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Theranos ou Como vender uma grande fraude médica

The Inventor: Out for Blood in Silicon Valley (2019)

A palavra "charme" tem um duplo sentido. Pode descrever uma pessoa que é atraente de alguma forma, seja por sua beleza, simpatia ou algumas outras características de sua personalidade. Também pode significar um efeito mágico, um encantamento, um talismã. Em gurus, charlatões e golpistas, estes dois sentidos do charme parecem convergir.

Eis o curioso caso da Elizabeth Holmes. Holmes iniciou uma startup de tecnologia com apenas 19 anos e demonstrou uma tal habilidade de negociação e publicidade que rapidamente conseguiu investimentos milionários para seu empreendimento. 

A empresa tem um nome bem legal, Theranos. Tem um ar futurista não só no nome como em toda a estética da publicidade, o visual minimalista e limpo da empresa e até a aparência singular de sua fundadora. Elizabeth tem um olhar fixo, que raramente pisca. Ela parece ter algo de robótico, como se fosse mesmo uma criatura futurista, uma androide, porém não uma androide esquisita e creepy como o Zuckerberg. Ela tem uma simpatia e um charme que explicam boa parte do sucesso de seu grandioso golpe.

O laboratório Theranos era especializado em exames de sangue e surpreendeu o mundo com uma suposta revolucionária nova tecnologia: uma máquina chamada Edison (em homenagem ao famoso inventor, claro), do tamanho de uma impressora multifuncional, que seria capaz de realizar inúmeros exames clínicos com apenas uma gota de sangue. 

Ou seja, em vez das temidas agulhadas nas veias, as pessoas só precisariam de um furinho na ponta do dedo e uma mera gota de sangue seria suficiente para se identificar inúmeras doenças com algum tipo inovador de nanotecnologia. 

Parecia então que Holmes seria o novo Steve Jobs, o novo Edison ou Tesla, um talento raro que surge uma vez por século. Ela se tornou a mais jovem mulher bilionária do mundo e estava no rumo para ganhar um Nobel e tantos outros reconhecimentos de sua genialidade e contribuição para o progresso humano. Até que se descobriu que era tudo fake.

Elizabeth Holmes

Pois é, a garota que parecia combinar inteligência, charme, talento empreendedorístico e um espírito visionário, tipo um Elon Musk da vida, empregou suas habilidades na venda de uma fraude. 

O negócio da Big Tech é de fato dominado por homens: Bill Gates, Steve Jobs, Mark Zuckerberg, Elon Musk, os caras da Google... É uma pena que a primeira mulher que alcançou um destaque tão notório no Vale do Silício tenha sido uma golpista.

É surpreendente como a Theranos conseguiu enganar tanta gente, tanto clientes quanto investidores de peso. Isto é um exemplo de como é relativamente fácil enganar o mundo, mesmo quando se trata de uma questão tão séria quanto a saúde.

A Theranos não era uma empresa de facas, vendendo uma faca que supostamente cortaria até barras de aço. Propagandas enganosas são relativamente comuns no mundo, mas geralmente são "inofensivas", tipo aquelas lanchonetes que mostram um farto sanduíche em seus pôsteres, mas quando você vai provar se depara com um sanduichezinho mirrado que tem a metade do tamanho daquele da foto. Ok, é uma propaganda enganosa, mas é aquela coisa do "o golpe taí e cai quem quer".

Já no caso da Theranos, o produto era algo que envolvia um aspecto muito delicado da vida. Se os exames de sangue não funcionarem direito, isto pode prejudicar o tratamento de saúde e, em último caso, por em risco a vida das pessoas que confiaram naquele exame. Logo, é de se esperar que este tipo de empresa passe por um processo mais rigoroso de vistoria das entidades reguladoras e da comunidade médica em geral.

Em vez disso, a Theranos conseguiu burlar a comunidade médica e científica alegando a proteção de sua tecnologia inovadora. Ninguém além da própria Elizabeth sabia os segredos de sua máquina milagrosa. Mesmo os funcionários da empresa eram de tal forma compartimentalizados que uns não sabiam o que os outros estavam fazendo. Havia contratos de confidencialidade e poderosos advogados blindando a empresa.

Bom, isto não é raro no mundo. Empresas do ramo de alimentos, remédios, eletrônicos, produtos de limpeza, etc. conseguem se blindar contra os possíveis danos à saúde que seus produtos podem eventualmente causar.

O curioso mesmo é como tudo começou, como a Theranos conseguiu tão rapidamente a simpatia de investidores grandes, como o Rupert Murdoch e até gente ligada ao departamento de defesa americano, como Henry Kissinger. Estas pessoas se tornaram garotos-propaganda da empresa e da garota-prodígio como se tivessem encontrado um talento raro e que revolucionaria o mundo. Foram tapeados.

Fui tapeado!

Logo, o grande segredo da Theranos era a singular personalidade da Elizabeth Holmes. Os advogados, toda a blindagem e compartimentalização da empresa serviram para manter a mentira por algum tempo, mas a mentira só teve sucesso por causa dela.

Só de olharmos para esta moça, nota-se que algo nela se destaca. Os olhos. Ela realmente tem um olhar arregalado e que parece nunca piscar, o que é uma característica de certos feiticeiros de vodu. Ela enfeitiça no olhar e facilmente passa uma imagem de credibilidade.

Elizabeth Holmes
Olhar hipnótico.

No documentário The Inventor: Out for Blood in Silicon Valley (2019), nota-se como as pessoas usam com frequência a palavra "believe". "Eu acreditei nela". Quando uma pessoa pisca demais ou desvia os olhos, transmite uma sensação de desconfiança, de que está mentindo. O olhar fixo e empolgado, o rosto sempre aberto num sorriso, convencem as pessoas de que ela está sendo sincera.

Também havia outra característica peculiar nela: a voz. Ela tem uma voz grave que parece aquelas vozes distorcidas de vilões nos filmes. Todos sabem que a voz grave tem um efeito natural de dominância e liderança sobre as pessoas, ao contrário da voz aguda e fofinha que transmite submissão e fragilidade. 

Parece que ela estudou bem estes métodos de linguagem corporal focados no convencimento. Ou pode ter desenvolvido isto de maneira natural mesmo. O fato é que funcionou.

Parte de sua estratégia consistia também em cercar-se de figuras públicas. Ela aparecia ao lado de artistas, políticos e outros figurões da Big Tech, o que funcionava como um endosso para a sua imagem. Os primeiros alvos de seu feitiço não foram os clientes da Theranos, mas estas figuras influentes.

Madeleine Albright, Elisabeth Holmes, Jack Ma, Bill Clinton

Elisabeth Holmes, Joe Biden

Elisabeth Holmes, Jared Leto

Todo feitiço, porém, tem um prazo de validade, e a mentira, acumulada como uma bola de neve, acabou chegando ao ponto em que estourou no grande escândalo, quando enfim se descobriu que estas máquinas não tinham a tecnologia prometida. Só agora em 2022 a empresária foi finalmente condenada por fraude.

O caso Theranos seguirá como um curioso exemplo de como o mundo pode cair como um patinho em uma fraude. Mesmo nestes tempos em que há tantas autoridades reguladoras e uma gigantesca comunidade científica, uma grande mentira ainda consegue se infiltrar e fazer todos de trouxas, ao menos por um tempo.

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