas passaram a realizar todas as tarefas e as pessoas se tornaram dispensáveis, vivendo em cápsulas com limitados recursos. Quando alguém saía da cápsula, tinha que pagar pelo ar que respirava no lado de fora, o "jardim privado" do Último Capitalista. A escassez era tal que, ao morrer, as pessoas tinham seu corpo processado por máquinas para extrair o máximo de recursos possíveis.
"Resource conversion vehicles were mobile installations that converted human bodies into resources that could be utilized by household life-support systems... The resource conversion truck also extracted a few other useful things from his body for our life-support system: a container of grease, a bottle of calcium tablets, even a piece of iron as large as a coin."
Pois é, é uma anedota assustadora de até que ponto terrível o acúmulo de bens pode chegar em uma sociedade sem qualquer tipo de equidade social. Não sei quais os posicionamentos políticos do Cixin Liu, mas, sendo ele chinês, na certa é bastante impregnado do sentimento anticapitalista que o partido incute em seus cidadãos. Daí ele imaginar uma consequência tão distópica para o rumo do capitalismo.
Não que ele não tenha uma certa razão. Ora, se um recurso como a água pode se tornar propriedade de grandes empresas, o que garante que num futuro distante alguém não se torne dono da atmosfera? Bom, o que garante é a evolução das leis, pois dificilmente uma sociedade inteira, o que dirá a humanidade inteira, aceitaria de bom grado que alguém se apossasse de um recurso como o ar.
Por outro lado, este tipo de terror seria possível em uma sociedade totalitária, o que é o caso da Primeira Terra. Lá havia máquinas chamadas enforcers que eram responsáveis por impor à força as leis deste capitalismo selvagem, mas a miséria chegou a um nível tal que os bilhões de habitantes saíram às ruas quando suas cápsulas começaram a falhar e não tinham outra opção senão buscar o mundo externo para conseguir respirar.
Seria uma grande revolução, não fosse o abismo tecnológico que separava a massa do Último Capitalista. O povo não tinha a menor chance de se rebelar contra um cara que tinha a seu favor todos os robôs bélicos do mundo e podia pulverizá-los com uma ordem.
Todavia, este homem teve um "gesto de caridade", sugerindo uma solução: ele providenciaria naves para mandar toda a população do planeta numa viagem espacial em busca de outra Terra. Quão nobre hein. Agora este homem teria o planeta totalmente para si, na companhia de seus robôs.
"‘And that is how we came to Fourth Earth,’ concluded the First Earthling. ‘Our voyage lasted for thirty thousand years. We lost nearly half our fleet while wandering endlessly through the stars. Some disappeared amidst interstellar dust; some were swallowed by black holes... But ten thousand ships survived, and one billion of us reached this world. And that is the story of First Earth, the story of two billion poor people and one rich man'."
E esta é a origem dos aliens que chegaram à Quarta Terra. Eles eram nada mais que refugiados, ou melhor, pessoas literalmente expulsas de seu planeta que havia se tornado a casa de um só homem. Um conto assustador de até onde a ganância humana pode chegar.
Neste aspecto, Cixin Liu é um Gene Roddenberry ao contrário. O autor de Star Trek acreditava que o progresso tecnológico levaria a uma era de abundância em que as pessoas não mais se ocupariam em disputas por ninharias. Cixin Liu, por sua vez, enxerga um futuro em que a tecnologia chegue ao ponto de privilegiar apenas uma pessoa, colocando todas as outras numa vida de miserável escassez.
Bom, ambos os futuros são possíveis e o alerta está dado. A história termina com Smoothbore cumprindo seu último contrato, matando os membros do Conselho. Não que isso vá resolver alguma coisa, no fim das contas.
Curse 5.0 tem um ar mais cômico e o autor até insere a si mesmo como um personagem, um escritor mendigo. É um conto bem profético na verdade. Começa falando de um vírus, Curse 1.0, que foi criado por uma programadora simplesmente para se vingar de um ex-namorado. Ao longo do tempo este vírus vai caindo nas mãos de outros programadores e ganhando novas funcionalidades. A versão 4.0 já é capaz de dominar toda a internet das coisas, controlar carros, eletrodomésticos e manipular as pessoas de diversas maneiras. No final, vemos o surgimento do Curse 5.0 que tem como alvo toda a humanidade.
The Micro Era fica na fronteira entre sci-fi e fantasia. Novamente vemos o interesse do autor pelo Sol, numa história em que o Sol não chega a explodir, como em The Wandering Earth, mas ele emite uma rajada de massa coronal que varre o sistema solar. A humanidade, prevendo a catástrofe, ainda tem tempo de enviar naves para o espaço a fim de buscar um mundo habitável.
Após milhares de anos, uma destas naves retorna e encontra a Terra desolada, porém o único astronauta vivo se surpreende ao descobrir que a humanidade encontrou um jeito de sobreviver: por meio de engenharia genética, foram criadas novas gerações de humanos com tamanho microscópico e que com o tempo se tornou a espécie dominante. Os chamados "macro-humanos" foram extintos e só restaram os "micro-humanos", vivendo em minúsculas redomas espalhadas pela Terra devastada.
O conto parece esconder uma crítica ao consumismo e mostra como seria prático e fácil para os humanos viverem na Terra se fossem microscópicos. Mesmo em um planeta devastado, os recursos essenciais são abundantes para criaturinhas tão pequenas. Uma simples colherada de comida no tamanho macro pareceria uma montanha para aqueles seres.
O autor dá umas viajadas sem medo de avacalhar o sci-fi, como quando os serumaninhos, em conversa com o humano gigante, mostram um lactobacilo que eles criam como se fosse uma galinha. A própria ideia de se encolher um corpo humano ao nível microscópico e manter todas as suas funcionalidades e capacidade cerebral é bem fantasiosa.
Em Devourer, a Terra é invadida, ou melhor, cercada por uma imensa nave devoradora de planetas. Um arauto é enviado para "diplomaticamente" anunciar o plano aos terráqueos. É um ser reptiliano gigantesco que sem cerimônias devora um humano inteiro, cuspindo só as roupas.
Ele explica que sua civilização existe há milênios explorando a galáxia e extraindo os recursos, especialmente água e minérios, para a manutenção de sua nave-planeta.
"Besides Earth, we will also consume Venus. Jupiter and Neptune are too large for us to consume, but we will devour their satellites. The Devourer Empire is in need of their hydrocarbons and water. We will also take a bite out of the barren worlds of Mars and Mercury, as we are interested in their carbon dioxide and metals. The surfaces of all these worlds will become seas of fire."
Num gesto de "misericórdia", eles vão recolher parte dos humanos na nave e estes terão uma vida feliz e paradisíaca até os 60 anos, quando então servirão como comida para os reptilianos.
Foi só por isso que o diplomata comeu o humano assim que chegou, para provar seu sabor. Ele explica que para seu povo a carne humana é uma iguaria apreciada pela elite, mas que perde o sabor agradável caso o humano viva sob estresse. Eis porque eles pretendem abrigar os humanos da forma mais agradável possível, criando-os como gado gourmet.
O diplomata, apelidado pelos humanos de Fangs, até filosofa uma espécie de darwinismo social cósmico:
"In the Milky Way, it is perfectly commonplace for a weaker civilization to become the livestock of a stronger civilization. You will discover that being raised for food is a splendid life indeed. You will have no wants and will live happily to the end¹."
Os humanos se conformam com a derrota, diante do poderio do invasor, mas ainda malandramente propõem um acordo. A nave Devourer pretende empurrar a Lua para fora da órbita, de modo que ela não atrapalhe a tarefa de extração dos materiais da Terra, então os militares humanos se oferecem para realizar este empurrão da Lua e pedem que em troca eles sejam deixados para viver na Lua e quem sabe possam voltar a reconstruir a Terra depois que a Devourer partir.
Fangs, por mais frio que seja, é bastante aberto ao diálogo e a acordos, pois ele não parece ver os humanos como ameaças, então aceita a oferta. Durante um século os humanos se dedicam a enviar 5 milhões de bombas atômicas e instalá-las no subsolo lunar.
O plano é parecido com o do conto The Wandering Earth, só que nesta história a humanidade não tem a tecnologia para construir gigantescos propulsores, então usam as bombas. Uma sequência de milhões de explosões nucleares na Lua a impulsionará para longe da Terra. É um plano bem doido.
Quando enfim o projeto está pronto, os humanos malandramente realizam as explosões controladas de modo a direcionar a Lua em rota de colisão para a nave Devourer. Imagine a cena, a Lua voando no espaço como uma nave, impulsionada por milhões de explosões atômicas.
Sim, é explicado que seria inútil usar estas bombas diretamente contra a Devourer, pois a nave tem defesas antiaéreas. Já um objeto do tamanho da Lua seria impossível de resistir. Todavia, assim que percebe a cilada, a Devourer tenta desviar da Lua e de fato consegue. O plano desesperado dos humanos falhou.
Então a nave fica duzentos anos sugando a Terra até deixar só um mundo devastado e infernal. Os aliens parecem não guardar rancor e não castigaram os humanos por causa do ataque lunar. Simplesmente seguiram o plano de acolhê-los na nave. Não que "acolher" seja a melhor palavra, já que os humanos virariam comida de alien.
"‘After the war, approximately two billion humans were migrated to the Devourer Empire, about half of all of humanity,’ Fangs answered, activating the large screen of his portable computer where pictures of life on the Devourer appeared. The screen revealed a beautiful grassland under blue skies. On the grass, a group of happy humans was singing and dancing... ‘We must ensure their absolute happiness,’ Fangs said. ‘It is the minimum requirement for raising them. If we do not, we cannot guarantee the quality of their meat. And it must be said that Earth people are seen as food of the highest quality; only the upper class of the Devourer Empire society can afford to enjoy them. We do not take such delicacies for granted.’"
Aí vem a bizarra revelação. Fangs, que parece até ter se afeiçoado aos humanos, conta a história de seu povo. Eles eram nada menos que os dinossauros terrestres que evoluíram a tal ponto que construíram naves e fugiram para o espaço para escapar da catastrófica extinção.
As várias naves dos dinossauros acabaram se unindo no espaço e com o tempo esta estrutura foi sendo incrementada com materiais que coletavam de outros planetas, a ponto se se tornar a gigantesca Devourer, praticamente um planeta metálico ambulante e que precisa constantemente colher os materiais para sua subsistência em outros planetas, até que eventualmente retornaram ao planeta natal para também devorá-lo.
"‘Finally, one day all the dinosaurs boarded ten giant generation ships and, with these ships, sailed into the vast sea of stars. In the end, all ten of these ships were joined together. Then, whenever this newly united ship reached another star’s planet, it expanded. Sixty million years later, it has become the Devourer Empire you now know.’"
O curioso é como os humanos nessa história desenvolvem um respeito e conformismo diante da invasão. Parece até uma síndrome de Estocolmo, pois uma vez que vão habitar a Devourer, são retratados felizes, dançando e até maldizem os tempos em que viveram na Terra, fascinados com o luxo deste mundo alienígena.
Bom, na certa esta civilização formidável e mais avançada que a humana deve ter uma qualidade de vida impressionante e que facilmente comprou a simpatia dos humanos, mas a que custo? Mesmo com todo o luxo, eles foram violados, sequestrados, tiveram seu planeta completamente roubado, todo o ecossistema destruído.
Foi uma chacina sem precedentes e mesmo assim os humanos ficaram de boa com isso após serem comtemplados com uma nova vida onde tudo lhes era dado de graça. Na verdade, este de graça saiu bem caro, ainda mais porque a vida deles ali tinha prazo de validade, após o qual estes humanos seriam devorados como se fossem gado. O amor à liberdade parecia não existir nesta geração.
Em Taking Care of God, uma civilização de 2 bilhões de aliens visita a Terra em milhares de naves e pacificamente se apresentam para diálogo. Eis que eles são todos parecidos: são velhinhos de longos cabelos e barbas brancas e todos atendem pelo nome de God (na tradução em inglês, obviamente).
"Across the great cities of the world, wandering old people had begun to appear. All of them had the same features: extreme old age, long white hair and beards, long white robes. At first, before their white robes, white beards, and white hair got dirty, they looked like a bunch of snowmen. The wanderers did not appear to belong to any particular race, as though all ethnicities were mixed in them. They had no documents to prove their citizenship or identity and could not explain their own histories."
É uma história que mistura a caricatura do Deus cristão ocidental com o conceito de alienígenas do passado, pois esta civilização explica que eles foram os criadores da vida na Terra há bilhões de anos. Eram uma civilização formidável e avançadíssima, mas como tudo no mundo, envelheceram.
Chegaram a um ponto em que as máquinas que construíram no passado se tornaram totalmente autônomas, de modo que eles se acomodaram e ao longo dos milênios foram perdendo o brilhantismo. Agora eram tão ignorantes quanto um humano médio, incapazes de tocar adiante a civilização. Suas naves já estavam bem desgastadas e os Gods não eram mais capazes de repará-las. Era o fim da história de God.
É por isto que foram à Terra, para passarem seus últimos dias como que aposentados, acolhidos pelos seus filhos humanos. Eles se portam praticamente como mendigos e imploram: "We are God. Please, considering that we created this world, would you give us a bit of food?".
Em troca, ofereceram um grande volume de antigos conhecimentos científicos que levariam a humanidade a um salto tecnológico. A princípio a troca parecia boa, mas os conhecimentos que eles entregaram eram tão avançados que se tornaram inúteis aos humanos, pois era o mesmo que dar um livro de física avançada a uma criança ainda no primário.
De toda forma, foi acertado que os humanos acolheriam estes velhos aliens. Os 2 bilhões foram distribuídos entre as famílias do mundo, de modo que cada família ficou com seu próprio God familiar. Logo, porém, os humanos começaram a sentir o peso de sustentar 2 bilhões de imigrantes do espaço que, além de idosos, eram ociosos e doentes, precisando de constantes cuidados, se tornando um peso, principalmente para as famílias pobres.
Muitas famílias desgostosas em ter que sustentar um velho, começaram a discutir e ter problemas com God, de modo que vários Gods saíram das casas pra viver nas ruas como sem-teto. Pois é, o Cixin Liu imaginou uma situação bem pitoresca envolvendo uma gloriosa civilização. É como se os formidáveis engenheiros cósmicos de Prometheus se tornassem os aliens mendigos de Distrito 9.
Para não causar mais aborrecimentos, os Gods decidem partir e terminar seus dias no espaço, mas deixam um alerta: eles haviam criado outras seis Terras. A nossa Terra foi a última, a caçula, e, mesmo com a hostilidade com que trataram os Gods, ainda parecia ser a civilização mais razoável.
Das outras Terras, duas foram destruídas por seus planetas irmãos, mostrando quão cruéis eram estes primeiros terráqueos. E God alerta a humanidade que estas Terras, estes irmãos mais velhos, já sabem da existência da Terra Quatro e agora há uma corrida contra o tempo, pois eles eventualmente vão invadir e destruir seus irmãos caçulas. A saída é a humanidade desenvolver o quanto antes tecnologias de viagem espacial para que saiam da Terra e colonizem outros mundos.
De certa forma, este conto parece construir um Cixinverso, pois dialoga com o conto For the Benefit of Mankind, onde também é mencionada uma civilização que criou várias Terras.
Notas:
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