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O louvor ao capitalismo e à tecnologia em A Volta ao Mundo em 80 Dias

A Volta ao Mundo em 80 Dias

A Volta ao Mundo em 80 Dias (1873), de Júlio Verne, é o que eu chamaria um romance Sessão da Tarde. Naqueles tempos em que não havia cinema nem TV, as pessoas que queriam se distrair com alguma aventura tinham livros como esse. É um livro bem a cara do seu tempo.

É também a cara da Revolução Industrial, do capitalismo e do progresso tecnológico, um dos temas característicos de Júlio Verne. O protagonista, Phileas Fogg, é o modelo de homem ideal daquela época: gentleman, cordial mas sem ser emotivo, fleumático e calculista. O perfeito inglês.

Fogg numa conversa casual aceita o desafio de dar a volta ao mundo e se mostra desde o início absolutamente convicto de que fará isso em 80 dias a despeito de quaisquer contratempos. De onde vem essa matemática confiança de Fogg? Vem do dinheiro e da tecnologia.

Sendo rico, Fogg parte em viagem com uma bolsa cheia de grana, muuuita grana, e é tudo o que ele precisa pra se virar no mundo. Mas este dinheiro só é útil porque no mundo moderno (segundo os padrões do século XIX) o planeta está interligado por uma série de recursos tecnológicos, especialmente navios e trens. Antes mesmo da era do avião, viajar rapidamente pelo mundo já era possível graças a toda essa estrutura de transporte promovida pela Revolução Industrial.

Sendo, aliás, uma história que se passa boa parte do tempo em navios, é interessante a riqueza de termos náuticos usados pelo autor, o que em certos momentos parece até um língua estranha para leigos, como no trecho que diz: "Os mastaréus dos gafetopes foram amainados, assim como o pau de botaló"¹. Se você, como eu, não tem intimidade com navios e navegação, vai ler um troço desses e pensar: "que diabo é isso que ele está falando?"

Júlio Verne já teve muitas adaptações para o cinema, a começar pelo Viagem à Lua lááá em 1902². Além dos filmes diretamente relacionados a seus livros, ele exerceu uma enorme influência não só na ficção científica como na aventura. 

A Volta ao Mundo... é uma aventura que em certos momentos lembra um Indiana Jones: as peripécias na Índia, andando de elefante e fugindo de uma turba de fanáticos; o tiroteio entre americanos e índios dentro de um trem em movimento, enquanto o fiel escudeiro Passepartout, o Sancho Pança de Phileas Fogg, rasteja de um vagão ao outro próximo aos trilhos. Aí está a fonte de onde George Lucas bebeu.

Falando em Sancho Pança, aliás, é curioso fazer esta comparação entre Phileas Fogg e Dom Quixote. Ambos são aventureiros, cavaleiros medievalescos modernos, só que com personalidades opostas. Quixote é um sonhador, um delirante, enquanto Fogg é a pura lógica e razão, jamais dominado pelas emoções.

A frieza de Fogg, porém, o torna insosso e desinteressante. Ele não é um personagem memorável. Já Dom Quixote, com sua loucura, entrou até para o dicionário com o adjetivo "quixotesco". São os excêntricos e sonhadores que deixam uma marca mais profunda no mundo. Não que personagens fleumáticos não possam ser marcantes, só que é um fenômeno mais raro, como é o caso do Spock.

De certa forma, a dupla Fogg e Passepartout também pode ser comparada a Spock e Kirk, um personagem cerebral e racional, enquanto o outro é mais emotivo e muscular. A harmoniosa parceria entre razão e emoção.

Around the World in 80 Days (2004)

Esta história rendeu muitas adaptações, como o filme homônimo de 2004, produzido pela Disney e estrelado por ninguém menos que Jackie Chan, contando com outras presenças ilustres, como Owen Wilson, Luke Wilson e até Arnold Schwarzenegger. 

Esta versão abraçou a comédia e já começa fazendo piada com o próprio nome do fiel ajudante de Phileas Fogg, o francês Passepartout. Ele é interpretado pelo Jackie Chan que roubou um banco e disfarça sua identidade dizendo que é francês. Ele tenta improvisar um nome francês e a palavra que vem à sua mente é "passaporte" (passport), que ele complementa com um sufixo afrancesado, resultando em Passepartout.

A presença do Jackie Chan torna esta adaptação bem peculiar, já que ele inclui a sua conhecida assinatura de fazer cenas de luta corporal com coreografias criativas e meio atrapalhadas. Também diferente do livro, o filme não atribui o sucesso da viagem tanto ao dinheiro e à tecnologia e mais à sorte, uma sequência de eventos fortuitos que vão levando os personagens ao longo da aventura.

Notas:

1: Outra tradução mais amistosa trazia: "Mandou ferrar todas as velas e arriar as vergas e os mastaréus". O fato é que o livro está cheio desta linguagem náutica.


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