O escritor Roland Barthes cunhou um termo que gosto bastante: "biografema". Biografemas são partículas da vida de uma pessoa, breves momentos, muitas vezes triviais, mas que são marcantes e carregam muito significado. Costumo colecionar biografemas em minha memória.
Um de meus biografemas preferidos remonta a uma breve situação da infância. Não lembro bem o ano, eu devia ter uns 10 anos mais ou menos. Durante o recreio, eu estava com outros colegas na frente da coordenação (pois ela ficava na mesma área do pátio) e por peraltice um dos meninos bateu na porta da coordenação.
A coordenadora saiu e perguntou, pronta para dar uma bronca: "Quem foi?". O menino que batera na porta apontou pra mim imediatamente e falou: "Foi ele". A cordenadora nem se deu ao trabalho de investigar essa afirmação, simplesmente olhou pra mim com olhar reprovador e deu uma bronca. Eu não me defendi, antes fiquei sem palavras, surpreso com toda essa situação.
Esta cena trivial deve ter durado uns 20 segundos, mas se perpetuou na minha memória pelo valor emblemático que lhe atribuí. Ela ilustra algumas verdades sobre a comunidade humana.
É natural que as crianças mintam e sacaneiem umas às outras, ao menos as crianças normais. Curiosamente, isto são ferramentas de socialização que os adultos também usam, porém de formas mais sofisticadas e disfarçadas.
Dia desses experimentei o famoso The Sims e achei interessante que, entre as opções de socialização dos bonequinhos, existe o recurso de "contar uma fofoca". Isso não foi inserido ao acaso no jogo. Há estudos que comprovam que as pessoas usam a fofoca para socializar, mesmo que moralmente seja uma prática questionável.
O menino que caradepaumente me acusou pela travessura que ele mesmo cometeu na certa tinha traquejo social, tanto que a coordenadora acreditou na palavra dele sem hesitar. Minha reação, para estar no mesmo nível, deveria ser o revide. Eu deveria acusá-lo de volta e iniciar uma pequena discussão, o que poderia despertar a simpatia da coordenadora para investigar a acusação. As pessoas respeitam quem revida.
Eu era um menino distraído em meu mundo introspecto. Com traços de autismo e sendo um INTJ, vivia no meu Fantástico Mundo de Bob (e não à toa adorava esse desenho). Isto explica por que, entre os vários meninos que estavam ali, o colega escolheu a mim para acusar. Ele sabia que eu não iria reagir, que me pegaria de surpresa.
Foi somente com o passar dos anos que entendi esta verdade da convivência humana. As pessoas estão constantemente recorrendo a fofocas, mentiras e acusações para se dar bem. Isso remonta ao mito primitivo de quando, confrontados sobre o fruto proibido, Adão disse: "Foi Eva" e Eva disse: "Foi a Serpente". A arte de apontar o dedo.
Confesso que nunca tive muito saco pra isso, e, mesmo que tivesse interesse, não teria a habilidade para tal. Não posso dizer que este biografema, este momento que durou alguns segundos, tenha realmente um grande peso sobre o desenvolvimento da minha desconfiança com as pessoas (o que na verdade tem causas mais ligadas à família, como a maioria dos problemas das pessoas na vida, já que é na família que experimentamos com mais frequência e intensidade o melhor e o pior do ser humano), mas meu cérebro escolheu como um evento simbólico pela sua simplicidade.
A vida humana é cheia destes códigos tácitos e que são tabus. É o tabu que impede o código de ser quebrado, de ser desvendado. O código da Matrix não é open source, é mascarado. Ou seja, são coisas sobre as quais normalmente não se deve falar, pois falar sobre isso estraga a experiência social.
As pessoas que enxergam os códigos sociais, como a mentira, a fofoca, a arte da negociação, do flerte, da propaganda, etc., podem tirar proveito disso. O grande exemplo disso são os políticos. A política é uma atividade que costuma atrair gente que consegue enxergar o código da Matrix social, seja de forma consciente (o cara sabe perfeitamente dessas regras) ou intuitiva. Logo, os políticos mais bem sucedidos são especialistas em socializar e se promover por meio da falsidade. Na analogia da Matrix, este tipo de gente é comparável ao manipulador Merovíngio.
O mesmo acontece com os atores. Os bons atores não são os que sabem fazer caras, vozes e bocas, mas os que quebraram o código da Matrix dos sentimentos humanos e sabem como triggar estes sentimentos nas outras pessoas. E isto é formidável e resulta em arte, diferente do uso que os políticos fazem deste código que resulta em desastre.
Há aqueles que, uma vez que enxergaram estes códigos sociais, reagem com repugnância, revolta, e se tornam misantropos, antissociais. Na analogia da Matrix, comparar-se-iam ao Agente Smith, que nutria nada além de ódio por aquele mundo.
Há os sonhadores e visionários que, uma vez enxergando o mundo por trás da cortina do tabu, ficam insatisfeitos com essas verdades e pensam em transformar a sociedade. São a versão gêmea do revoltado, porém agindo no sentido inverso. O revoltado pensa em destruir e o sonhador pensa em reconstruir. Ambos acham mesmo que podem mudar a Matrix de alguma forma. São os Neos e Trinitys da vida.
Há diversas outras maneiras de se reagir à descoberta da Matrix: entregar-se à farra do hedonismo; cair na apatia conformista do fatalismo; esvaziar-se de significados por meio do niilismo, etc...
Já experimentei vários destes ismos em diferentes fases da vida, da revolta misantropista ao sentimento messiânico de salvação e sacrifício. Acabei encontrando o equilíbrio e o sossego numa prática simples: a solitude. Muitos já testaram isso antes de mim: padres do deserto, monges, anacoretas, budistas, taoístas, bucólicos e andarilhos.
Na solitude conseguimos ter uma visão mais limpa do big picture, o que é curioso. Ao nos afastar de todo o ruído social e dessa chuva de códigos, parece mais fácil entendê-los, por uma lupa sobre os detalhes da vida. É uma prática quase científica, mas também mística. O resultado pode ser uma clareza de mente que leva àquilo que Spinoza descrevia como "nem rir nem chorar, apenas entender".
Um dos personagens que mais admiro é o Spock. Ele tinha essa virtude spinozana do entender. Tudo para Spock era "fascinating" porque, antes de reagir de forma passional, ele reagia com a curiosidade, tentando entender antes de julgar. Como esta virtude faz falta nos dias atuais...
Bom, não ouso dizer que já experimentei esse tipo de iluminação e na verdade nem tenho a pretenção de conseguir algo assim. Eu tenho um lado passional, mas como todo bom introvert, ele queima nas profundezas, dando a impressão de que externamente nada sinto. Os extrovertidos são mais habilidosos na arte de mentir, mas os introvertidos são naturalmente dotados da indecifrável poker face.
Enfim, só quero descanso mesmo, porque minha alma anciã é muito cansada. Mas eu nem pretendia me delongar tanto sobre um assunto que começou numa lembrancinha boba da infância. Esse é o poder dos biografemas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário