Da nova safra de atrizes com cerca de 20 anos, Joey King é uma das mais produtivas e promissoras. Há quase
quinze anos ela esteve presente no cinema com breves participações em alguns filmes. Agora adulta,
finalmente ganhou o papel principal na comédia romântica A Barraca do Beijo (2018)¹, está vindo aí
com o terror The Lie (2018)² e mostrou seu talento para o drama em The Act (2019).
Esta série foi baseada na história real da garota Gipsy Rose que hoje está presa, condenada pelo assassinato
da própria mãe, com ajuda do namorado; uma espécie de Suzane Richthofen dos EUA. A diferença é que,
enquanto Suzane foi uma garota de classe média com uma vida relativamente normal, a Gipsy sofreu um
relacionamento abusivo e doentio por parte da mãe.
A série merecidamente rendeu um Golden Globe para a veterana Patricia Arquette, que interpretou a
problemática mãe da Gipsy, Dee Dee. Dee Dee é uma das personagens mais passivo-agressivas que já vi na
minha vida. Ela sempre fala com um tom de voz dengoso de quem está mendigando a pena dos outros, reage
a qualquer contrariedade com choro, drama e até escândalos. Ela conseguiu ser realmente detestável.
Dee Dee foi uma mãe extremamente possessiva. Não deixava a filha sair de casa, nem ter amigos. Insistia
sempre que o amor materno dela era tudo o que bastava, um amor que a fazia manter a filha numa verdadeira
prisão domiciliar, um cativeiro.
Não que elas não saíssem de casa. Dee Dee mantinha as aparências, socializava com os vizinhos, cuidava da
filha zelosamente, levando-a inúmeras vezes ao hospital. Gipsy era uma figura conhecida nos hospitais;
infantilizada pela criação, falava com um tom de voz de criança, vestia-se como princesa da Disney e era
imediatamente querida por todos pela sua fofura e por ser vista como a menina doente que vivia numa
cadeira de rodas.
Tudo isso era encenação, daí o título "The Act". Gipsy de fato era uma garota boa e inocente, afinal foi criada
isolada do mundo, numa vida de ingenuidade e ignorância, enganada pela atuação da mãe que inventou falsas
doenças (como a alergia a açúcar e a incapacidade de andar) para manter a filha nesse constante estado de
fragilidade e necessidade, precisando da presença materna para tudo.
Mesmo na adolescência, Gipsy ainda tomava banho e se alimentava com ajuda da mãe. Desnecessariamente,
ela tinha uma sonda gástrica e era proibida de ingerir alimentos pela boca porque supostamente a fariam mal.
Tudo mentira. Além disso, Dee Dee tinha um impressionante arsenal de remédios de todo tipo, usando para
super medicar a filha e mantê-la sob controle com sedativos, soníferos, etc.
Assim, na primeira parte da série, logo vemos como a coitada da garota foi por toda sua vida vítima de um
macabro experimento de controle por parte de sua mãe, que para isso usou drogas, mentiras e,
principalmente, uma atitude de chantagem emocional, de "amor materno" super protetor. Dee Dee era um
monstro.
Gipsy enfim torna-se adulta, aos 18 anos, mas até isso lhe é negado, pois sua mãe mentiu sobre sua data de
nascimento, insistindo que ela ainda tinha 15 anos. Aos poucos a garota vai abrindo os olhos para toda essa
farsa de vida em que sua mãe a aprisionou e passa a desejar a liberdade. É aí que começa a tragédia.
O desengonçado e psicopata namorado da Gipsy. |
Gipsy conheceu um cara na internet que vira seu namorado virtual secreto. Interpretado por Calum Worthy, o
garoto Nick se encaixa num estereótipo de um incel ou um freak com tendências psicopatas. Ele tem uma
grande limitação cognitiva, é bem atrapalhado e lento de raciocínio, mas consegue encantar a solitária e
ingênua Gipsy que o enxerga como seu príncipe encantado que vai tirá-la de casa.
Por causa dos conflitos com a mãe e toda sua problemática criação, Gipsy, que por um lado é a garota fofa
que todos amam e têm dó, desenvolve um fragmento de outra personalidade que deseja a morte da mãe. Nick
aparece como o catalizador desse desejo e eles acabam armando um plano para consumá-lo.
As atrizes e as verdadeiras Dee Dee e Gipsy. |
Aí vem a segunda parte da série, quando Dee Dee já está idosa e doente e não tem mais a energia dominadora
de antes. Agora quem vai se tornando um monstro é a Gipsy, que convence o namorado a matar sua mãe.
Todavia, são dois jovens imaturos e de pouca inteligência. Cometem um crime sangrento e deixam vários
rastros enquanto fogem para a casa dos pais de Nick. Facilmente o crime é desvendado e o casal é preso.
Na vida real, Nick foi condenado a prisão perpétua e Gipsy teve apenas 10 anos de pena, que ainda está
cumprindo, pois seu delito teve como atenuante toda a história de relacionamento abusivo e cativeiro físico e
psicológico imposto pela mãe.
Nick e Gipsy na vida real. |
Em flashbacks, entendemos um pouco do por que Dee Dee ser assim. Ela foi criada, por sua vez, por uma
mãe muito rígida e crítica. É a velha história dos pais que são problemáticos porque tiveram pais
problemáticos; um ciclo sem fim, como uma maldição familiar.
É uma história sobre vampirismo. Dee Dee é um exemplo de um tipo de pessoa que vampiriza
emocionalmente as outras por meio do coitadismo. Qualquer crítica que alguém lhe fizesse ou qualquer não
que dessem recebia logo uma reação chorosa e histriônica. Este tipo de pessoa vive de sugar as energias e a
piedade alheia.
De maneira emblemática, o filme da Disney preferido de Gipsy e Dee Dee era Tangled (2010)³, aquele
sobre a Rapunzel, mantida em cativeiro pela madrasta super protetora, Gothel, que usava como pretexto o
argumento de que o mundo lá fora era perigoso e fazia isso justamente porque a Rapunzel tinha propriedades
mágicas que lhe forneciam perpétua juventude. Ou seja, vampirismo.
No tom de voz e no comportamento, Dee Dee se mostrava bastante infantilizada. O seu vampirismo não a
fazia literalmente mais jovem, como a Gothel do conto de fantasia, mas a mantinha psicologicamente imatura
e emocionalmente dependente. Com o tempo, Dee Dee até desenvolveu doenças reais, como a diabetes, para
ter mais um motivo para manter a filha em casa cuidando dela⁴.
Diferente do conto da Rapunzel, porém, Gipsy não teve um final feliz.
Notas:
4: O tipo de chantagem emocional que Dee Dee fazia com a filha é bem característico da Síndrome de Münchhausen por procuração, segundo a qual um cuidador inventa falsas doenças para a criança ou mesmo provoca pelo convencimento a manifestação de doenças psicossomáticas, assim a criança está sempre dependente, se tornando um pet do cuidador. É um sinal de extremo narcisismo da pessoa que, querendo toda atenção e a presença constante da criança, a torna cativa por meio desta manipulação psicológica. Tendo doenças estranhas e difíceis de tratar ou mesmo de diagnosticar, a criança é mantida em casa, não tem amigos, toda companhia que ela tem é a do cuidador narcisista. Não bastando provocar doenças em Gipsy, Dee Dee acabou ela própria adoecendo, o que se tornou mais uma forma de manter a filha sempre junto de si.
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