Qaligrafia
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O mundo mental

Left-right brain

Um dia você acorda motivado. Outro dia, desanimado. Este é o problema dos sentimentos, tão inconstantes, tão imprevisíveis. Não é algo que se possa dominar. Diferente da razão. Esta a gente ativa quando quer, ou direciona. 

Se tenho diante de mim um cálculo, posso imediatamente usar a razão para calcular. Claro que a razão também é aleatória. Quando dizem "Pense em algo", nós nem sempre escolhemos conscientemente o em que pensar. O algo vem à mente às vezes de forma randômica. 

A não ser que a razão receba uma direção. Se me dizem "Pense numa porta", levo minha razão a buscar uma imagem mental de porta. A imagem está num depósito caótico na memória, e há várias delas, mas pelo menos a razão se deu ao trabalho consciente de buscar uma.

No sonho a razão é mera coadjuvante. O subconsciente reina e cria tudo. É a imaginação em todo seu potencial. A razão só ocasionalmente dá o ar da graça, como quando estamos sonhando e nos perguntamos se estamos sonhando, então a razão começa a investigar e acordamos, justamente porque é a razão que reina enquanto estamos acordados. É o seu habitat.

A razão não é uma consciência. Não é um ser. Mesmo alguém totalmente desprovido de razão continua sendo um ser. Mesmo dormindo e sob total controle do subconsciente. A razão é uma ferramenta. É o trabalhador braçal da mente, o operário, o empregado. É com ela que conseguimos fazer as coisas cotidianas que precisamos para viver. Trabalhar, comprar comida, cuidar da saúde, resolver problemas.

Daí, talvez, ser ela supervalorizada. Porque é ela quem nos permite buscar a satisfação de nossas necessidades. Amar a razão é como amar a colher que leva a comida à boca. E como ela é serva, a amamos porque pode ser dominada, usada à vontade. A razão está à mercê da vontade.

A imaginação, a intuição, a paixão, enfim, toda esta vida interior que faz parte do mundo submarino da mente, é que é a força mais incontrolável em nós. Elas não são instrumentos nem servos de nossa vontade. Pelo contrário, parece que elas têm vontade própria, e muitas vezes vontades conflitantes. Não é à toa que às vezes, movida por paixões, uma pessoa se vê desejando duas coisas antagônicas, resultando na indecisão.

Quanto à emoção, vista como um par oposto da razão, como positivo e negativo, não passa também de mais uma ferramenta. Mas a emoção é instável e tão volúvel que pode ser manipulada por quaisquer influências. 

Um ator, precisando sentir tristeza ou alegria em uma cena, consegue muitas vezes direcionar suas emoções por meio da vontade. Ele recorre primeiro à razão para buscar uma força, um vento que sopre e mova a emoção na direção desejada. 

Uma pessoa pode facilmente manipular as emoções de outra. Para deixá-la com raiva, basta provocar de forma adequada, atingindo o ponto fraco, aquilo que geralmente produz irritação. Para fazê-la rir, pode contar boas piadas. Para despertar a lágrima, pode contar uma história triste. 

E mesmo o ambiente, o clima, os hormônios, a saúde ou doença, o cansaço e a fome ou a saciedade, tudo isto pode manipular as emoções. O hipotireoidismo costuma provocar sensações inexplicáveis de tristeza, tristeza sem um motivo. O transtorno bipolar pode trazer momentos súbitos de euforia. Drogas podem provocar alegria, relaxamento, ira ou depressão. E isto varia conforme a predisposição orgânica de cada um, daí, por exemplo, haver pessoas que, embriagadas, podem se tornar choronas ou briguentas ou ficar muito alegres.

E assim é nosso mundo mental, como um oceano misterioso. Sob a fina superfície deste oceano sopra a brisa da vontade. E navegam nesta superfície os barcos da razão e da emoção. A vontade consegue guiá-las na calmaria e a vontade forte pode ser como um ciclone a impelir com força a razão e a emoção. 

Mas o oceano é mais profundo. Vontade, razão e emoção ocupam apenas a superfície tênue deste mundo. O oceano, por sua vez, é uma imensidão desconhecida, volumosa, densa e escura nas regiões abissais onde não penetra a luz da consciência. O oceano tem uma força monstruosa e, quando se agita, destroça os barcos e é impossível enfrentá-lo.

O oceano é composto por toda a massa disforme do nosso subconsciente. A intuição e a imaginação fazem parte disto. Quando dormimos ou perdemos o controle da consciência, mergulhamos nesta profundeza e a correnteza subaquática nos leva. Nos leva para o sonho, para o insight, para a epifania, para experiências mentais não possíveis enquanto estamos despertos. 

Estas experiências mentais não ocorrem apenas no sonho, mas em toda ocasião de saída da consciência, como a alucinação, o estado de coma ou as experiências religiosas de êxtase ou transe durante meditação etc. 

Mesmo quando estamos acordados o subconsciente continua de alguma forma ativo, ou melhor, passivo, alimentando-se, recebendo conteúdo. É assim que funciona a mensagem subliminar. Ela envia informações que serão absorvidas pelo subconsciente. 

É assim que funciona a sugestão. Pais que vivem dizendo para a criança "Você não faz nada certo", estão alimentando seu subconsciente com estas ideias de modo que esta criança pode seguir por toda a vida com a ideia fixa de que é uma pessoa desastrada sem se dar conta que isto foi algo implantado em si.

Interessante é que o abismo do subconsciente não é, como se costuma julgar, uma besta irracional, um ogro que só tem força e sem inteligência. Pelo contrário. O subconsciente tem um impressionante poder de acesso ao acervo intelectual da nossa mente. Em sonhos podemos lembrar de coisas que vimos há décadas e que, enquanto conscientes, jamais conseguimos recordar. Daí o uso de hipnose para despertar lembranças esquecidas.

Foi sonhando que o químico Kekulé visualizou a molécula do benzeno, que ele havia buscado em vão durante anos de pesquisa. Foi no relaxamento da banheira que Arquimedes fez a descoberta que o levou a correr nu pelas ruas gritando Eureka!

E costumamos pensar que vivemos enquanto estamos acordados e, quando vamos dormir, é um intervalo da vida. Será que não é o contrário? No sono e no sonho a maior parte de nossa mente está viva, a parte mais poderosa. Quando acordamos, o subconsciente adormece, mas permanece em uma atividade silenciosa, nos guiando secretamente. E aqui estou eu escrevendo, usando a razão, neste intervalo da vida que se chama estar acordado.

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