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Zumbis humanizados e tragédia shakespeareana em Army of the Dead

Army of the Dead (2021)

Olha, eu já vi muitos filmes e séries de zumbis. Muuuitos. Já vi várias variantes do tema, construções e desconstruções. Falo com tranquilidade¹ que o que o Zack Snyder fez em Army of the Dead é algo novo.

Zumbis humanizados não são novidade. Na série In the Flesh (2013), bem como nos filmes Warm Bodies (2013, resenha aqui) e Maggie (2015, resenha aqui), os zumbis são retratados não como monstros, mas como pessoas doentes, pessoas com sentimentos e até consciência. Parecem mais com leprosos do que mortos-vivos.

Se, por um lado, a proposta de humanizar zumbis não é nova, por outro Army of the Dead fez isto de uma maneira peculiar. O filme já começa mostrando o "paciente zero", um zumbi que demonstra ter muita força e agilidade, diferente dos zumbis convencionais. Ele é levado pelos militares, trazido da Area 51. Sim, a origem do DNA zumbi nessa história é alienígena.

Army of the Dead (2021)
Vedetes, noivas e gogoboys zumbis.

Esta criatura consegue escapar e passa a infectar pessoas em Las Vegas, a ponto da cidade precisar ser cercada por containers numa enorme quarentena (um tema já bem clichê nos dias de hoje, convenhamos). Ah sim, já ia me esquecendo da trama principal: é um heist movie. Um grupo de especialistas é contratado por um ricaço japonês (provavelmente uma homenagem a Inception) para resgatar 200 milhões de um cofre em Las Vegas antes que a cidade leve uma bomba atômica na cara.

A verdade é que estes personagens humanos não importam muito, com exceção do Dave Bautista que sempre chama atenção pelo seu tamanho e carisma. São os zumbis que roubam a cena e não à toa o título do filme é focado neles: o exército de zumbis, o Army of the Dead.

Não há muita explicação sobre como estes zumbis se organizam, o que é ótimo, evita aqueles roteiros superdidáticos e que subestimam a inteligência do público. É na prática que observamos e temos a percepção de que aquelas criaturas existem em uma sociedade organizada, com hierarquia de castas e níveis de poder.

Athena Perample; Army of the Dead (2021)
A Rainha Zumbi.

Há dois zumbis chamados Alfa, que claramente são mais inteligentes e têm uma habilidade quase telepática de liderança sobre os demais. Vemos animais zumbis, como um fucking tigre e um cavalo, e há gradações de agressividade entre eles. Tem zumbis que são super lerdos e dormentes e não te atacam se você passar de fininho perto deles; tem outros que são ágeis, saltam ao estilo parkour e se movem com ginga intencionalmente pra evitar que você acerte eles na cabeça. 

Há uma cena em que um zumbi torce o pescoço de uma pessoa (uma das cenas mais inesperadas e memoráveis do filme), o que mostra o nível da inteligência deles. O líder usa um elmo de chumbo pra se proteger das balas. Alguns são meras bestas que atacam e mordem de forma animalesca, mas tem esses que lutam como humanos.

Army of the Dead (2021)
O gosto de Snyder por referências mitológicas: aqui vemos um Cavaleiro do Apocalipse ao lado de Zeus. Também no início do filme a caravana militar que carrega o primeiro zumbi se identifica como The Four Horsemen, outra referência aos 4 cavaleiros bíblicos.

Army of the Dead (2021)
Outra referência mitológica: a cabeça da Medusa levada em um saco.

Mas ok, castas de zumbis e hordas lideradas por um alfa já são comuns desde Resident Evil. O que chama mais atenção é como Snyder aborda esse sentimento humano e tribal daqueles seres. Vemos que há um casal de alfas e a rainha zumbi está grávida (o que se deduz quando o rei zumbi encosta o ouvido na barriga dela, sem mais explicações). A turba comemora.

Eles têm um sentimento de perpetuação, celebram a vinda de um bebê da espécie. É uma sociedade organizada que planeja crescer e se multiplicar. Assim que os mercenários entram na área de quarentena, são abordados pelo rei e a rainha que curiosamente, numa comunicação tácita, negociam o passe livre dos humanos em troca de um sacrifício. Assim eles entregam para o casal o humano mais escroto do grupo e os zumbis diplomaticamente deixam o grupo entrar.

Fica claro aí que esta sociedade zumbi não tem o mero objetivo de comer pessoas e matar todo mundo. Eles estão abertos à negociação. Como qualquer tribo ou comunidade, querem apenas existir e ter seu espaço. Essa trégia, porém, foi rompida quando outro escroto do grupo decapitou a Rainha Zumbi, pois (este é o plot twist) o objetivo último da missão não era pegar o dinheiro, mas levar uma amostra destes seres para pesquisa militar.

Army of the Dead (2021)
E o zumbi chorou.

Ao ver a Rainha morta, o Rei Zumbi remove o feto morto de seu ventre e, diante de seus súditos, chora. Sim, o zumbi chora, com direito a lágrima e tudo. Esse foi o auge da sua humanização. Vemos um zumbi em estado de luto, lamentando a morte de seus entes queridos. 

Mais adiante, a mercenária Lilly usa a cabeça da Rainha Zumbi como refém, apontando uma arma para ela diante do Rei, de modo que ele hesita em atacar, ou seja, o zumbi mais uma vez demonstra ter um sentimento forte pela parceira, sentimento que se manifesta tanto na preocupação pela vida dela, quanto na ira vingativa com que persegue aqueles que a decapitaram.

Army of the Dead é o retorno de Zack Snyder ao gênero do terror que o lançou no cinema. Em 2004 ele dirigiu o remake de Madrugada dos Mortos (resenha aqui) que possui uma agradável contação de história. Foi o melhor filme do Snyder antes dele entrar para o grande negócio dos super heróis. Eis que agora ele reinicia o ciclo, voltando às raízes (só que dessa vez com mais dinheiro).

Os elementos snyderianos que viraram assinatura do diretor estão ali: muito zoom e câmera lenta (na verdade até que ele se conteve e usou o slow-mo direitinho só em momentos-chave), um leve humor negro, gore e referências à mitologia grega e bíblica. 

Graças a Zeus, desta vez Snyder não abusou de outro recurso que era sua assinatura: o filtro de cores bem escuro e quase monocromático. Tem o filtro meio azul cobalto que ele gosta de usar, mas não chega ao ponto de comer as cores todas. Deu uma amenizada na saturação.

Enfim, olhando sob o aspecto da humanização dos zumbis, Army of the Dead chega a ser uma espécie de tragédia shakespeariana (lembrando mais uma vez de Warm Bodies, que cria uma evidente relação Romeu e Julieta entre um zumbi e uma humana) envolvendo o Rei e a Rainha Zumbi. No fim das contas, todo mundo, ou quase todo mundo, morre nessa história e não há vencedores.

Pontos extras para as cenas finais, quando um dos personagens cita o grande mitólogo Joseph Campbell: "It is by going down into the abyss where we recover the treasures of life. Where you stumble, there lies your treasure". Como não poderia deixar de ser, no rolas dos créditos toca Zombie, da saudosa banda The Cranberries.

Curiosidades:

É bom notar que Army of the Dead não tem qualquer relação com Dawn of the Dead, o primeiro filme do Snyder lá de 2004. Aqui ele pretende criar todo um universo novo e devo dizer que ele caprichou nos detalhes.

Existem dicas espalhadas que dão espaço para uma sequência ampliando esse universo. De fato, já está programado o lançamento de um anime chamado Army of the Dead: Lost Vegas.

No início do filme, quando os militares estão transportando o primeiro zumbi perto da Area 51, fazem menção a uma "Nave-mãe", provavelmente uma nave alienígena onde o encontraram. Num breve momento, é possível ver dois pontos luminosos no horizonte, comportando-se como UFOs.

Army of the Dead (2021)
Ali no canto à direita, os dois UFOs no céu.

Ok, os zumbis têm origem alienígena e isso parece óbvio desde o início, mas tem outro detalhe que não recebeu explicação alguma e que deve ser explorado no anime ou outros filmes: os robôs. Pois é, bizarra e misteriosamente, vemos alguns zumbis de olhos com brilho azul e partes do rosto que parecem robóticas. O mais bizarro é que os humanos matam estas criaturas e em nenhum momento demonstram surpresa. É como se neste mundo o conceito de robô humanoide já seja normal.

Army of the Dead (2021)

Só com isso o Zeca Snyder já tem material pra trabalhar por alguns anos e desenvolver um snyderverso de zumbies. Será que veremos isto acontecer?

Como sempre, Snyder gosta de fazer referências bíblicas, especialmente envolvendo Jesus. O Rei Zumbi é chamado às vezes de Alfa e o último personagem a sobreviver, Vanderohe, tem um símbolo de Ômega tatuado no peito. Temos aí o início e o fim, o Alfa e o Ômega, um dos títulos de Jesus.

Vanderohe, sendo acadêmico de filosofia, é o que tem as falas mais eruditas do longa. Ele cita Joseph Campbell e menciona a possibilidade deles estarem em um loop temporal em mundos paralelos. As teorias logo começaram a surgir na internet.

Vanderohe sobreviveu à bomba atômica porque foi trancado em um cofre bem no epicentro da explosão. Quando ele sai do cofre em meio às ruínas, vai embora a pé, depois de carro e avião. Uma das teorias internéticas é que a explosão nuclear pode ter provocado alguma espécie de singularidade que levou o cofre para um mundo paralelo, logo, Vanderohe saiu em outro universo, iniciando um novo ciclo. 

Army of the Dead (2021)
O Alfa e o Ômega.

Pois eis que vou além. Tendo sido infectado, ele demorou bastante para desenvolver qualquer sintoma. Caminhou por horas, pegou um avião e só então viu a mordida no braço. Devido à exposição à radiação, será que ele desenvolveu algum tipo de mutação? Será então, e aí entra minha teoria, que ele não vai se transformar em um zumbi do mal (o final do filme dá a entender isso, que ele será o paciente zero da próxima infestação no México, mas isto pode ser uma pegadinha), mas vai desenvolver alguma espécie de hibridismo, permanecendo um humano, mas com superpoderes? 

Ou seja, Vanderohe será como um Blade, e será o protagonista do próximo filme, como um super-herói, tendo agora o poder para peitar outros zumbis alfas e provavelmente ele será mais poderoso que o Alfa deste primeiro filme, afinal ele é o Ômega, a versão última. O tempo dirá se estou certo.

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Notas:

1: Se você está lendo isso em 2030 ou mais, talvez nem saiba que isso foi uma referência ao velho meme do Choque de Cultura.

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