Nos últimos anos os filmes e séries de super-heróis com uma abordagem mais "adulta e realista" têm sido uma tendência. É o caso de Brightburn (2019)¹, The Boys (2019)², Invincible (2021)³ e agora também O Legado de Júpiter (2021).
Isto tudo no fim das contas é fruto da influência de Watchmen, lá dos anos 80, do gênio e bruxo Alan Moore. Foi Watchmen quem consagrou essa ideia de desconstruir o mito dos heróis e representar a maior equipe de todas, a Liga da Justiça, de uma forma satírica e sombria. O que foi uma vanguarda nos anos 80, agora naturalmente já é clichê, mas não deixa de ser interessante, especialmente para o público nerd adulto.
Nestes quatro exemplos, o modelo é basicamente o mesmo: vemos versões alternativas do Superman e da Liga da Justiça. Em Brightburn vemos o que aconteceria se o Superman na infância se tornasse psicopata; em The Boys, o Superman tem complexo de grandeza e zero empatia pelas pessoas e só segue a carreira de super-herói porque gosta do culto à sua personalidade; em Invincible o Superman é o pai do protagonista e segue uma ideologia totalitária, pretendendo "salvar o mundo" dominando-o.
Jupiter's Legacy recua nessa visão pessimista e retorna à imagem original do Superman, ilustrada no personagem Utopian. Assim como seu nome indica, Utopian acredita piamente que pode usar seus poderes para criar um mundo melhor, utópico, e sem abuso de força.
Utopian entende que a importância do herói não está em seus poderes, mas em seu exemplo. Ele tem uma função simbólica de inspirar e ser um guia moral para a sociedade, um conceito que já era aplicado há milênios na figura de divindades e santos, no próprio Cristo. No fim das contas, todo grande super-herói, a começar pelo Superman, não é um arquétipo de Jesus?
É bom lembrar que já na trilogia do Nolan, a partir de 2005, o Batman dizia que seu papel era ser um símbolo e inspirar a população. No caso dele, porém, sua estratégia era inspirar medo. Ao se vestir de morcego e atuar na noite, ele queria ser uma espécie de demônio punidor, representando os sentimentos de culpa e medo do julgamento, que, assim como a esperança, também deveriam existir para frear o mal na sociedade. Se o Superman é arquétipo de Jesus, Batman é o Diabo medieval, aquele que castiga os pecadores. Ou, em outras mitologias, Zeus e Hades ou Santa Claus e Krampus, etc.
Utopian acaba levando tão a sério essa sua ideologia heroica que perde um pouco da sua humanidade. Não que ele se torne um monstro, como um Homelander do The Boys. Ao contrário, ele se torna um puritano da paz que está a todo momento vestindo o personagem. Por isto ele acaba negligenciando outros aspectos mais terrenos de sua vida, como o papel de pai.
Seus dois filhos, Chloe e Brandon, acabam recebendo uma criação problemática, pois o mito Utopian é sempre um pai ausente, ocupado que está em salvar as pessoas o tempo todo. Brandon, quando adulto, segue os passos do pai, mas com dúvidas sobre sua ideologia pacifista; Chloe se afasta da família e dos super-heróis, indo viver uma vida humana normal.
Na série, o evento que põe à prova a ideologia do Utopian é a batalha contra o clone de Blackstar (um personagem que parece ser inspirado em Darkseid). Blackstar mata dois membros daquela "Liga da Justiça" e chega perto de matar o próprio Utopian, ao que Brandon intervém, matando Blackstar.
À primeira vista, Brandon fez a coisa certa. Evitou um massacre adotando o princípio da legítima defesa. Utopian discute com ele e tenta mostrar que matar nunca deve ser uma opção para um super-herói, o que parece ser uma regra muito rígida e até fanática.
Há um momento, porém, depois que a notícia da batalha é divulgada, em que um policial chega no Brandon e o elogia por ter matado o monstro e fala que ele também gostaria que a polícia agisse assim: "um tiro na cabeça, problema resolvido".
Esse breve diálogo deixa claro que no fundo Utopian estava certo. Os heróis têm uma influência simbólica sobre as pessoas. Não se trata simplesmente de enfrentar vilões e vencer, mas de ser exemplo. Ao matar um vilão, mesmo que em uma situação extrema, o herói acaba, querendo ou não, inspirando as pessoas comuns a acreditar que essa é a solução mais fácil para os problemas humanos. E este sentimento pode crescer e infectar a sociedade.
O princípio contido no Código dos super-heróis, que Utopian segue tão fielmente, na verdade é admirável, só que a maneira como Utopian tenta colocá-lo em prática beira o fanatismo e o delírio. Quem melhor explica isto é o psicólogo que Utopian costuma visitar, Jack (que é ironicamente um gênio do crime preso numa supermax).
Jack simplesmente diz que a vida real não se resumo a preto e branco, mas que é composta por tons de cinza. Assim é também com a ética e a maneira de praticá-la. O princípio de não matar é importante, mas inevitavelmente haverá ocasiões na carreira dos super-heróis em que terão de optar por ele como uma exceção à regra.
O Legado de Júpiter é mais do mesmo, uma vez que essa fórmula "adulta e realista" já se tornou comum. Outra fórmula clichê é o drama familiar que rola no núcleo dos protagonistas, algo que existe desde Star Wars. A série, porém, se diferencia de outras produções do gênero por dar mais ênfase a esse aspecto simbólico, à maneira como os super-heróis inspiram os humanos, como líderes, santos ou ícones.
Um detalhe que achei legal é a caracterização. Os personagens usam uniformes coloridos e colantes bem ao estilo dos quadrinhos. Por muito tempo o cinema e a TV tiveram vergonha desses uniformes. Desde os primeiros filmes dos X-Men surgiu uma tendência a fazer algo mais realista, roupas de couro, geralmente escuras. Enfim estão ousando adotar essa estética que dá um ar mais de fantasia às produções, afinal quadrinhos de super-heróis são fantasia, em duplo sentido.
Notas:
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