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Cada indivíduo é uma multidão

Venom

Tradicionalmente se entende o ser humano como um indivíduo. Um corpo, uma mente, uma alma, uma personalidade. Qualquer coisa que pareça violar esta normalidade é tida como patológica. Daí se estranhar alguém que nasça com duas cabeças ou que manifeste múltiplas personalidades. Porque se acredita na unidade.

Pensamos duma forma monárquica. O Deus deve ser um só, a pessoa deve ser indivíduo, indivisível, monolítica e, duma forma romântica, sempre se admirou mais o governo dum rei do que dum grupo de pessoas como um senado ou um parlamento. Tendemos à unificação, à uniformidade, ao homogêneo.

Isto é um paradoxo, porque a evolução na natureza produz heterogeneidade. O próprio curso do universo foi do simples para o complexo. De uma mônada inicial, duma massa informe de fótons ou energia pura, surgiram os átomos, as primeiras moléculas, as estrelas e, da explosão das estrelas, os planetas que têm uma diversidade de materiais bem maior que as estrelas. A vida surgiu da diversidade, da formação de moléculas cada vez mais complexas.

Enfim, a evolução do universo segue como uma árvore que em seu início possui apenas um tronco e vai-se ramificando em galhos e em cada galho surgem ramos e em cada ramo folhas. A evolução se dá do simples para o complexo.

Nós somos o fruto dum processo de diversificação. Observe-se o corpo humano (assim como dos outros animais). Somos um aglomerado de pequenos seres vivos. Cada célula é um ser vivo e pode inclusive viver isolada do corpo por determinado período. Agindo em cooperação por uma "vontade" intrínseca (a programação no DNA da célula a orienta quanto ao que deve fazer em parceria com as outras), a célula compõe uma nação chamada corpo. E ainda há agrupamentos intermediários entre a célula e o corpo que são os órgãos.

O curioso é que um corpo funcional não é feito apenas disto. Até aqui podemos ousar uma explicação baseada na unidade: "Bom, mas estas células todas obedecem a um só senhor que é o cérebro e o próprio código do DNA". Acontece que existem mais seres vivos trabalhando em nós, seres que fogem ao comando de nosso cérebro. 

São as bactérias. Atualmente se vive um frenesi bactericida. As pessoas são educadas a temer os micróbios. Somos uma sociedade paranoicamente antisséptica. Vendem-se sabonetes bactericidas que passam uma ideia de que o simples contato com o ar é perigoso, como se nossa pele fosse tão vulnerável que está a sofrer ataques mortais de hordas demoníacas de micróbios. Então esfregamos a pele com os detergentes antibióticos.

Acontece que o corpo não funciona bem sem bactérias. É claro que existem microrganismos nocivos, mas estes tomam a fama de todos os microrganismos. Vamos aqui dar o devido crédito às bactérias que nos beneficiam, que cooperam conosco, chamadas de probióticas. Elas estão trabalhando em nossos intestinos, em nosso sangue, ajudam a confeccionar vitaminas que o corpo não sabe produzir, limpam o sangue de toxinas, evitam o aparecimento de bactérias nocivas, protegem-nos contra doenças e infecções.

E elas não estão sob as ordens de nosso sistema nervoso. São avulsas, freelancers que trabalham em parceria com a república de células que é nosso corpo. O resultado final é o corpo humano como o conhecemos, de modo que não somos uma unidade orgânica. Não somos um paramécio unicelular. Somos um simbionte. Sim, o resultado duma fusão de células e bactérias. E, acredite, temos mais bactérias que células em nosso corpo.

Duvida? Vamos aos números. Estima-se que o corpo humano seja formado por cerca de 10 trilhões de células. Só o número de bactérias em nosso intestino chega a 100 trilhões! Mas como "cabe" tanta bactéria? Obviamente elas são menores que as células. 

Uma célula é um corpo cheio de pequenas estruturas, como uma grande máquina, um tanque de guerra. Uma bactéria é mais simples, seria como um soldado comparado ao tanque. Mas estes 100 trilhões de bactérias podem pesar até quatro quilos. Não é uma bola de micróbios de quatro quilos em nosso corpo, claro. Estão espalhadas, misturadas, vivendo em harmonia e cooperação com nossas células.

Só em nosso intestino grosso já foi estimada a presença de pelo menos 500 espécies de bactérias. O mais interessante é que nosso sistema imunológico reconhece estes micróbios como amigos e não os ataca. De alguma forma nosso "corpo" sabe que elas fazem parte do sistema todo que é o verdadeiro corpo.

Estas bactérias amigas vêm do meio ambiente. Ao nascer já recebemos muitas delas no primeiro fôlego. Sim, o bebê ao respirar pela primeira vez "engole" as bactérias do ar e estas logo começam a assumir suas posições no sistema. O canal vaginal por onde passa o recém-nascido também se encarrega de "infectá-lo" com micróbios e até mesmo o leite materno envia para a criança tanto anticorpos quanto bactérias probióticas. 

Sendo assim, o corpo humano ao nascer é incompleto e só se completa quando é batizado no mundo. Saindo do isolamento do ventre, o corpo entra no ambiente externo e é invadido pela vida em abundância que há no ar, na água, no solo. E se forma o ser simbiótico que somos.

E estamos falando apenas em corpo. Não fosse o zelo por não alongar este texto, poderia falar mais sobre a mente. Pois a mente, a personalidade, está longe de ser uniforme. Existem tantas pessoas vivendo em nossa mente que o resultado final, aquilo que chamamos de personalidade, não é um indivíduo, mas uma multidão que vive em relativa harmonia, uma república psicológica.

As várias pessoas se formam ao longo da vida. Existe o bebê, a criança, o adulto, o velho, a pessoa que desenvolvemos para as relações sociais, outra para a vida privada, as pessoas do subconsciente, que atuam em nossos sonhos e são de tal forma diferentes das pessoas conscientes que nos admiramos de ter sonhado certas coisas tão contrárias àquilo que, em estado consciente, desejamos ou aprovamos.

É quando a harmonia destas pessoas entra em crise que surgem os problemas. Traumas e até mesmo métodos sistemáticos de tortura podem causar a divisão, fragmentando estas pessoas, estimulando a formação de novas. Um ator, de forma consciente ou intuitiva, consegue criar pessoas para fins específicos. Enfim, a mente é uma nação, um mundo criador de personas que geralmente vivem em simbiose.

No corpo ou na alma, cada indivíduo é uma multidão.

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