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Martírio e redenção em Os Miseráveis

Lés Miserables (2012)

O livro Lés Miserables, de Victor Hugo, foi publicado em 1862 e ambienta-se entre a Batalha de Waterloo (1815) e a Revolução Francesa (1832), tendo como protagonista Jean Valjean, um homem condenado a trabalhos forçados por ter roubado um pão para sustentar a família e que, devido a tentativas de fuga, teve a pena total de dezenove anos.

Cumprida a pena, Valjean vive marginalizado por causa da fama de ex-detento. É um homem castigado pela lei, pela sociedade, um homem que não teve sequer tempo de descobrir o amor, que muito cedo se tornou arrimo de família e conheceu a pobreza. Rude, de coração duro, descrente quanto à generosidade humana, é terrivelmente confrontado pela generosidade de um bispo que lhe deu comida, abrigo e ainda perdoou-lhe os furtos.

Hugh Jackman, Lés Miserables (2012)

O encontro com o bispo mudou radicalmente sua alma, despertou nele a índole para a compaixão. Recomeçou a vida e de tal forma prosperou que tornou-se um rico empresário e prefeito de uma cidade, conhecido por ajudar os pobres e ser exemplo de virtude. Mas pra isto ele teve de assumir um nome falso, ocultar seu passado.

No entanto, será perseguido durante anos pelo inspetor Javert, um homem fanático pelo cumprimento do dever, que não sabe o que é misericórdia e quer sempre cumprir a justiça rigorosamente à risca. Javert não perdoa o passado de Valjean e será para ele um antagonista. Ele é uma espécie de oposto do bispo, que foi um exemplo de misericórdia e compaixão.

Anne Hathaway, Lés Miserables (2012)

Há vários pares opostos na história. O inspetor e o bispo. Valjean e o inspetor. E também Valjean e Fantine. Sim, pois ela é uma operária, abandonada com uma filha, vivendo na miséria e caindo cada vez mais em desgraça numa época em que Valjean estava no auge de sua prosperidade e se tornou seu patrão. 

Valjean só conhece Fantine pessoalmente quando ela está no clímax de sua vida, de modo que travam um contato tão rápido que mal há tempo para desenvolverem simpatia ou amor. Mas de algum modo isto acontece, mesmo que a princípio não percebam. E precocemente o encontro é interrompido pela morte dela. 

Russel Crowe, Lés Miserables (2012)

O amor, que até então Valjean jamais conhecera, vai ganhando forma quando ele adota a filha de Fantine, Cosette, e desde então irá seguir entre fugas e problemas, tendo em Cosette sua grande razão de viver. Depois de tudo o que passou como prisioneiro e fugitivo, foi o amor paternal que lhe deu alguma alegria.

Esta obra é um clássico do romantismo francês e rendeu muitas adaptações para teatro e cinema, além de musicais, minisséries e telenovelas. Em 2012, em comemoração ao musical francês de 1980, foi produzido o filme estrelado por Hugh Jackman, Russel Crowe, Anne Hathaway e Amanda Seyfried. A atuação de Anne Hathaway lhe rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante.

Anne Hathaway, Lés Miserables (2012)

O filme é nada menos que brilhante, com uma participação intensa de uma multidão de figurantes, todos encarnando com intensidade as massas miseráveis e sofridas. O trabalho de maquiagem e figurino é notável, caracterizando toda essa gente, dando vida à França problemática do século XIX.

Quanto aos protagonistas, especialmente a Anne Hathaway, a atuação é excelente e cheia de sentimento. A peça inteira está repleta de uma variedade de sentimentos: a agonia e humilhação de Valjean e Fantine em seus dias de miséria; a bravura heroica de Valjean enfrentando todos os obstáculos da vida, sua compaixão despertada por Fantine e Cosette; o ódio e orgulho de Javert e há até cômicos momentos protagonizados pelo casal de pilantras Thénardier (interpretador por Helena Bonham e Sacha Baron, o eterno Borat).

Lés Miserables (2012)

Enfim é um espetáculo de emoções. Você ri, chora, sente raiva de uns personagens e dó de outros. Há ainda outra camada nessa história: a crítica severa a uma sociedade impiedosa e gananciosa, à exploração humana que levou as pessoas a viverem em péssimas condições no século XIX e como a justiça da lei pode ser cruel e desnecessariamente pesada para com os menos privilegiados.

Hugh Jackman, Lés Miserables (2012)

Uma Thurman, Les Misérables (1998)
Uma Thurman antes e depois de cortar seu lindo cabelão na versão de 1998.

Os Miseráveis é um dos romances com o maior número de adaptações para teatro, cinema e TV. Entre as várias versões, temos de 1934, 1935, 1952, 1958, 1978, 1982, 1998 (estrelado por Liam Neeson e Uma Thurman) e uma série de 2018-2019 produzida pela BBC.

Les Misérables (1934)

Les Misérables (1935)

Les Misérables (1935)

Les Misérables (1935)

É interessante que a versão de 1952, dirigida por Lewis Milestone, tem como título alternativo El Inspector de Hierro (O Policial de Ferro). Este título põe ênfase então na figura de Javert. Javert é um personagem aparentemente plano, mas ao mesmo tempo complexo. Ele não é mau, não é vilão, embora seja o terrível antagonista de Valjean.

Javert é uma pessoa fanática, doutrinada pela consciência de respeito à lei. Pensando desta forma, ele é uma pessoa "boa", um lawful good. Ele é o exemplo de como uma personalidade lawful good pode se tornar cruel em nome do bem, como um inquisidor. Não é que Javert tenha ódio a Valjean. Ele simplesmente não consegue tolerar o fato de que sua carreira como agente da lei tenha uma ponta solta, um criminoso foragido.

A prova de que Javert não realiza sua cruzada por ódio é que, quando enfim consegue capturar Valjean, ele se vê diante de um dilema moral, pois Valjean anteriormente poupou a sua vida. Como forma de gratidão, Javert pretende soltar Valjean, mas ao mesmo tempo esta atitude entraria em conflito com seu dever de agente da lei.

A solução heroica que Javert encontra é o suicídio. Entre a punição e a gratidão, Javert, mesmo tendo sido um oponente tão implacável, acaba optando pela gratidão, que demonstra na sua forma distorcida de compreensão da realidade, punindo a si mesmo com a morte.

Les Misérables (1952)

Les Misérables (1952)

El Inspector de Hierro, aka Les Misérables (1952)

Além de ser um épico sobre a Revolução Francesa e um drama sobre a miséria e a doença que assolavam a sociedade do século XIX, Os Miseráveis possui esta camada mais profunda sobre a natureza humana, sobre a necessidade da misericórdia para equilibrar a justiça, do contrário a justiça se torna tirania e crueldade.

A misericórdia permite que as pessoas tenham uma segunda chance e evita que a justiça seja aplicada na forma de punições extremas. Valjean simplesmente roubou um pão porque estava faminto e sofreu extremamente na prisão e fora dela por causa deste pequeno delito, tudo porque faltou misericórdia no julgamento da sua causa.

Apesar de ter sofrido as injustiças do mundo, Valjean descobriu a misericórdia no padre que o ajudou e em seu próprio coração, após conhecer Fantine e adotar Cosette. Por fim, sua liberdade foi garantida por um inesperado gesto de misericórdia do seu maior adversário, Javert.

Les Misérables (1958)

Les Misérables (1978)

Les Misérables (1982)

Les Misérables (1998)

Les Misérables (2018-2019)

Sobre a série da BBC, ouso dizer que é melhor que todos os filmes, até mesmo o grandioso musical de 2012. Tendo 8 episódios e um total de 6 horas, a série consegue desenvolver detalhadamente a trama, até mesmo dos personagens coadjuvantes, como a garota Éponine, que tem todo um arco de história.

Éponine faz parte da família de Thénadier, o malandro aproveitador que será uma pedra no caminho de todos. Thénadier é realmente detestável e nada de bom nele se salva. É o personagem mais vilanesco da história. A pobre Éponine é criada nesse lar disfuncional e quando jovem se apaixona por Marius, mas ele só tem olhos para Cosette.

Les Misérables (2018-2019)

Mesmo assim, Éponine, que nunca teve um amor ou alegria na vida, segue apaixonada até o fim e acaba sendo, de certa forma, recompensada com um resquício de afeto, quando, já à beira da morte, recebe um beijo na testa de Marius. É um momento tocante porque a série desenvolveu bem a personagem, e olha que se trata de uma coadjuvante.

Os personagens principais, então, têm bastante substância e história. A Cosette, quando criança, foi muito bem interpretada pela pequena atriz Mailow Defoy, que conseguiu passar o ar sempre assustado e desconfiado de uma garota que foi criada por adultos abusivos que a faziam de escrava do lar. Adotada por Valjean, desenvolve uma eterna gratidão por ele e consegue ser salva das trevas, se tornando uma adulta mentalmente saudável e alegre. 

Mailow Defoy, Les Misérables (2018-2019)

O sofrido Valjean conseguiu blindá-la dos males do mundo, de uma forma até obsessiva, de modo que Cosette se tornou uma adulta ingênua, mas o importante é que ela teve uma vida feliz, o que para Valjean representou a maior redenção de todos os seus próprios sofrimentos.

A forma como a série explora cada interligação e ata cada ponta é formidável. Por exemplo, logo no início vemos Thénadier roubando os cadáveres no campo de batalha e eis que se depara com um soldado vivo, o homem que seria o pai de Marius, Pontmercy. 

Logo depois, Thénadier "adota" Cosette e a trata abusivamente, então enfrenta Valjean, enfim entregando Cosette, mas estará sempre espreitando em busca de oportunidades de extorquir Valjean. Quando, anos depois, Cosette se casa com Marius, é visitada por Thénadier, que mais uma vez tenta atormentá-la. Thénadier é como um encosto, nunca deixando que as pessoas sigam suas vidas em paz.

Nada conseguiu deter Thénadier até então, nem Valjean, nem Javert. O malandro estava sempre voltando e trazendo problemas. Até que, ao visitar Cosette uma última vez, é reconhecido por Marius. Marius sabia que Thénadier encontrou seu pai e, em gratidão, deu uma recompensa financeira ao malandro por este ter ajudado seu pai a sobreviver após a guerra.

Na verdade, Thénadier não foi lá tão útil assim a Pontmercy, já que pretendia apenas roubá-lo, mas de certa forma acidental ajudou o homem a sobreviver e Pontmercy prometeu ser-lhe sempre grato. Então passaram-se os anos, Pontmercy morreu e Thénadier guardou uma mágoa por nunca ter recebido um reconhecimento da sociedade pelo seu ato heroico. Quando Marius o recompensou, a mágoa finalmente foi aplacada e Thénadier enfim deixou Cosette em paz. 

Note-se, como as pontas soltas vão sendo todas solucionadas. Cada personagem encontra sua redenção ou catarse, até o Thénadier. A esposa dele, que era uma megera, terminou na cadeia, para alívio dos filhos que ela tratava terrivelmente. As crianças sentiram alívio em se libertar dela e viveram por conta própria nas ruas. Ao marido, Thénadier, restou a solidão, o melhor castigo para alguém que só trazia problemas para todas as pessoas em seu caminho.

Lily Collins, Les Misérables (2018-2019)

Fantine, obviamente, teve uma história curta, pois morreu precocemente, mas mesmo ela teve uma vida bem detalhada na série. Acompanhamos a sua fase de encantamento, quando apaixonou-se por um cafajeste (coisa que os filmes apenas mencionam por alto) e podemos sentir a sua frustração, após ela ser insensivelmente abandonada. 

Então aos poucos vemos como a vida dela vai seguindo de uma desgraça para outra, até chegar ao fundo do poço, tendo vendido o cabelo, os dentes, o sexo, e agora está na miséria física e moral, doente e abandonada. Ela encontra a redenção no gesto de altruísmo de Valjean, que então promete cuidar de sua filha Cosette.

Dominic West and David Oyelowo, Les Misérables (2018-2019)

O que falar de Valjean? Ele já começa a história no fundo do poço. Sequer tem um nome. É conhecido na prisão pelo número 24601. Ao concluir a pena, passará pelo processo de re-humanização, a começar por voltar a usar o próprio nome. O padre o ensina a misericórdia, elemento importante na reconstrução de sua personalidade e de sua humanidade. Ele prospera e adota a menina Cosette, em quem pode depositar o afeto que nunca recebeu na vida. Não à toa se torna um pai tão super protetor. Ver Cosette feliz será a redenção de seus próprios sofrimentos.

Quanto a Javert, é um personagem formidável, intenso. Nos filmes ele se parece mais com um vilão ou antagonista, mas na série podemos entender melhor sua psique. Javert de fato vê em Valjean sua Moby Dick, o monstro que ele caça obsessivamente, até que ele percebe que Valjean não era um monstro, mas um ser humano, contrariando suas crenças dogmáticas sobre a maldade intrínseca dos criminosos.

Ao ser agraciado por um gesto de misericórdia de Valjean (que teve a oportunidade de matar Javert, mas o libertou), Javert vê todo seu sistema de crenças ruir e entra num fabuloso conflito de consciência. Aí entendemos que ele nunca foi vilão. Javert apenas tentou fazer o que achava certo, mas o inferno está cheio de boas intenções, não é mesmo?

O vilão não era Javert em si, mas a sua crença, a sua opinião rígida e robótica de que deveria viver rigorosamente cumprindo a lei e punindo criminosos. Ele só enxergava preto e branco, até que Valjean acrescentou outros tons à sua visão e o pôs em crise de consciência.

O suicídio de Javert é um gesto de luta contra esse vilão interior. Assim, ele finalmente derrota o adversário de Valjean e mais uma ponta solta é resolvida.

Les Misérables, enfim, é uma história que satisfaz porque investe bastante na catarse, na redenção. Há muito sofrimento na vida de todos os personagens, até de Cosette, mas no fim cada um deles vai encontrando uma solução.

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