Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Ferrugem e Osso

Rst and Bone (2012)

Este filme é baseado num conto de mesmo nome (em francês, De rouille et d'os; em inglês, Rust and Bone) do autor canadense Craig Davidson, envolvendo duas pessoas em crise.

Ali (Matthias Schoenaerts) está desempregado, sem dinheiro e vive apenas com o filho Sam. Ele experimenta vários empregos temporários, mas vai se realizar como lutador em eventos clandestinos. Stéphanie (Marion Cotillard) é uma criadora de orcas que sofre um acidente na piscina, tendo as pernas amputadas.

Ainda antes do acidente, Stéphanie encontrou Ali numa boate em que ele trabalhava como segurança. Eles voltam a se encontrar quando ela já está em cadeira de rodas e precisando recomeçar a vida. A presença de Ali funciona como essa porta de volta para o mundo, pois ele, em sua simplicidade e afeto, a ajuda a se readaptar e também redescobrir o interesse sexual.

O filme é um drama envolvendo pessoas comuns e seus problemas e o esforço por continuar vivendo apesar das dificuldades. Ali e Stéphanie são pessoas quebradas pela vida, um osso fraturado, um ferro desgastado pela ferrugem.

Rst and Bone (2012)

Martírio e redenção em Os Miseráveis

Lés Miserables (2012)

O livro Lés Miserables, de Victor Hugo, foi publicado em 1862 e ambienta-se entre a Batalha de Waterloo (1815) e a Revolução Francesa (1832), tendo como protagonista Jean Valjean, um homem condenado a trabalhos forçados por ter roubado um pão para sustentar a família e que, devido a tentativas de fuga, teve a pena total de dezenove anos.

Cumprida a pena, Valjean vive marginalizado por causa da fama de ex-detento. É um homem castigado pela lei, pela sociedade, um homem que não teve sequer tempo de descobrir o amor, que muito cedo se tornou arrimo de família e conheceu a pobreza. Rude, de coração duro, descrente quanto à generosidade humana, é terrivelmente confrontado pela generosidade de um bispo que lhe deu comida, abrigo e ainda perdoou-lhe os furtos.

Hugh Jackman, Lés Miserables (2012)

O encontro com o bispo mudou radicalmente sua alma, despertou nele a índole para a compaixão. Recomeçou a vida e de tal forma prosperou que tornou-se um rico empresário e prefeito de uma cidade, conhecido por ajudar os pobres e ser exemplo de virtude. Mas pra isto ele teve de assumir um nome falso, ocultar seu passado.

No entanto, será perseguido durante anos pelo inspetor Javert, um homem fanático pelo cumprimento do dever, que não sabe o que é misericórdia e quer sempre cumprir a justiça rigorosamente à risca. Javert não perdoa o passado de Valjean e será para ele um antagonista. Ele é uma espécie de oposto do bispo, que foi um exemplo de misericórdia e compaixão.

Anne Hathaway, Lés Miserables (2012)

Há vários pares opostos na história. O inspetor e o bispo. Valjean e o inspetor. E também Valjean e Fantine. Sim, pois ela é uma operária, abandonada com uma filha, vivendo na miséria e caindo cada vez mais em desgraça numa época em que Valjean estava no auge de sua prosperidade e se tornou seu patrão. 

Valjean só conhece Fantine pessoalmente quando ela está no clímax de sua vida, de modo que travam um contato tão rápido que mal há tempo para desenvolverem simpatia ou amor. Mas de algum modo isto acontece, mesmo que a princípio não percebam. E precocemente o encontro é interrompido pela morte dela. 

Russel Crowe, Lés Miserables (2012)

O amor, que até então Valjean jamais conhecera, vai ganhando forma quando ele adota a filha de Fantine, Cosette, e desde então irá seguir entre fugas e problemas, tendo em Cosette sua grande razão de viver. Depois de tudo o que passou como prisioneiro e fugitivo, foi o amor paternal que lhe deu alguma alegria.

Esta obra é um clássico do romantismo francês e rendeu muitas adaptações para teatro e cinema, além de musicais, minisséries e telenovelas. Em 2012, em comemoração ao musical francês de 1980, foi produzido o filme estrelado por Hugh Jackman, Russel Crowe, Anne Hathaway e Amanda Seyfried. A atuação de Anne Hathaway lhe rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante.

Anne Hathaway, Lés Miserables (2012)

O filme é nada menos que brilhante, com uma participação intensa de uma multidão de figurantes, todos encarnando com intensidade as massas miseráveis e sofridas. O trabalho de maquiagem e figurino é notável, caracterizando toda essa gente, dando vida à França problemática do século XIX.

Quanto aos protagonistas, especialmente a Anne Hathaway, a atuação é excelente e cheia de sentimento. A peça inteira está repleta de uma variedade de sentimentos: a agonia e humilhação de Valjean e Fantine em seus dias de miséria; a bravura heroica de Valjean enfrentando todos os obstáculos da vida, sua compaixão despertada por Fantine e Cosette; o ódio e orgulho de Javert e há até cômicos momentos protagonizados pelo casal de pilantras Thénardier (interpretador por Helena Bonham e Sacha Baron, o eterno Borat).

Lés Miserables (2012)

Enfim é um espetáculo de emoções. Você ri, chora, sente raiva de uns personagens e dó de outros. Há ainda outra camada nessa história: a crítica severa a uma sociedade impiedosa e gananciosa, à exploração humana que levou as pessoas a viverem em péssimas condições no século XIX e como a justiça da lei pode ser cruel e desnecessariamente pesada para com os menos privilegiados.

Hugh Jackman, Lés Miserables (2012)

Uma Thurman, Les Misérables (1998)
Uma Thurman antes e depois de cortar seu lindo cabelão na versão de 1998.

Os Miseráveis é um dos romances com o maior número de adaptações para teatro, cinema e TV. Entre as várias versões, temos de 1934, 1935, 1952, 1958, 1978, 1982, 1998 (estrelado por Liam Neeson e Uma Thurman) e uma série de 2018-2019 produzida pela BBC.

Les Misérables (1934)

Les Misérables (1935)

Les Misérables (1935)

Les Misérables (1935)

É interessante que a versão de 1952, dirigida por Lewis Milestone, tem como título alternativo El Inspector de Hierro (O Policial de Ferro). Este título põe ênfase então na figura de Javert. Javert é um personagem aparentemente plano, mas ao mesmo tempo complexo. Ele não é mau, não é vilão, embora seja o terrível antagonista de Valjean.

Javert é uma pessoa fanática, doutrinada pela consciência de respeito à lei. Pensando desta forma, ele é uma pessoa "boa", um lawful good. Ele é o exemplo de como uma personalidade lawful good pode se tornar cruel em nome do bem, como um inquisidor. Não é que Javert tenha ódio a Valjean. Ele simplesmente não consegue tolerar o fato de que sua carreira como agente da lei tenha uma ponta solta, um criminoso foragido.

A prova de que Javert não realiza sua cruzada por ódio é que, quando enfim consegue capturar Valjean, ele se vê diante de um dilema moral, pois Valjean anteriormente poupou a sua vida. Como forma de gratidão, Javert pretende soltar Valjean, mas ao mesmo tempo esta atitude entraria em conflito com seu dever de agente da lei.

A solução heroica que Javert encontra é o suicídio. Entre a punição e a gratidão, Javert, mesmo tendo sido um oponente tão implacável, acaba optando pela gratidão, que demonstra na sua forma distorcida de compreensão da realidade, punindo a si mesmo com a morte.

Les Misérables (1952)

Les Misérables (1952)

El Inspector de Hierro, aka Les Misérables (1952)

Além de ser um épico sobre a Revolução Francesa e um drama sobre a miséria e a doença que assolavam a sociedade do século XIX, Os Miseráveis possui esta camada mais profunda sobre a natureza humana, sobre a necessidade da misericórdia para equilibrar a justiça, do contrário a justiça se torna tirania e crueldade.

A misericórdia permite que as pessoas tenham uma segunda chance e evita que a justiça seja aplicada na forma de punições extremas. Valjean simplesmente roubou um pão porque estava faminto e sofreu extremamente na prisão e fora dela por causa deste pequeno delito, tudo porque faltou misericórdia no julgamento da sua causa.

Apesar de ter sofrido as injustiças do mundo, Valjean descobriu a misericórdia no padre que o ajudou e em seu próprio coração, após conhecer Fantine e adotar Cosette. Por fim, sua liberdade foi garantida por um inesperado gesto de misericórdia do seu maior adversário, Javert.

Les Misérables (1958)

Les Misérables (1978)

Les Misérables (1982)

Les Misérables (1998)

Les Misérables (2018-2019)

Sobre a série da BBC, ouso dizer que é melhor que todos os filmes, até mesmo o grandioso musical de 2012. Tendo 8 episódios e um total de 6 horas, a série consegue desenvolver detalhadamente a trama, até mesmo dos personagens coadjuvantes, como a garota Éponine, que tem todo um arco de história.

Éponine faz parte da família de Thénadier, o malandro aproveitador que será uma pedra no caminho de todos. Thénadier é realmente detestável e nada de bom nele se salva. É o personagem mais vilanesco da história. A pobre Éponine é criada nesse lar disfuncional e quando jovem se apaixona por Marius, mas ele só tem olhos para Cosette.

Les Misérables (2018-2019)

Mesmo assim, Éponine, que nunca teve um amor ou alegria na vida, segue apaixonada até o fim e acaba sendo, de certa forma, recompensada com um resquício de afeto, quando, já à beira da morte, recebe um beijo na testa de Marius. É um momento tocante porque a série desenvolveu bem a personagem, e olha que se trata de uma coadjuvante.

Os personagens principais, então, têm bastante substância e história. A Cosette, quando criança, foi muito bem interpretada pela pequena atriz Mailow Defoy, que conseguiu passar o ar sempre assustado e desconfiado de uma garota que foi criada por adultos abusivos que a faziam de escrava do lar. Adotada por Valjean, desenvolve uma eterna gratidão por ele e consegue ser salva das trevas, se tornando uma adulta mentalmente saudável e alegre. 

Mailow Defoy, Les Misérables (2018-2019)

O sofrido Valjean conseguiu blindá-la dos males do mundo, de uma forma até obsessiva, de modo que Cosette se tornou uma adulta ingênua, mas o importante é que ela teve uma vida feliz, o que para Valjean representou a maior redenção de todos os seus próprios sofrimentos.

A forma como a série explora cada interligação e ata cada ponta é formidável. Por exemplo, logo no início vemos Thénadier roubando os cadáveres no campo de batalha e eis que se depara com um soldado vivo, o homem que seria o pai de Marius, Pontmercy. 

Logo depois, Thénadier "adota" Cosette e a trata abusivamente, então enfrenta Valjean, enfim entregando Cosette, mas estará sempre espreitando em busca de oportunidades de extorquir Valjean. Quando, anos depois, Cosette se casa com Marius, é visitada por Thénadier, que mais uma vez tenta atormentá-la. Thénadier é como um encosto, nunca deixando que as pessoas sigam suas vidas em paz.

Nada conseguiu deter Thénadier até então, nem Valjean, nem Javert. O malandro estava sempre voltando e trazendo problemas. Até que, ao visitar Cosette uma última vez, é reconhecido por Marius. Marius sabia que Thénadier encontrou seu pai e, em gratidão, deu uma recompensa financeira ao malandro por este ter ajudado seu pai a sobreviver após a guerra.

Na verdade, Thénadier não foi lá tão útil assim a Pontmercy, já que pretendia apenas roubá-lo, mas de certa forma acidental ajudou o homem a sobreviver e Pontmercy prometeu ser-lhe sempre grato. Então passaram-se os anos, Pontmercy morreu e Thénadier guardou uma mágoa por nunca ter recebido um reconhecimento da sociedade pelo seu ato heroico. Quando Marius o recompensou, a mágoa finalmente foi aplacada e Thénadier enfim deixou Cosette em paz. 

Note-se, como as pontas soltas vão sendo todas solucionadas. Cada personagem encontra sua redenção ou catarse, até o Thénadier. A esposa dele, que era uma megera, terminou na cadeia, para alívio dos filhos que ela tratava terrivelmente. As crianças sentiram alívio em se libertar dela e viveram por conta própria nas ruas. Ao marido, Thénadier, restou a solidão, o melhor castigo para alguém que só trazia problemas para todas as pessoas em seu caminho.

Lily Collins, Les Misérables (2018-2019)

Fantine, obviamente, teve uma história curta, pois morreu precocemente, mas mesmo ela teve uma vida bem detalhada na série. Acompanhamos a sua fase de encantamento, quando apaixonou-se por um cafajeste (coisa que os filmes apenas mencionam por alto) e podemos sentir a sua frustração, após ela ser insensivelmente abandonada. 

Então aos poucos vemos como a vida dela vai seguindo de uma desgraça para outra, até chegar ao fundo do poço, tendo vendido o cabelo, os dentes, o sexo, e agora está na miséria física e moral, doente e abandonada. Ela encontra a redenção no gesto de altruísmo de Valjean, que então promete cuidar de sua filha Cosette.

Dominic West and David Oyelowo, Les Misérables (2018-2019)

O que falar de Valjean? Ele já começa a história no fundo do poço. Sequer tem um nome. É conhecido na prisão pelo número 24601. Ao concluir a pena, passará pelo processo de re-humanização, a começar por voltar a usar o próprio nome. O padre o ensina a misericórdia, elemento importante na reconstrução de sua personalidade e de sua humanidade. Ele prospera e adota a menina Cosette, em quem pode depositar o afeto que nunca recebeu na vida. Não à toa se torna um pai tão super protetor. Ver Cosette feliz será a redenção de seus próprios sofrimentos.

Quanto a Javert, é um personagem formidável, intenso. Nos filmes ele se parece mais com um vilão ou antagonista, mas na série podemos entender melhor sua psique. Javert de fato vê em Valjean sua Moby Dick, o monstro que ele caça obsessivamente, até que ele percebe que Valjean não era um monstro, mas um ser humano, contrariando suas crenças dogmáticas sobre a maldade intrínseca dos criminosos.

Ao ser agraciado por um gesto de misericórdia de Valjean (que teve a oportunidade de matar Javert, mas o libertou), Javert vê todo seu sistema de crenças ruir e entra num fabuloso conflito de consciência. Aí entendemos que ele nunca foi vilão. Javert apenas tentou fazer o que achava certo, mas o inferno está cheio de boas intenções, não é mesmo?

O vilão não era Javert em si, mas a sua crença, a sua opinião rígida e robótica de que deveria viver rigorosamente cumprindo a lei e punindo criminosos. Ele só enxergava preto e branco, até que Valjean acrescentou outros tons à sua visão e o pôs em crise de consciência.

O suicídio de Javert é um gesto de luta contra esse vilão interior. Assim, ele finalmente derrota o adversário de Valjean e mais uma ponta solta é resolvida.

Les Misérables, enfim, é uma história que satisfaz porque investe bastante na catarse, na redenção. Há muito sofrimento na vida de todos os personagens, até de Cosette, mas no fim cada um deles vai encontrando uma solução.

Life of Pi

Life of Pi (2012)

O filme Life of Pi é baseado em livro homônimo de Yann Martel (2001). Em Portugal foi traduzido propriamente como A Vida de Pi. No Brasil, As Aventuras de Pi. Foi dirigido por Ang Lee, um taiwanês que ficou conhecido no ocidente após ganhar o Oscar em Brokeback Mountain (2006), mas que antes já havia dirigido um filme espetacular, O Tigre e o Dragão (2000). 

O elenco não é muito conhecido do grande público, com exceção de Gérard Depardieu que aparece como o cozinheiro do navio. Na verdade, Ang Lee fez questão de não usar rostos populares, tanto que rejeitou a participação de Tobey Maguire (o Homem Aranha), que atuaria como o escritor que entrevista Pi, escolhendo em seu lugar Rafe Spall.

Life of Pi (2012)

É uma história de naufrágio. A princípio. Afinal torna-se bem mais que isso, ganha ares de fantasia e espiritualidade. O enredo é: um escritor, em busca duma boa história, entrevista Pi, um indiano que sobrevivera a um naufrágio na adolescência e que passou meses no oceano.

Pi (apelido que ele mesmo criou para se livrar do ridículo nome de nascimento Piscine, que não apenas significa “piscina” como produz um trocadilho com “pissing”, “mijando”) conta que, após um naufrágio, toda sua família morreu e ele ficou sozinho num barco ocupado por uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre. 

Quando os animais morrem, resta apenas ele e o tigre e ambos terão de aprender a conviver um com o outro. Desta forma, cria-se um elo, até mesmo uma comunicação telepática, e durante os meses de isolamento no mar, enfrentam tempestades e uma série de eventos milagrosos que vão garantir sua sobrevivência.

Todavia, existe algo por trás dessa história. Há um significado que vai se tornando cada vez mais explícito. Não se trata apenas de um conto de sobrevivência. O tigre representa a natureza humana mais perigosa, o monstro interior que existe em todos os humanos e que deve ser dominado antes que nos devore. 

Life of Pi (2012)

Life of Pi conta, portanto, a história de um jovem que lutou para manter a sanidade em uma circunstância extrema, e como enfim o seu monstro interior se recolheu na selva e na escuridão da alma para que ele pudesse voltar a viver como um ser pacífico.

Deus e religião são bastante mencionados. Desde criança, Pi era curioso e buscava o sentido último da vida, tanto que abraçou com igual fervor o hinduísmo, cristianismo e islamismo, além de receber influências de seu pai cético. De certa forma, o filme promove o diálogo religioso e intercultural.

Numa camada superficial vemos uma saga marítima, aventuras de um náufrago, mas na camada interna trata-se de um drama psicológico e a grande história acontece na mente de Pi. É uma aventura mental, de autodescoberta e de descoberta de Deus, um Deus que não estava no céu, nem nos templos, mas dentro do próprio Pi.

Max e os Felinos (Moacyr Scliar)

Um fato curioso: Em 1980, o escritor brasileiro Moacyr Scliar publicara o conto Max e os Felinos, sobre um garoto que naufraga e fica à deriva num barco com um felino que a princípio lhe causa medo. Esta história foi traduzida para a língua inglesa em 1990.

Life of Pi, publicado em 2001, ganharia em 2002 o aclamado prêmio literário Booker Prize e, ao mesmo tempo em que o livro e o autor se tornavam conhecidos, o jornal The Guardian publicou uma matéria alegando que a obra seria um plágio de Max e os Felinos. O próprio Moacyr Scliar, no entanto, preferiu não levar adiante um possível processo.

Birdman, um filme essencialmente metalinguístico

Birdman (2014)

Mais do que drama e comédia, Birdman (2014) é uma sátira. E como toda boa sátira, realiza uma autorreflexão. Nesse filme, o cinema de Hollywood olha para si mesmo. O personagem de Michael Keaton, Riggan, que está constantemente se olhando no espelho do camarim, é como a própria indústria cinematográfica a refletir e fazer uma autocrítica.

Riggan representa o super astro típico de Hollywood: torna-se uma celebridade ao protagonizar filmes consumidos pelo grande público que adora ação, super heróis, helicópteros, explosões, robôs gigantes, meteoros cortando o céu. Em diversas cenas há referências a estes blockbusters como o Batman, obviamente, e também os Transformers, Homem Aranha, Superman, etc.

Assombrado por esse passado de sucesso, Riggan desenvolveu uma personalidade alucinada. Ele constantemente ouve a voz do personagem Birdman em sua consciência e se imagina com poderes telecinéticos, capaz de voar, não sabendo distinguir a realidade daquilo que sua imaginação cria. Um ator que foi dominado pelo personagem. Seu parceiro no teatro, Mike, também é bastante perturbado e chega a confessar que apenas no palco ele se considera verdadeiro, enquanto fora dele está vestindo uma máscara, uma falsa personalidade.

De certa forma, o filme parece indiretamente criticar mais o público do que a indústria, pois Riggan é um ator dedicado, estudioso e zeloso pelos detalhes. Ele quer produzir peças e filmes de qualidade refinada, mas a voz do Birdman tenta convencê-lo a abraçar novamente o cinema de massa. Ele diz: “Dê ao povo o que ele quer. Algum filme pornô apocalíptico à moda antiga... Você salva o povo de suas vidas chatas e miseráveis... É disso que estou falando. Armas pesadas, tanques, mísseis... Eles amam sangue, eles amam ação. Nada dessa conversa depressiva e filosófica...”.

As filmagens nas ruas e teatros de Nova Iorque levaram apenas um mês para serem concluídas e a edição moldou o filme de tal maneira que parece sem cortes, como se a câmera acompanhasse os personagens de cena em cena, numa narrativa dinâmica e simulando uma história contada em tempo real, como no teatro.

Há uma óbvia referência ao Batman interpretado por Michael Keaton na década de 90. No filme, é dito que Riggan não interpreta o Birdman desde 1992, o mesmo ano em que Batman Returns foi lançado. A coincidência é claramente intencional, pois Riggan, como o próprio Michael Keaton, teve um momento glorioso na carreira quando protagonizou um filme de super herói, nos moldes da grande indústria de entretenimento, e depois disso, apesar de ter tido uma produtiva carreira, nunca mais foi protagonista de um blockbuster (filme “arrasa quarteirão”, feito para o grande público).

A coincidência avança também para o personagem do Edward Norton, Mike, que é talentoso, mas bastante problemático e caprichoso, uma paródia do próprio Norton que tem reputação de ser um ator difícil de lidar.

Temos ainda outra coincidência no fato dos três atores principais já terem participado de filmes de super herói: Norton em The Incredible Hulk (2008), Emma Stone em The Amazing Spider-Man (2012) e The Amazing Spider-Man 2 (2014), e o próprio Michael Keaton em Batman (1989) e Batman Returns (1992). Também Riggan conta uma anedota sobre George Clooney, que foi quem assumiu o papel de Batman depois de Michael Keaton, em 1997.

Da mesma forma, quando está em busca de um ator para sua peça, Riggan menciona nomes ligados a produções no estilo super herói, como Woody Jarrelson, que esteve na serie The Hunger Games, Michael Fassbender, que foi o Magneto nos filmes dos X-Men, e Jeremy Renner, que foi o Gavião Arqueiro no Universo Marvel Cinematográfico. Há uma breve cena em que Riggan vê na TV uma notícia sobre o sucesso bilionário de Robert Downey Jr. como Iron Man e, contrariado, desliga a TV. 

Birdman (2014)

Ainda há uma semelhança entre Riggan e o personagem de Fight Club (1999), Tyler, que possuía um transtorno dissociativo e misturava ilusão com realidade. Tyler, cuja segunda personalidade foi interpretada por Edward Norton, atira no próprio rosto numa tentativa de suicídio, mesmo gesto repetido por Riggan, que também tem um transtorno dissociativo. Além disso, Riggan e Mike (de cuecas) em certo momento se envolvem numa luta, uma referência cômica ao Clube da Luta.

Há um pequeno detalhe que pode ser uma referência ou uma coincidência profética: quando Riggan é "possuído" pelo alter ego do Birdman, ele estala os dedos e então acontece uma alteração mágica da realidade que se transforma num mundo de super heróis. Quatro anos depois, o estalo mágico de dedos se tornou a grande marca do personagem Thanos em Guerra Infinita.

Talvez Iñárritu tenha realmente previsto este evento, já que nos quadrinhos o Thanos, de posse das jóias do infinito, havia estalado os dedos lá na década de 90. Era de se esperar que esse momento chegaria ao cinema. Se a proto-referência aos Vingadores foi intencional, Iñárritu é realmente um grande nerd.

Birdman (2014), Thanos reference?

Todas estas e outras referências fazem de Birdman um filme essencialmente metalinguístico. É o cinema comentando o cinema, uma sátira da indústria cinematográfica e dos próprios atores, como uma piada interna. Não à toa Birdman recebeu tantas indicações ao Oscar: melhor filme, melhor diretor, melhor ator principal, melhor ator e atriz coadjuvantes... Pois aqui o cinema completa a sua jornada metalinguística, premiando um filme que fala sobre ele próprio.

O trio de atores principais, todos indicados ao Oscar, tem uma configuração emblemática, pois representam três gerações. O Michael Keaton, acima dos 60 anos, um ator que viveu o cinema antes da era da internet e dos avançados efeitos especiais que hoje são tão comuns; Edward Norton, ator quarentão e que é o intermediário entre a antiga e a nova geração; e a Emma Stone, na faixa dos 20 anos, cuja personagem não é uma atriz, mas que possui conhecimento sobre o funcionamento da mídia atual, das redes sociais, Youtube, Twitter... Uma representante dos novos tempos marcados pela internet.

Birdman (2014)

Atenção para spoilers!

Interpretações da última cena: 

Durante todo o filme há uma atmosfera de fantasia, que pode ser o delírio do próprio Riggan, que conversa com seu amigo Birdman imaginário e acha que pode voar. Na última cena, porém, há um comportamento estranho da filha dele quando ele se joga pela janela e ela, correndo para ver, levanta o olhar para o céu e sorri, como se contemplasse o pai voando de verdade.

Bom, uma possível interpretação é que a cena final também é um delírio do protagonista. Em que momento este delírio começou é algo a se especular. Talvez no momento em que pulou da janela, ele, durante a queda, imaginou que não chegou ao chão, mas saiu voando, então o olhar admirado de sua filha faz parte do delírio. Mas na verdade ele atingiu o chão e morreu, segundos depois de imaginar tudo isso.

Outra possibilidade é que o delírio tenha começado quando ele ainda estava na cama do hospital, inconsciente. Então imaginou não apenas a cena em que salta a janela, mas também a notícia de jornal que leu na cama, mostrando que ele foi aclamado pelo público depois que deu um tiro em si mesmo em pleno palco.

Também podemos supor que o delírio aconteceu naquele momento em que ele atirou em si mesmo e foi ali que ele morreu, mas na fração de segundo em que seu cérebro foi atingido, sua mente criou toda uma história em que ele acordaria vivo no hospital, seria aclamado nos jornais e, saltando da janela, voaria de verdade, pois alcançou um estágio de transcendência.

Por fim, pode ser que aquele último momento em que a filha dele ergue os olhos não seja um delírio dele, mas dela. Ele verdadeiramente saltou e morreu, mas ela, vendo o corpo esmagado no chão e tomada pelo choque traumático, entrou num surto e imaginou que seu pai estava voando. Nesse caso, a loucura que antes era só de Riggan, contagiou a filha dele.

É, todas estas são interpretações bem tristes, mas existe ainda outra possibilidade menos realista e mais otimista. Se o filme é ambientado em um mundo surreal, diferente do nosso mundo, então é provável que seja real o fenômeno de Riggan ter adquirido poderes de super-herói.

Naquela ocasião em que ele estalou os dedos, a realidade se transformou em algo fantástico e ele saiu voando porque realmente tinha superpoderes. Essa seria a interpretação mais literal da história. Aconteceu exatamente aquilo que parece ter acontecido.

O fato é que finais deste tipo, que abrem margem para várias interpretações, não têm uma resposta definitiva. Cada pessoa deverá chegar à conclusão que mais lhe agrada.

Emma Stone, Birdman (2014)

Spawn 1-150 (1992-2005)

Spawn by Todd McFarlane

Todd McFarlane, criador do Spawn, desenhou a sua própria revista até o número 23. No número 24 convidou o sócio da Image Comics, Marc Silvestri e a partir do número 25 Greg Capullo assumiu o lápis. As edições 8, 9 e 10 tiveram roteiro respectivamente de ninguém menos que os gênios Alan Moore, Neil Gaiman e Frank Miller.

Spawn by Greg Capullo

A partir da edição 25, Greg Capullo assumiu o desenho da revista, mas Todd McFarlane continuou bastante presente, cuidando de sua cria, tanto escrevendo o roteiro quanto ocasionalmente participando do desenho e arte final. A edição 36 teve roteiro de Alan Moore, a 37 de Julia Simmons. Tony Daniel foi desenhista convidado nas edições 39, 41, 43, 45 e 47. Na edição 49, o próprio McFarlane desenhou.

A edição 60 teve uma participação bem curiosa. Foram inseridos na arte de Capullo alguns desenhos infantis feitos pela Cyan McFarlane, a filha de Todd que na época era uma criancinha e que obviamente foi a inspiração para a personagem Cyan, filha de Spawn.

McFarlane entregou definitivamente a tarefa do desenho a Greg Capullo, mas continuou no roteiro por um bom tempo, até que a partir da edição 71 passou a escrever a história em dupla com Brian Holguin. Esta foi a segunda grande mudança na produção da revista, após a entrada de Capullo. 

McFarlane é um artista versátil. Fez fama principalmente como desenhista e arte finalista no Homem Aranha e ganhou experiência de roteiro em Spawn, mas é notável a melhoria na qualidade das histórias do Spawn depois que Brian Holguin assumiu o roteiro. Foi a partir daí que a revista amadureceu.

Spawn by Dwayne Turner

Nas edições 76 e 77 Dwayne Turner foi o desenhista, em todas as demais continuou o trio McFarlane, Brian Holguin e Greg Capullo.

A trama muda bastante a partir da edição 85, quando Spawn finalmente sai dos becos onde morava. Desde então ele passou a vagar pelos mundos e as histórias se tornaram mais grandiosas e místicas, envolvendo céu e inferno com mais frequência. Também o poder do Spawn aumentou absurdamente.

Nesta fase finalmente apareceram grandes inimigos, como o próprio Lúcifer, além do monstro ancestral Urizen, citado pelo poeta William Blake, e o irritante Malebolgia é finalmente morto. Angela também se torna mais frequente.

A edição 101 teve roteiro do próprio Todd McFarlane e Angel Medina assume definitivamente o lugar de Greg Capullo como desenhista. A capa foi desenhada por ninguém menos que Alex Ross. Nas edições 105 e 106 o roteiro é de Steve Niles e em todas as demais edições Brian Holguin segue como roteirista. Na edição 117, a revista completou dez anos de existência.

A substituição de Capullo por Medina representou uma queda na qualidade do desenho, mas o roteiro de Holguin continuou trazendo arcos interessantes: Spawn dominou o inferno, depois o reinado é assumido por Cagliostro e Al Simmons volta à vida como humano.

She-Spawn by Nat Jones

Brian Holguin e Angel Medina seguiram respectivamente como roteirista e desenhista, mas no arco Fronteira Infernal (edições 139 a 141), Nat Jones foi especialmente convidado para desenhar essa que pra mim foi a melhor história de Spawn até então. A combinação do roteiro de Holguin com o traço sombrio, mas limpo de Nat Jones ficou perfeita! Sem contar a bela colorização de Jay Fotos. Conseguiram criar um inferno sombrio e sulfuroso, com um clima pesado e melancólico. Além disso a Spawn feminina ficou com um visual muito legal.

Na edição 150 Angel Medina desenhou em parceria com Philip Tan. Foi a despedida de Medina que a partir das próximas edições seria substituído definitivamente por Philip Tan.


Toradora!

Toradora! (2008)

Toradora! (2008)

Percebe-se o sucesso de Toradora na variedade de versões que foram produzidas desde seu início como uma light novel (uma espécie de pulp fiction ou folhetim, muito comum no Japão) que até 2009 já havia vendido mais de 3 milhões de exemplares no Japão. Em seguida veio a versão em mangá, o anime, incluindo um OVA (anime lançado diretamente como filme no mercado de vídeo, em vez da televisão ou cinema), e até mesmo um jogo eletrônico e programa de web rádio com os dubladores. 

Os protagonistas são Ryuji e Taiga e é de seus nomes que vem o título da série, pois Taiga soa como "tiger" em inglês, sendo tigre em japonês "tora". Ryuji significa em japonês "filho do dragão" e, por sua vez, a palavra inglesa "dragon" é pronunciada pelos japoneses como "doragon", daí o "dora" do título. Ou seja, toradora pode ser traduzido como "o tigre e o dragão", uma referência ao mito milenar de que estes dois animais se equiparam em poder e podem andar juntos.

Toradora! (2008)

Toradora! (2008)

Taiga de fato tem uma personalidade de tigre. Arredia e agressiva, amedronta a todos os colegas da escola, apesar de seu tamanho minúsculo, inferior à media da sua idade, que lhe rendeu o apelido de "tigre de bolso". De família rica, passou a morar sozinha por desavenças com o pai, mas acabou por se aproximar de Ryuji, a princípio por interesse e comodismo, já que ele é muito prestativo e até passou a cozinhar para ela e ajudá-la em outros afazeres. 

Toradora! (2008)

Ryuji é o oposto dela. Possui uma aparência estranha, especialmente os olhos que parecem agressivos, mas isto é uma mera característica física que não tem relação com sua personalidade, pois ele é muito manso e prestativo, tem uma devoção por limpeza e trabalhos domésticos e sempre se esforça por cuidar de todos que lhe são próximos.

Toradora! (2008)
A mãe do Ryuji é uma gatinha hein.

Também diferente de Taiga, Ryuji é de uma família pobre e enfrenta constantes preocupações com emprego e o sustento dele e sua mãe, com quem vive. Taiga e Ryuji, portanto, formam uma dupla no estilo "a dama e o vagabundo".

Taiga é o que, na tipologia de personagens de mangá, se chama tsundere, uma personalidade que se mostra a princípio agressiva, mas que ao longo da história revela um lado mais amistoso e fofo, resultando num temperamento complexo e agridoce.

Toradora! (2008)

Se a relação de Taiga com Ryuji começa por interesse, com o tempo acaba por tornar-se uma amizade tão íntima que parecem irmãos; e Taiga de fato frequenta a casa dele como se fosse da família. Mas ainda vão descobrir algo mais, vão perceber que se sentem atraídos um pelo outro e ora lutar contra, ora a favor desse sentimento.

Toradora! (2008)
Ami, a garota popular e "capa de revista".

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Para complicar ainda mais o romance, há outros personagens: Minori, a garota por quem Ryuji já era interessado antes de conhecer Taiga; Yusaku, melhor amigo de Ryuji e por sua vez o primeiro crush da Taiga; e Ami, adolescente precoce e com uma beleza acima da média, tanto que trabalha como modelo. Ela se mostra explicitamente interessada em Ryuji. E assim seguem eles nessa ciranda de paqueras.

Toradora! (2008)

Um detalhe curioso é o mascote Inko-chan (literalmente "periquito", com o sufixo carinhoso "chan"). Geralmente mascotes em mangás são animais bonitinhos e fofinhos, já o Inko-chan é um tanto bizarro e mal cuidado. Está sempre perdendo as penas, sua gaiola é suja (aliás, nos animes não é comum haver mascotes engaiolados) e ele sequer sabe falar direito, produzindo sons sofríveis e errando as palavras que lhe ensinam, fazendo dele, enfim, um mascote... er... encantador.

Toradora! (2008)

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