Tarantino é um daqueles diretores conhecidos por ter uma notável assinatura. Seus filmes têm uma fórmula própria, uma mistura de elementos que os tornam parte de um gênero próprio, o cinema "tarantinesco".
Entre os elementos dessa fórmula, temos a mistura de violência e humor sarcástico; várias cenas com diálogos triviais que parecem em nada contribuir para a trama, mas que dão substância e carisma aos personagens; o evidente fetiche por pés; as referências a filmes clássicos, especialmente westerns e filmes de samurai (duas paixões do diretor desde quando ele ainda trabalhava em uma locadora de vídeos), etc.
Uma receita em particular, de toda essa fórmula tarantinesca que faz seus filmes prenderem nossa atenção, é o enredo baseado numa evolução de problemas que vão crescendo como uma bola de neve, até concluir em uma catarse. Pulp Fiction (1994) é um dos melhores exemplos dessa receita.
O filme basicamente gira em torno de duas histórias paralelas. A primeira envolve a dupla de capangas da máfia Vincent (John Travolta) e Jules (Samuel L. Jackson). Eles começam em um dia rotineiro de seu trabalho: visitam um empregado do chefão da máfia para recuperar uma mala e executá-lo por ter contrariado o patrão.
É nessa cena que temos a excelente fala do Samuel L. Jackson, citando uma passagem fictícia da Bíblia (Ezequiel 25:17) e implicando com o sujeito que não entendia sua gírias: "Does he look like a bitch?"; "SAY WHAT AGAIN, MOTHERFUCKER!".
Um dos personagens mais marcantes do Samuel L. Jackson. |
Até aí tudo normal. Cumprem a tarefa, levam a mala e um dos sobreviventes. Aí acidentalmente o Vincent estoura os miolos do passageiro e agora surge um problema: terão que contratar um especialista para ajudar a se livrar do corpo e remover as evidências do assassinato.
Eles conseguem resolver isso e novamente tudo volta ao normal. A dupla vai comer em uma lanchonete e aí novamente a sorte joga outro problema nas costas deles: a lanchonete é assaltada por um casal. Se levarem a mala, Jules e Vincent vão se encrencar seriamente com o chefão. Jules, porém, consegue, com frieza e diálogo, resolver esse último obstáculo para a sua aposentadoria, quando enfim encontra a tranquilidade. A catarse.
Filmar os pés das atrizes é uma assinatura (ou melhor, fetiche) do Tarantino. |
A outra história é protagonizada por Bruce Willis (Butch) e vai bem mais a fundo nessa fórmula do problema que gera outro problema. Butch havia combinado com o apostador Marsellus para intencionalmente perder numa luta de boxe. Butch, porém, não cumpriu o acordo, matou o adversário na luta e agora tem que fugir da cidade.
Estava criado o primeiro problema: ele traiu Marsellus e agora bastava fugir para bem longe. Acontece que ele era muito apegado a um relógio herdado do pai e precisou voltar ao apartamento para recuperá-lo. Com isso ele deu à sorte uma chance de prejudicar sua fuga e foi o que aconteceu. Butch se depara com Vincent, enviado por Marsellus para matá-lo. Todavia, Butch consegue se safar, matando Vincent.
Continuando a fuga, ele por acaso se depara com o próprio Marsellus no meio da rua. Atropela-o, mas também bate o carro. Acontece uma perseguição a pé e Butch entra em uma loja de armas, saindo na porrada com Marcellus e quase matando-o, mas então é interrompido pelo dono da loja. Mais uma vez a solução de um problema é adiada pelo surgimento de outro problema.
O dono da loja de armas é um maníaco tarado. Ele aprisiona Butch e Marsellus no porão e chama um policial amigo para estuprá-los e depois matá-los. Quem imaginaria que a coisa escalaria para este nível? Butch podia simplesmente ter perdido a luta de boxe e nada disso teria acontecido. Ou, quando resolveu fugir, podia ter partido sem olhar pra trás, sem voltar até sua casa em busca de um relógio. Estas pequenas atitudes atraíram o azar de mais problemas e é isso que fez a história cada vez mais interessante.
Mais uma vez Butch consegue superar esse obstáculo, usando uma espada samurai (o que é claramente uma das armas preferidas do Tarantino) e, por ter salvo Marcellus do estuprador, tem sua dívida perdoada. Acontece enfim a catarse e ele pode ir embora em paz.
Entre estas duas histórias, ainda há um breve conto que funciona como interlúdio, como intervalo da trama principal, oferecendo um momento de distração prazerosa: o passeio de Vincent com a mulher do seu chefe, Mia Wallace (Uma Thurman). É o momento mais descontraído do filme, quando vemos os dois numa relação platônica cheia de tensão sexual e temos a famosa cena em que os dois dançam twist.
Mas até este momento de descontração encontra um problema a ser resolvido: Mia sofre uma overdose e Vincent tem que correr contra o tempo para salvá-la. Tudo dá certo, ele a deixa sã e salva em casa e se
despede em paz.
Enfim, é isso que faz a narrativa tarantinesca tão gostosa de acompanhar. A história evolui em problemas, mas no fim não deixa pontas soltas. Há uma solução quase milagrosa e que traz a sensação de "Ufa!". Talvez mais do que crime, comédia ou terror, as histórias de Tarantino sejam, acima de tudo, uma grande aventura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário