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Os homens que amavam Jesus

The Last Supper by Philippe de Champaigne

"E estava aconchegado no colo de Jesus um de seus discípulos, aquele a quem ele amava." (João 13:23)

A relação de Jesus com seus discípulos não era homogênea. E nem deveria ser, pois uma relação entre pessoas é naturalmente passível de discriminações. Sim, ninguém lida com todos da mesma forma. Ninguém tem por todos os mesmos sentimentos. Não seria diferente entre Jesus e os discípulos.

Ele tinha preferidos. Mesmo entre os doze apóstolos, havia alguns mais chegados, bem como havia outros mais chegados fora do círculo dos apóstolos. E alguns destes relacionamentos são bons exemplos para ilustrar a nossa própria condição, os tipos de envolvimentos que temos com as pessoas.

O amor de João

João era chamado no quarto evangelho de "o discípulo a quem Jesus amava". Era também o mais novo dos Doze. Sentava-se ao lado do Mestre, encostava-se em seu peito (pois os antigos não comiam sentados em cadeiras, mas no chão e, dependendo da forma de estirar o corpo, podiam encostar-se na pessoa ao lado, de acordo com a intimidade). Quando estava na cruz, Jesus confiou a João a tarefa de cuidar de Maria. Ele era, portanto, o mais chegado a Jesus em termos de afeto. Era como um irmão mais novo.

Há quem suspeite em Jesus e João uma espécie de pederastia, um amor socrático. O que torna isso improvável é o fato de eles pertencerem a um povo e cultura que não valorizavam este tipo de relação. Fossem gregos, talvez houvesse maior chance de se tratar de algo assim, mas para homens educados no judaísmo, seria considerado imoral. 

Ademais, não há necessidade de suspeitar que todo caso de afeto entre homens seja necessariamente de caráter sexual. É comum irmãos homens se amarem sem que haja libido envolvida. Da mesma forma dois amigos homens que se prezam muito podem tratar-se como irmãos. Talvez fosse assim que Jesus via João, como um irmão mais novo.

O importante é distinguir este exemplo como um envolvimento de afeto. E, aparentemente, afeto livre de paixões violentas, livre de crise. Há pessoas que são assim, que se lidam com tal harmonia que não há ambiguidades. Gostam-se sem risco de desastre.

O amor de Pedro

No último capítulo do Evangelho de João, encontramos Jesus a caminhar na praia com Pedro e João. Os dois discípulos estiveram desolados, pois Jesus estava morto. Então ele aparece na praia, conversa com eles, come peixe com eles e caminha com os dois. Mas não fala com João. Parece tão seguro da amizade com o jovem, que nem lhe dirige palavra. Por outro lado, fala com Pedro, faz um questionamento.

"Pedro, você me ama?". Por três vezes ele faz esta pergunta a Pedro e o pescador por três vezes responde. É uma espécie de expiação, uma vez que aquele homem havia negado a Jesus antes de seu martírio. Ele desistiu do amigo, afastou-se, fugiu. E Jesus, ao retornar, procura o amigo distante para reafirmar a amizade.

Pedro tinha um amor maculado, mais humano, mais adulto talvez. Afinal o que diferencia Pedro e João talvez seja a inocência infantil que João ainda carregava. Pedro já era do mundo dos adultos, da indecisão, da insegurança, do vacilo. Ele era o amigo que fere o amigo, mas sem intenção; fá-lo por fraqueza, por humanidade, mas no cerne da alma, continua amigo e basta que numa conversa Jesus o questione e ele reafirma o sentimento que nunca havia morrido.

O amor de Judas

Judas também era um dos mais chegados. A ele Jesus confiou a bolsa de dinheiro, sim, pois recebiam doações, ajuda de simpatizantes para poderem viajar pela Palestina, comprar comida quando necessário, enfim, custear as despesas de doze homens e suas famílias que vagam sem um trabalho fixo. E coube a Judas cuidar das finanças.

Ele abraçou a causa com mais fervor do que os outros. A prova disso eram suas críticas. Há dois tipos de críticos: aquele que faz isto por inveja, ciúmes ou mera inimizade e aquele que critica porque preocupa-se e deseja aperfeiçoar aquilo que lhe preocupa. Judas não era inimigo do ministério de Jesus como os fariseus. 

Ele queria ver a missão funcionando bem, tanto que questionava os gastos com dinheiro. Procurava a melhor forma de usar as doações pra ajudar os pobres. Incomodou-se quando uma mulher doou um perfume caro pra lavar os pés de Jesus, pois seria mais útil à missão vender o perfume e alimentar os pobres.

Mas, diferente de Pedro e de João, Judas tinha um amor ambíguo, mutante. Era tão zeloso da causa cristã, que seria capaz de odiar o Cristo, caso ele se desviasse da causa. Seu amor era como uma energia que se transforma. Como a luz que pode virar calor, o calor que pode virar luz.

Assim é o amor de algumas pessoas. De repente pode converter-se em ódio, o carinho em desagrado. E da mesma forma pode voltar a mudar, levando o indivíduo a um redemoinho perigoso e destrutivo.

Judas amava a Jesus com a devoção dum partidário político. Tinha-lhe admiração e encanto. Mas em algum momento se decepcionou, duvidou. E a dúvida o levou a afastar-se, traí-lo. Porém depois da traição, o ódio satisfeito adormeceu e acordou o amor desfigurado em remorso. "Judas foi e enforcou-se". O enforcamento de Judas foi uma prova de amor, de um amor maculado, doentio, mas amor.

O amor de José de Arimatéia

José era um judeu distinto, rico, respeitado. Não era discípulo declarado de Jesus, não seguiu com ele em peregrinação, mas conversou com ele, ouviu-o, tornou-se amigo. José não tinha amores tão afetuosos e íntimos como o de João, não se encostava no colo de Jesus. Não tinha o amor claudicante e maduro de Pedro nem a tempestade furiosa e perigosa que era o amor de Judas. 

José tinha-lhe respeito. Algo que não necessariamente envolve afeto, ou sentimentos ambíguos, ou uma necessidade forte de segui-lo zelosamente. José amava Jesus timidamente, evitou envolver-se na querela do julgamento e crucificação, não cortou orelhas de soldados como Pedro, nem traiu o amigo como Judas.

Mas foi o único que compareceu para recolher o corpo. Pedro e João já haviam fugido. Judas já estava morto. José se ofereceu para recolher o corpo da cruz, mandou enrolá-lo, limpá-lo e ofereceu sua própria sepultura para guardá-lo. Foi o único que cuidou do amigo quando já não havia mais nenhum.

(19,04,2012)

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