Qaligrafia
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We're Not Gonna Take It e o espírito rebelde do rock

Twisted Sister

Em uma leitura superficial, a música We're Not Gonna Take It (1984), da banda Twisted Sister, é sobre o tema clichê da revolta do adolescente contra os pais. O próprio clipe conta esta história, mostrando um garoto que não aguenta mais as broncas do pai e chuta o balde.

Todavia, existe algo nesta música que representa o puro espírito do rock: rebeldia. Não a mera rebeldia contra os pais. É óbvio que muitas crianças adoravam esta música e muitos pais a detestavam por este motivo. "Eles estão pervertendo nossas crianças, ensinando a desobediência!", alguma velhinha poderia dizer. Se passarmos desta camada, encontramos a verdadeira mensagem: não suportamos mais desmandos e abusos de autoridade. 

We're Not Gonna Take It é um hino sobre todas as revoluções, toda reação  do povo aos tiranos. Dentre todos os gêneros musicais, o rock foi o que melhor encarnou este espírito, principalmente na fase punk. Não à toa o Diabo é o pai do rock, pois, na simbologia antropológica, o Diabo representa a rebelião contra um poder estabelecido.

Segue a letra:

Guess what, I've got a fever
And the only prescription is more cowbell
Couldn't leave here without this one now could we?

We're not gonna take it
Oh no, we ain't gonna take it
We're not gonna take it anymore.

We've got the right to choose it
There ain't no way we'll lose it
This is our life, this is our song.

We'll fight the powers that be just
Don't pick our destiny 'cause
You don't know us, you don't belong.

We're not gonna take it
Oh no, we ain't gonna take it
We're not gonna take it anymore.

Oh, you're so condescending
Your gall is never ending
We don't want nothin', not a thing from you.

Your life is trite and jaded
Boring and confiscated
If that's your best, your best won't do.

We're right, yeah
We're free, yeah
We'll fight, yeah
You'll see.

We're not gonna take it
No, we ain't gonna take it
We're not gonna take it anymore.

Os peidos do Willem Dafoe em The Lighthouse

The Lighthouse (2019)

The Lighthouse (2019)

Robert Eggers é um diretor jovem e com uma pequena filmografia, mas já tem se destacado como uma revelação no gênero de terror. Em 2015 ele lançou o premiado The VVitch e em 2019 foi a vez de The Lighthouse, que tem uma estética bem diferentona.

De cara o filme chama atenção pela tela quadrada e a imagem em preto e branco, dando a impressão de que é um filme bem antigo. A tela quadrada, aliás, ajuda a transmitir uma sensação de confinamento. Os dois protagonistas estão presos neste espaço apertado de uma tela quadrada.

Seguindo na contramão dos blockbusters e mesmo dos filmes de terror em geral, praticamente não existem efeitos especiais de CGI, o cenário é simples, na maioria das vezes se resumindo ao interior de um farol, e só tem dois atores contracenando ao longo de toda a história (e uma atriz - Valeriia Karaman - que aparece poucas vezes representando uma sereia nas alucinações do protagonista).

The Lighthouse (2019)
E a gaivota disse: "Nunca mais!"

Dois homens trabalham na manutenção de um farol, vivendo isolados no meio do oceano, um ambiente perfeito para o desenvolvimento de nóias e surtos mentais, como de fato acontece. O personagem do Willem Dafoe, Thomas Wake, é um velho chato e nojento que parece estar sempre irritando o novato e casmurro Ephraim Winslow, interpretado pelo Robert Pattinson. 

O relacionamento vai se desgastando à medida em que Winslow vai sendo tomado pela loucura, até terminar em tragédia. O final trágico é previsível. Dois caras estranhos que não se dão bem vivendo juntos neste cárcere... isto não pode terminar bem. 

O que chama atenção é a própria narrativa com uma estética estranha e grotesca. O fato da imagem estar em preto em branco dá uma amenizada no gore, pois tem cenas bem chocantes, como o Winslow batendo repetidas vezes em uma gaivota até deixar o bicho todo destroçado. Uma cena de violência animal intensa e rara no cinema ultimamente.

Robert Pattinson; The Lighthouse (2019)

Tem também a "nojeira humana". Coisas triviais como pigarro, peidos, mijo, vômito e até jorros de esperma. Estas coisas tornam a existência dos personagens mais realista e também mais desconfortável. Os constantes peidos do velho irritam Winslow como um marido desleixado irrita a pobre esposa que tem que suportar estes maus modos todos os dias.

Entre os elementos simbólicos da trama, temos as referências a figuras mitológicas famosas no folclore de marinheiros, como a sereia, Poseidon e Proteu, bem como uma espécie de relação edipiana entre o rapaz e o velho. 

Certos momentos dão a impressão que há um sentimento homoerótico reprimido, ao mesmo tempo em que há uma clássica disputa entre o jovem que odeia a autoridade da figura paterna. O próprio farol é claramente um símbolo fálico, ainda mais com o velho Wake todo dia se masturbando no topo da torre.

Como é revelado que Winslow cometeu um assassinato no passado, o farol e o velho também podem representar a sua consciência culpada, bem ao estilo Dostoievski. Como no filme The Machinist¹, o protagonista vive atormentado pela culpa, tentando se esconder. Em uma das alucinações, Wake o segura pelo braço e o encara com olhos que soltam um feixe de luz como o farol. É o olhar perscrutador e acusador da consciência a julgá-lo. 

Robert Pattinson; The Lighthouse (2019)

Existem umas curiosas referências visuais no longa. Na imagem abaixo, por exemplo, vemos semelhanças com as obras: Hypnosis (Sascha Schneider, 1904); Two Sailors (Albert Edelfelt, 1896); Lighthouse Hill (Edward Hopper, 1927) e Portrait of Joseph Roulin (Vincent van Gogh, 1888).

The Lightouse references

Cuidado, cenas fortes do Robert Pattinson destruindo uma gaivota:


Notas:

Most Dangerous Game, uma série genérica de caçada humana

Most Dangerous Game (2020)

O fascínio pela caçada humana existe desde sempre. As lutas de gladiadores na Roma antiga são um bom exemplo de quão glamourizada a caçada humana se tornou, afinal construíram até o belo e imponente Coliseu só por causa deste show de carnificina.

Muitas das antigas formas brutais de jogos mortais foram amenizadas com o tempo, se tornando esportes de luta ou meros rituais simbólicos. Na ficção, porém, a brutalidade pôde ser mantida, para deleite do público.

O cinema já está cheio destes filmes em que pessoas são caçadas em um jogo macabro. A franquia Jogos Vorazes (2012-2015) fez tanto sucesso que logo surgiram outras séries do gênero, como Divergente (2014-2016) e Maze Runner (2014-2018). 

Um grande ícone da ficção de jogo mortal é o romance Battle Royale, de 1999, que mostra uma bizarra sociedade em que os alunos do ensino médio são forçados a lutar entre si até a morte, por ordens do governo totalitário.

O livro foi adaptado para mangá, depois filmes e hoje em dia o termo battle royale já é bem conhecido no mundo dos games para definir um tipo de jogo eletrônico em que os jogadores caçam uns aos outros, como PUBG e Fortnite.

Enfim, não há nada de novo neste assunto. Em 2020, o canal Quibi produziu uma série de 16 episódios curtinhos, estrelada pelo tarantinesco Christoph Waltz, a bela Sarah Gadon e o irmão do Thor, Liam Hemsworth. Em 2021, a Amazon relançou a série, porém com todos os episódios juntos, como um filme.

O título original deste filme é Most Dangerous Game, mas os tradutores brasileiros resolveram tirar da gaveta de títulos uma versão clichê que já foi usada antes: Jogo Perigoso. Antes deste, já teve outro filme traduzido como Jogo Perigoso, o Gerald's Game, adaptação de um livro de Stephen King.

The Most Dangerous Game (1932)

The Most Dangerous Game (1932)

Esse filme também teve uma inspiração literária e bem mais antiga, baseado no conto The Most Dangerous Game, de Richard Connell, publicado em 1924. Inclusive este conto rendeu adaptações bem nos primórdios do cinema. Não cheguei a assistir nenhuma, mas suspeito que devem ser mais interessantes que a versão de 2020.

O conceito lembra também o Hostel, do Tarantino e seu pupilo Eli Roth, em que ricaços pagam pra torturar pessoas, só que no Hostel estes ricos são mais covardes e recebem suas vítimas já acorrentadas. Já em Jogo Perigoso os caras ricos são os próprios caçadores e devem ser talentosos, atléticos e corajosos para correr atrás da vítima.

Ok, ok, a premissa é divertida, afinal todo mundo curte a ideia de uma caçada humana (na ficção, obviamente). Só que o formato da caçada, feita em plena cidade, torna a coisa bem improvável e inverossímil. 

Ora, se algo do tipo acontecesse no mundo real, qualquer pessoa com um mínimo de malandragem conseguiria "embromar" os caçadores. Parece que não havia nenhuma regra sobre ficar sempre no mesmo local ou interagir com as pessoas. 

Ele podia ficar em uma praça, um ambiente aberto, com seguranças por perto. Podia ficar enrolando os caras. Sentava em um banco. Se alguém se aproximasse, levantava, dava uma voltinha correndo, parava num vendedor de sorvete, puxava papo. Enfim, em ambiente público há muitas maneiras de ficar driblando os caras.

Sabendo que os caçadores tentariam matá-lo de forma discreta, era óbvio que não tentariam chamar atenção em ambiente público. Em vez de se manter em cenário aberto, o protagonista entrou em locais fechados, se trancou em um banheiro, entrou em um confessionário de igreja. Foi o típico personagem burro de filmes de terror.

Além de burro, Dodge é um banana. O cara é um atleta, é ágil e forte, mesmo doente, mas quando fica cara a cara com os caçadores não tem a mínima iniciativa de meter um soco na cara. Na cena do banheiro, ele chuta a porta e consegue até derrubar o ricaço, o que seria a oportunidade pra dar uma bela surra até deixá-lo inconsciente. 

Mas ok, há uma justificativa pra isso, que é o fato de Dodge ser um cara muito certinho e bonzinho. Ao longo da caçada ele vai se transformando até finalmente se tornar capaz de matar. Anyway, é um filme de ação ok, nota 6 (só não é 5 porque tem o Christoph Waltz como vilão).

The Wandering Earth, quando a Terra virou literalmente uma espaçonave

The Wandering Earth (2019)

Por acaso vi um comentário nas internets sobre um filme em que colocavam propulsores na Terra para literalmente transformá-la em uma nave espacial: The Wandering Earth (2019). Minha reação imediata foi: "Say no more. Quero ver esse filme!"

A princípio parece uma ideia bem boba, mas convenhamos que é uma ótima premissa pra um filme sci-fi. Fui logo no Google procurar por esse tal Terra à Deriva e eis que tinha na Netflix. Assisti de uma só vez.

The Wandering Earth (2019)

The Wandering Earth (2019)

A história é a seguinte: em 2061 o Sol começou estranhamente a se expandir e os cientistas estimaram que em 100 anos ele destruiria a Terra. O projeto de salvação do planeta e da humanidade consistia em construir 10 mil enormes propulsores em toda a superfície, de modo que eles empurrariam a Terra numa viagem para fora do sistema solar e, após 2500 anos, para próximo de outra estrela, estalebecendo ali sua nova moradia.

Pois é, é uma ideia ousadíssima e com milhares de chances de dar errado. A primeira coisa que dá errado é que, ao passar por Júpiter, a Terra é atraída com uma força gravitacional que superou a dos propulsores. Júpiter, o devorador de cometas e meteoros, agora devoraria a Terra.

The Wandering Earth (2019)

O filme não se dá ao trabalho de ficar super-explicando as consequências ambientais de toda essa empreitada, o que é bom. Estas consequências ficam visíveis, de modo que sao auto-explicativas. Vemos, por exemplo, terremotos, o esfriamento do planeta que entra em uma nova era do gelo, já que está se afastando do Sol,  as cidades aparecem cobertas por imensas montanhas de gelo, o que podemos deduzir que foram primeiro inundadas por gigantescos tsunamis (provocados pelo fato dos propulsores pararem a rotação da Terra - isto eles explicam em uma cena) que depois congelaram. O fenômeno mais impressionante, porém, é quando a atmosfera da Terra começa a ser sugada por Júpiter.

Eis que alguém tem uma ideia ousada (mais ousada que a ideia dos propulsores): aumentar o alcance dos jatos propulsores, transformando-os em feixes de modo a alcançar Júpiter e explodir o gigante gasoso! A onda de choque gerada na explosão empurraria a Terra para longe, libertando-a da prisão gravitacional.

The Wandering Earth (2019)

The Wandering Earth (2019)

Confesso que eu não esperava muito do filme e já estava satisfeito com a ideia da Terra viajando pelo espaço. Desliguei minha suspensão de descrença e fui curtindo a viagem sem grandes expectativas. Aí eis que o sujeito me vem com essa de explodir Júpiter e meu interesse pelo filme redobrou. Essa eu quero ver.

Claro que a solução não viria tão fácil. O feixe não conseguiu alcançar Júpiter. Aí veio outra opção. Acontece que, além dos propulsores, também foi construída uma enorme estação espacial que seguiria adiante da Terra e tinha o propósito de ser um plano B, carregando milhares de embriões e o código genético das espécies da Terra, como uma arca de Noé cósmica.

O ideal era salvar a Terra, que então continha 3,5 bilhões de pessoas (a outra metade morreu durante os tsunamis), mas, se algo desse errado, a estação espacial seguiria sozinha. Todavia, um dos pilotos da estação resolve tomar uma medida extrema para salvar a Terra: levar a estação até próximo de Júpiter e explodí-la. A quantidade imensa de combustível da nave geraria uma explosão potente o bastante para "acender" a atmosfera de hidrogênio jupiteriana.

The Wandering Earth (2019)
HAL 9000, digo, MOSS.

Temos um breve momento claramente inspirado em 2001, quando a IA da nave, MOSS, se opõe ao plano e tenta impedir o humano, mas ele taca fogo na máquina e executa o plano, destruindo a nave e se sacrificando para salvar a humanidade.

Aí acontece a coisa mais pirada do filme: Júpiter explode e sua onda de choque bate na Terra, empurrando-a para longe. A humanidade está salva e o planeta segue em sua viagem milenar pelo espaço.

Convenhamos que, em vez de construir 10 mil propulsores para turbinar a Terra numa louca viagem cheia de imprevistos, faria mais sentido construir milhares de naves e levar a humanidade na direção de algum planeta habitável. A entrada da Terra em outro sistema solar, aliás, seria bem problemática, afetaria a harmonia gravitacional deste novo sistema, poderia gerar uma grande bagunça. 

Além disso, sem rotação a Terra enfraqueceria seu campo magnético, sua atmosfera se esvairia no espaço. Após a viagem de dois mil anos, ela chegaria no destino na forma de uma rocha infértil. Mas isto não importa. Esta é uma história de sci-fi pesado e é tão mais divertida quanto mais a gente se deixa levar pelo absurdo. 

Bom notar que o filme é baseado em um conto homônimo de Cixin Liu (publicado em 2000), um brilhante autor de sci-fi contemporâneo que está cada vez mais ganhando notoriedade. Já comentei anteriormente sobre este autor em outro post¹. 

A continuação, The Wandering Earth 2, está prevista para 2023. Essa eu quero ver.

The Wandering Earth (2019)

O livro

Muitas das questões que levantamos ao ver o filme são bem respondidas no livro. O livro vai descrevendo em detalhes cada etapa deste longo processo de viagem espacial. Primeiro foram instalados os propulsores, alguns maiores que o monte Everest. Antes de tudo a função dos propulsores era parar a rotação da Terra, afinal, com a Terra girando, a propulsão não a levaria a lugar algum. 

Só esta primeira etapa levou 40 anos. Foi a chamada Braking Era (A Era do Freio - ou Travamento). O filme não tem tempo pra mostrar nada disso, então pode dar a impressão que a quebra da rotação foi brusca. Assim como no filme, é explicado que os propulsores são perpetuamente alimentados com rochas levadas por caminhões, usando o processo de fusão nuclear para gerar energia.

Também é explicado que a Lua recebeu propulsores e foi empurrada para alonge da Terra, evitando o risco de uma colisão. Além disso, a viagem não foi feita em linha reta, que é a impressão visual que o filme passa. A Terra continuou orbitando o sistema solar por um tempo, dando voltas cada vez maiores, até finalmente se libertar

Um detalhe curioso é que o autor menciona que, naquele futuro em que acontece a história, a engenharia genética foi usada para aumentar a inteligência das pessoas, produzindo verdadeiros gênios, de modo que seriam capazes de desenvolver a tecnologia necessária para a grande empreitada.

Falei acima sobre a opção de viajarem em naves, em vez de levar a própria Terra. Pois bem, o livro também responde isto. Há na humanidade esta polarização quanto ao método de fuga. Os que pensam em deixar a Terra e fugir em naves são chamados de Leavers, os que querem levar a Terra junto são chamados de Takers. Pelo visto, eu seria um Leaver.

O argumento Taker é explicado para justificar por que a humanidade optou por esta estratégia: uma vez que a viagem levaria milhares de anos, seria impossível manter um ecossistema sustentável dentro das naves por tanto tempo. 

O maior problema, porém, é que a estrela mais próxima, Proxima Centauri, não tem planetas adequados para a habitação humana e, caso fossem em naves, teriam que ir muito mais longe, viajando por centenas de milhares de anos até encontrar um sistema com um planeta parecido com a Terra. É, esse argumento aí me pegou.

O jeito então era levar a montanha até Maomé. Ou: já que Proxima Centauri não tem uma Terra, levamos a Terra até Proxima Centauri.

"There are no suitable planets in orbit around Proxima Centauri. The nearest fixed star with inhabitable planets is eight hundred and fifty light-years away. At present, the fastest spaceship we can build can only travel at 0.5 per cent of the speed of light, which means it would take us one hundred and seventy thousand years to get there. A spaceship-sized ecosystem would not last for even one-tenth of the voyage. Children, only an ecosystem the size of Earth, with its unstoppable ecological cycle, could sustain us indefinitely!"

Uma grande mudança cultural que o livro enfatiza sempre é como a humanidade passou a temer o Sol em vez de admirá-lo. Agora a simples aparição do Sol no horizonte era uma cena aterrorizante para as pessoas.

"In fact, we only began to fear the Sun three or four centuries ago. Before that, humans were not afraid of the Sun. It was just the opposite. In their eyes, the Sun was noble and majestic."

Sunshine (2007)

É interessante comparar esta abordagem de The Wandering Earth com o filme Sunshine (2007). Em Sunshine, o Sol, ao contrário, está esfriando, de modo que a Terra entrou em uma era glacial. Uma nave carregada de bombas nucleares é enviada ao Sol para "acendê-lo" de novo. Neste filme, o astro é sempre mostrado como algo belo e majestoso, que causa tanto encantamento que há até uma memorável cena em que um dos astronautas fica hipnotizado olhando o Sol enquanto é pulverizado pelo vento solar. 

O psicólogo da equipe, também fascinado, tenta se comunicar com o astronauta em seus últimos momentos e pergunta: "Kaneda, what do you see?". É como se ele quisesse saber de alguém que está transcendendo o que ele está vendo no além. Tal é a noção mística e admirada que as pessoas têm pelo Sol em Sunshine. The Wandering Earth segue no caminho oposto: o Sol se tornou um monstro do qual a humanidade precisa urgentemente fugir.

Notas:

Blade Runner, resumão dos filmes e livros

Blade Runner (1985)

Blade Runner é uma das franquias mais influentes na cultura nerd sci-fi. Muitas histórias, filmes, livros e quadrinhos se inspiraram nesta obra. O primeiro filme é um dos precursores do cyberpunk, misturado com o clássico noir policial. Até hoje, muitos de seus elementos futuristas continuam à frente do nosso tempo, especialmente os replicantes e os carros voadores.

O livro

O livro de Philip K. Dick (Do Androids Dream of Electric Sheep?), lançado em 1968, enfatiza alguns elementos que nos filmes receberiam pouca ou nenhuma atenção. É bastante abordado o aparelho que manipula as emoções, o supressor e estimulador talâmico. É a versão de Blade Runner para o Soma de Admirável Mundo Novo. Em ambos os casos, trata-se de um meio para tratar as emoções humanas de forma automatizada, ligando ou desligando sentimentos conforme convém.

As pessoas literalmente tratam os sentimentos como um software e se programam para seu dia. Curiosamente, a esposa de Deckard gosta de programar o sentimento de depressão. Ela praticamente ficou viciada em "curtir uma bad".

No livro, Deckard é casado e parece encarar seu trabalho de caçador como um ganha-pão entediante. Ele ainda tenta poupar uma graninha pra comprar um animal de estimação (uma cabra), pois bichos são um sonho de consumo neste futuro em que o ecossistema colapsou. Quem tem um animal gosta de ostentar para os vizinhos. Convenhamos que é um detalhe que não combina muito com uma história de ação e sci-fi, de modo que o filme deixa isso de lado. 

Blade Runner (1985)

Todavia, existe a cena em que Deckard entra no escritório da Tyrell e vê uma coruja, perguntando se é verdadeira. Ali fica estabelecido que no mundo de Blade Runner animais são raros. Algo parecido acontece em Blade Runner 2049, quando K encontra Deckard e pergunta se o cachorro que está com ele é "real".

O livro faz um big deal com o negocio dos pets. É uma saga paralela à historia principal. De um lado, a caçada aos androides e de outro a busca por um pet de verdade. O "catalogo Sidney", contendo a lista de animais à venda, é mencionado várias vezes. O autor deu muita importância a essa coisa dos animais, já os filmes cortam essa gordura da história, apenas fazendo referencias, como a coruja e o cachorro.

Sobre a profissão de caçador de androides (eles usam o termo "aposentar", quando se referem a matar um androide), é mencionada uma figura lendária, o caçador Franklin Powers, que aposentou sete androides. Imagino que isto daria um spin-off bem filme de ação. O caçador mais badass do universo Blade Runner. 

A TV é descrita como um aparelho capaz de transmitir sensações: "sentiu a mesma velha dor, a irregular aspereza sob seus pés e, mais uma vez, o cheiro da névoa amarga do céu – não o céu da Terra, mas de algum lugar estranho, distante, e ainda, por causa da caixa de empatia, instantaneamente presente".

O mundo é descrito como radioativo, tomado por uma estranha poeira. Também ocorrem chuvas radioativas, boa parte dos animais foram extintos, muitos humanos migraram para outro planeta. O mundo ficou assim após a apocalíptica Guerra Mundial Terminus. Replicantes foram criados para trabalhar como escravos nas colônias. Entre as colônias, é mencionada a Nova América, em Marte.

"O ar da manhã – transbordando partículas radioativas acinzentadas por todos os lados, encobrindo o sol – arrotava ao redor dele, infestando seu nariz; involuntariamente, farejou a contaminação da morte".

"Mil pensamentos vieram à sua mente, pensamentos sobre a guerra, sobre os dias em que as corujas caíram do céu; lembrou-se de como, em sua infância, descobria-se que uma espécie após a outra era declarada extinta, e como isso era publicado todo dia nos jornais".

A Terra, após a guerra e a migração para as colônias, se tornou um lugar desértico. Poucas pessoas, pouco movimento, um "mundo-silêncio". 

Então surgiu a religião do mercerismo, que tem algo de alienígena. É cultivada por meio do dispositivo chamado "caixa de empatia", pelo qual as pessoas têm uma experiência transcendente em que se sentem mais ligadas umas às outras. Por meio do aparelho também é possível compartilhar suas emoções com as outras pessoas conectadas. É uma espécie de internet dos sentimentos.

"Senti todos os outros, em todo o mundo, todos que haviam feito a fusão ao mesmo tempo".

Este aspecto religioso do livro é algo típico de autores formados no ambiente cultural dos anos 60, com toda aquela coisa de psicodelia e Nova Era. O filme deixou isto de lado, mesmo porque nos anos 80 a vibe já era outra.

O autor enfatiza o aspecto poeirento e entulhado do mundo, um mundo cheio de lixo e sucata, como no desenho Wall-E.

"A coleta de resíduos e remoção de entulho tinha se tornado, desde a guerra, uma das indústrias mais importantes da Terra... O planeta inteiro começava a se desfazer em lixo, e mantê-lo habitável para a população remanescente exigia que o lixo fosse removido de vez em quando".

Então ele usa constantemente o termo "bagulho" (em inglês: kipple, um termo cunhado pelo autor), o que enfatiza a visão de mundo como um grande entulho em processo de entropia.

"O universo inteiro está se movendo na direção de um estado final de total e absoluta bagulhificação (kippleization)".

O primeiro Blade Runner não mostra muito esse aspecto poeirento e entulhado do mundo. Esteticamente, o elemento mais marcante é a chuva, que faz parte da ambientação noir do cenário. Já Blade Runner 2049 investe bastante em mostrar cenários cheios de poeira. K visita diversos locais em que uma forte névoa de poeira domina todo o ambiente. Ele encontra apenas uma árvore e já morta e ressecada. Quando sai dos limites da metrópole, passa por enormes lixões frequentados por imensos "caminhões de lixo" voadores. Este é o mundo que Dick imaginou em seu livro.

Blade Runner (1985)
O mundo de Blade Runner é cheio de enormes lixões.

O enigma de Deckard

A grande questão envolvendo os filmes é o fato de Deckard ser ou não um replicante. Por décadas a nerdaiada discutiu a respeito e elaborou suas teorias. A eterna dúvida que paira sobre se Deckard é ou não um replicante é uma questão que nos concerne bastante, pois estamos cada vez mais assombrados por este tipo de dúvida. 

A partir do momento em que Deckard percebe que um replicante pode ter memórias artificialmente implantadas, no momento em que se dá conta de que a tecnologia é capaz de tal feito, é inevitável que ele questione a realidade das próprias memórias ou, se não ele, o público que assiste o filme.

Agora que realidades simuladas estão cada vez mais presentes na nossa vida, nos questionamos se a nossa vida é uma simulação. Quando um dia o implante ou edição das memórias for uma tecnologia acessível, a incerteza quanto ao que é real ou fantasia se tornará permanente.

A humanidade viveu ciclos de realismo e fantasia. Em tempos mais supersticiosos, tínhamos dificuldade em distinguir o concreto do abstrato, víamos criaturas mágicas por toda parte. Na verdade, hoje não podemos afirmar com certeza que os seres fantásticos que nossos antepassados viam eram mera imaginação. Cientificamente falando, este é um fenômeno que simplesmente não somos capazes de estudar, porque o objeto de estudo já não é acessível, de modo que cabe apenas a especulação.

Algumas das histórias míticas podiam ter algum grau de veridicidade. Nem tudo era real, nem tudo era imaginário. O fato é que, com o avanço das eras, esta disposição para enxergar um mundo surreal foi se tornando cada vez mais escassa, principalmente a partir da era moderna, com o advento das máquinas.

Ironicamente, as máquinas é que estão agora nos despertando para uma nova era do imaginário, por meio da realidade virtual e aumentada. O metaverso desenvolverá um mundo que mescla as realidades. Ora, uma vez que será comum enxergarmos pelos óculos VR objetos virtuais inseridos no cenário real, nossa mente pode entender que está liberado criar visões e algumas pessoas vão enxergar objetos imaginários mesmo sem os óculos. Uma nova era de fantasia está vindo.

Blade Runner (1985)
Uma cena típica do primeiro filme e que consagrou a estética noir-futurista de filmes do gênero.

O bladerunnerverso

Este mundo noir-cyberpunk de Blade Runner (mais noir do que cyberpunk, pois o cyberpunk propriamente dito só viria na década de 80 com o Neuromancer, do Philip K. Dick) possui um ritmo bem lento de desenvolvimento em termos de adaptações audiovisuais. O primeiro filme só viria 17 anos após o livro, em 1985. Depois disto, levariam mais 32 anos até que Blade Runner 2049 viesse para expandir o universo.

Um remake literário baseado em Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968) viria com o nome de Blade Runner 1: A Story of the Future (1982), que nada mais é do que uma adaptação novelizada do próprio filme, escrita por Les Martin, com apenas 90 páginas. 

Depois viria Blade Runner 2: The Edge of Human (1995), mas escrito por outro autor, K. W. Jeter., baseando-se tanto no livro quanto no filme. Por fim, Jeter também lançou Blade Runner 3: Replicant Night (1996) e Blade Runner 4: Eye and Talon (2000), encerrando a tetralogia literária. 

Ocasionalmente, algumas editoras também publicam o livro original de Dick com o título Blade Runner, a fim de facilitar a divulgação da obra, pois convenhamos que Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? não é um título de muito apelo comercial.

Sean Young; Blade Runner (1985)
Rachael, a bela e misteriosa dama de olhar melancólico.

Os filmes

No gênero noir é comum o detetive ou policial se apaixonar por uma mulher misteriosa de olhar melancólico. No caso de Blade Runner, obviamente esta personagem é a Rachael.

A cena mais polêmica é a do beijo entre Deckard e Rachael. Não é uma cena fácil de analisar. Rachael visita Deckard, ela já sabe que é uma replicante, mas ele vai deixar ela fugir, porque ela salvou a vida dele quando ele caçava outra replicante. Já há uma história entre eles. 

Harrison Ford; Blade Runner (1985)

Deckard está cansado e um pouco embriagado, enquanto Rachael vai dando sinais de estar interessada nele. Ele toma iniciativa e tenta beijá-la, mas, confusa, ela se levanta pra ir embora. Aí começa a parte polêmica. 

É sempre importante salientar que "não é não" e que, mesmo que tenha rolado um clima entre duas pessoas, se uma delas desiste no meio do caminho, não pode ser forçada a continuar.

Acontece que o Harrison Ford já tinha este typecast bem estabelecido de cafajeste, ou melhor, de galã com uma forte atitude. A intenção não era ser um personagem abusivo e de fato não era assim que o público o enxergava nos anos 70-80. 

É complicado explicar para novas gerações certos modelos e gostos das gerações anteriores. Sim, o tipo de cara que o Harrisson Ford interpretava era considerado um "partidão" por muitas mulheres naquela época. Era o cara com iniciativa, que compensava a indecisão das mulheres mais inseguras, insistindo, de modo que a moça acabava se abrindo para o relacionamento. A hesitação inicial era apenas um teste.

Olhando desta forma, Deckard (que a esta altura não era o mesmo cara do livro de Philip K. Dick, mas o personagem típico do Harrison Ford) estava certo de seus sentimentos por Rachael, mas percebeu que ela, confusa com toda essa história de ser uma replicante, hesitava, então ele insistiu a fim de fazer ela tomar uma atitude.

Fisicamente, ele não a força em momento algum. Ele diz "agora você me beija... agora você diz isso e aquilo" e logo vemos que Rachael assume uma atitude e dá o consentimento para que comecem a rolar os "amassos" entre os dois. Ele a manipulou psicologicamente ou a ajudou a se decidir? Se ele a tivesse deixado ir embora sem ao menos tentar, ambos teriam se arrependido? 

Enfim, esta cena é complicada porque humanos são complicados (e replicantes, no fim das contas, têm sentimentos humanos). O fato é que Rachael continuou com Deckard após este evento. No final do filme, quando ele volta da última caçada, ela está dormindo na casa dele.

Rutger Hauer; Blade Runner (1985)
O trágico e dramático encontro da criatura com o criador.

O melhor personagem, porém, é o replicante Roy Batty. Falar sobre a sua cena final é chover no molhado (pun intended), pois é provavelmente a cena mais marcante, com a linha de diálogo mais memorável do filme: "All those moments will be lost in time, like… tears in rain".

Roy Batty não era simplesmente um monstro de Frankenstein que não sabia amar e se tornou um frio psicopata. Ele era forte, super inteligente, matou pessoas para fugir e sobreviver, mas não parece que tinha orgulho disso. Batty tinha este ar filosófico. Era conhecedor de muitas coisas, discutiu a genética do próprio corpo com seu criador Tyrell e na certa devia ter conhecimento de ética e questões humanistas e religiosas.

Seu encontro com Tyrell foi uma grande cena, pois é o encontro da criatura com o criador. Tyrell age com tranquilidade, mesmo sabendo que o replicante estava ali como uma ameaça. Ela trata Batty como um filho e o filho, num gesto de vingança mitológica, esmaga o crânio do próprio pai. A expressão no rosto de Batty enquanto faz isto não é nem de prazer nem de fúria, mas de luta interior, de agonia e confusão. O ator Rutger Hauer realmente brilhou neste papel. 

Daryl Hannah; Blade Runner (1985)

A cena mais bizarra foi a morte da Pris, interpretada pela Daryl Hannah. Ela era a replicante mais esteticamente peculiar, pois gostava de maquiagem pesada, tinha um cabelo de rockstar e parecia uma boneca viva. Seu jeito de lutar também chama atenção, cheio de piruetas. Quando Deckart atira nela, ela cai se estrebuchando como uma máquina em pane e solta gritos assustadores.

Rutger Hauer; Blade Runner (1985)
O medo cria a escravidão e vice-versa.

Então acontece o embate final entre Deckard e Batty. A superioridade de Batty é notável e Deckard, mesmo estando armado, tem que fugir dele, que se diverte como se fosse uma brincadeira de gato e rato. Vendo o pavor do policial, o replicante solta uma de suas memoráveis falas: "É uma experiência e tanto viver com medo, não é? É isto que significa ser um escravo".

No fim das contas, Batty só queria dar uma lição, mostrar para o humano (se é que Deckard era humano) como é viver temendo a morte sempre próxima. Ele ainda salva Deckard de cair do edifício e, serenamente, morre diante dele, após recitar seu poema sobre as lágrimas na chuva. O prazo de validade do replicante expirou e ele "desligou".

Na saída do edifício, Deckard encontra Gaff, o personagem que ficou conhecido como o cara dos origamis. Gaff diz que "é uma pena que ela não tenha sobrevivido", uma referência a Rachael, afinal ela também estava na lista de replicantes procurados. Deckard corre pra casa e curiosamente encontra Rachael viva e dormindo tranquilamente, ou seja, Gaff resolveu mentir no relatório pra salvar a pele da Rachael, em consideração ao Deckard.

Blade Runner 2049 (2017)

Blade Runner se passa em 2019. Tyrell, o dono da megaempresa criadora de replicantes é morto por Batty, mas a empresa segue funcionando. Blade Runner 2049 se passa trinta anos depois e começa com um resumo do que aconteceu neste período: os replicantes foram definitivamente proibidos, o que levou a Tyrell à falência. 

São mencionados "modelos antigos Nexus 8 que tinham uma vida útil em aberto", ou seja, diferente dos Nexus 6, do primeiro filme, que só viviam 4 anos, as versões posteriores ganharam a bênção da vida sem limites, talvez porque a empresa chegou à conclusão que os replicantes seriam mais dóceis sem a cruel limitação de 4 anos que os angustiava e levava à rebelião. De toda forma, rebeliões aconteceram mesmo nestes últimos modelos, o que levou ao encerramento do projeto.

Jared Leto; Blade Runner 2049 (2017)
Jaré o dileto.

Em 2020 o ecossistema colapsou de vez e aí entra outra empresa no jogo, liderada por Niander Wallace (Jared Leto), voltada à produção de alimentos sintéticos. Wallace comprou os espólios da Tyrell e reativou a produção de replicantes, porém bem mais obedientes. Os modelos antigos que ainda estavam vivos continuam sendo caçados pelos blade runners.

Na época do lançamento de Blade Runner 2049, foram também lançados alguns curtas animados que expandem a lore da franquia. Foram eles: 2036: Nexus Dawn (2017); 2048: Nowhere do Run (2017) e Blade Runner Black Out 2022 (2017).

Em 2021, a franquia ganhou um anime lançado na Crunchyroll: Blade Runner: Black Lotus.

Blade Runner 2049 traz um upgrade do ambiente tecnológico, afinal a história se passa décadas após os eventos do primeiro filme. Os replicantes de Wallace são melhores que as versões de Tyrell e, de bônus, são extremamente obedientes, mantidos em rédea curta pelas empresas que os utilizam. Existe um teste psicológico que é rotineiramente usado para detectar qualquer sutil mudança nesse estado de submissão.

Ryan Gosling; Blade Runner 2049 (2017)
Ryan Gosling e sua eterna cara de "não quero comer o cereal".

Curiosamente, os novos blade runners, responsáveis por "aposentar" os replicantes obsoletos, são também replicantes e um deles é o nosso protagonista, o K, interpretado por Ryan Gosling. Ele foi a escolha perfeita para este tipo de personagem, pois Gosling é conhecido por seus papéis de caras apáticos, expressando apenas uma constante sensação de desconforto.

É assim que K parece se sentir. Ele é um estranho no mundo dos humanos, todavia, não nutre qualquer sentimento de rebeldia, já que é geneticamente programado para obedecer. Desta forma, ele parece encarar com naturalidade a sua servidão, cumprindo as ordens da patroa sem nenhum questionamento. É o oposto do Deckard, que era um cara difícil de lidar, teimoso, independente e sarcástico.

O replicante K leva uma vida "humana" e "normal". Depois do trabalho volta pro seu pequeno apartamento e convive com sua parceira Joi. Mas aí tem um importante detalhe: Joi é uma inteligência artificial.

Neste aspecto, o filme combina bem com o zeitgeist atual, agora que vislumbramos o horizonte de evento de nossa futura civilização cibernética, com toda essa coisa de inteligência artificial, robôs humanoides e metaverso. 

Blade Runner 2049 (2017)
Comida com skin virtual. Só assim pro Ryan Gosling conseguir comer.

Tudo isto está no filme. Vemos exemplos de realidade aumentada quando Joi serve um prato holográfico que funciona como uma skin, dando uma cara mais apetitosa à gororoba que o K ia comer. 

Isto nos parece deprimente, mas, acredite, com a popularização da realidade aumentada, botar skin na comida pra deixá-la mais atrativa vai se tornar uma trend. Ora, hoje em dia as pessoas alteram até a própria aparência, usando filtros fofinhos dos aplicativos. Usar skins virtuais no mundo real já está se tornando normal.

Diferente da nossa realidade aumentada, que depende de óculos de VR, em Blade Runner existe algum tipo de projetor holográfico que literalmente imprime feixes de "luz sólida" no mundo físico. A Joi é projetada com um corpo holográfico que parece ter certa substância. 

Quando ela ganha um projetor portátil e sai na chuva, as gotas de chuva de fato batem e escorrem em seu corpo. Só que ela não é tããão sólida e seu corpo tem uma certa translucidez. Logo, é fácil distinguir uma pessoa holográfica de uma real.

Mesmo sendo visivelmente um ser artificial, esta IA possui um grau de complexidade afetiva que cria a impressão de ser uma pessoa com sentimentos e consciência. É assim que K a trata, como uma parceira romântica genuína. 

Por outro lado, há momentos em que ele percebe a ilusão de seu relacionamento. Por exemplo, quando ele está abraçando Joi na chuva, ela entra num modo pause pra que ele atenda o telefone. Depois ele simplesmente a desliga e guarda o projetor no bolso. Ela não é uma pessoa real e independente. Ela é produto de um dispositivo e pode ser pausada, ligada e desligada.

Este relacionamento entre K e Joi nos apresenta diferentes camadas da questão do livre-arbítrio e do que é o "eu" verdadeiro. Se fica claro que Joi não é um ser totalmente livre e que ela age conforme foi programada pela empresa que vende este produto, K também parece com ela nesse aspecto, porém em um grau menor. Ele tem seu livre-arbítrio limitado por uma programação. Ele é um servo dos humanos, como Joi é serva dele. 

Ana de Armas, Ryan Gosling; Blade Runner 2049 (2017)

Ana de Armas, Ryan Gosling; Blade Runner 2049 (2017)

E quanto a nós, humanos, até que ponto somos livres ou escravos de algum tipo de programação? 

A trama de Blade Runner 2049 começa quando K é enviado para "aposentar" um velho replicante. Após matá-lo, ele encontra uma caixa enterrada que contém restos mortais de uma replicante fêmea. A autópsia revela que ela morreu de complicações no parto. Esta descoberta é chocante: uma replicante foi capaz de engravidar!

K resolve investigar o caso por conta própria, mergulhando em um rabbit hole em busca da verdade. Para sua surpresa, ele descobre que ele era a própria criança nascida de uma replicante. Não pera, depois vem outro plot twist e ele descobre que a criança era outra pessoa, privando-o de seu breve momento de importância. No fim, ele acaba voltando a ser apenas um replicante como todos os outros, mas se sacrifica pra salvar o segredo da criança replicante.

É interessante a diferença comportamental dos replicantes fabricados pela Wallace e os antigos da Tyrell. Os antigos modelos eram rebeldes, trabalhavam à força e viviam amargurados. Wallace conseguiu criar seres com tal nível de customização cerebral que eles eram até programados para não sentir qualquer desejo de revolta.

Um curioso exemplo disto é o fato de que os novos replicantes sabem que suas memórias de infância são implantes. Pelo menos é o que se nota no caso de K. Ele sabe que foi projetado em um laboratório, que é geneticamente programado para obedecer, que recebeu implantes de memória com o objetivo de lhe dar uma sensação existencial mais humana e aceita tudo isto estoicamente.

Normalmente, em histórias sobre memórias falsas, a pessoa tem um momento de choque quando descobre que são falsas. Neste filme, porém, acontece o inverso. K vivia "tranquilo" sabendo que tinha memórias falsas, mas depois que investiga seu passado, descobre que eram verdadeiras e entra em crise. Parece até que ele sente um alívio quando, depois, descobre que elas eram falsas mesmo e pertenciam a outra pessoa, a verdadeira criança replicante. 

Agora ele será caçado pelos blade runners, já que é ilegal um replicante ter filhos, mas também será caçado pela Luv, braço direito do Wallace, pois o megaempresário tem a ambição de criar replicantes capazes de se reproduzir, a fim de turbinar a sua produção e a colonização interestelar. 

Falemos de Wallace. Interpretado pelo versátil Jared Leto, ele é um grande gênio e visionário. Tyrell parecia ser apenas um bilionário que tocava o negócio dos replicantes visando lucro. Wallace, por sua vez, é um megalomaníaco literalmente com complexo de Deus. Ele retomou a colonização interplanetária, alcançando 9 mundos, mas ambiciona expandir seu império de forma ilimitada, "conquistar os céus".

Ora, como o próprio Wallace diz, as civilizações sempre experimentaram prosperidade ao empregar trabalho escravo, e agora os replicantes são os novos escravos, bem mais eficientes que humanos, mais obedientes e, caso ele solucione o mistério da reprodução, poderá produzi-los aos bilhões e enviá-los por todo o espaço.

Sylvia Hoeks; Blade Runner 2049 (2017)

Luv, cujo nome obviamente soa como Amor, foi projetada para ser a assistente mais próxima de Wallace. Ela é tremendamente fiel a ele. Mais ainda, ela o venera, pois foi programada para tal. A fim de realizar o grande sonho de Wallace, Luv vai em busca de K, para desvendar esse mistério da criança replicante.

Diferente da maioria dos replicantes, Luv é uma privilegiada. Em uma cena, vemos ela tendo as unhas minunciosamente pintadas por um empregado. Ela ocupa um cargo de alta patente na megaempresa de Wallace, é a pessoa mais próxima dele. Também tem uma atitude de imponência e, quando luta contra K, ela mantém esta imponência até o fim. Mesmo quando ele começa a afogá-la, ele se debate sob a água grunhindo como uma fera.

O Harrison Ford, convenhamos, parecia estar bem desleixado neste último filme, assim como foi nos últimos Star Wars. O cara já nem se esforça muito em entrar no papel, mas de toda forma, o fan service foi feito. Embora Blade Runner 2049 tenha K como protagonista, a história gira em torno de Deckard e termina o que começou há 32 anos: o velho Deckard enfim encontra a filha que teve com Rachael.

Blade Runner 2049 (2017)
O poeirento mundo de Blade Runner.

Blade Runner 2049 (2017)

Vira Láctea

Filósofo cínico,
deitado na calçada,
como um vira-lata.

A mente sublime
olhando pro alto:
a Via Láctea.

(20,11,2021)

Impérios

Impérios caem.
Não se engane:
Impérios caem.

Nada é perpétuo
neste mundo.
Tudo se esvai.

A Roda da Fortuna
mantém o movimento.

Nenhum império vence
o Tempo.

(20,11,2021)

Salamandra

Salamandra?
Sai, malandra!

(20,11,2021)

Alien e o corpo esquizoide

Alien

Acredita-se que o caráter esquizoide¹ começa a se formar no útero. Caso a mãe esteja em um momento ruim da vida, sofrendo muito stress ou mesmo depressão, ou caso, consciente ou inconscientemente, rejeite a criança e reaja com irritação cada vez que ela se move dentro da barriga, todas estas sensações ruins serão repassadas em certo grau para o feto, causando desconforto.

O bebê não tem noção do que é o mundo ou a mãe, mas ele tem a sensação e a proto-consciência de sua existência e da existência do útero em que vive. Caso seja submetido a muitos desconfortos, ele desenvolverá uma sensação de rejeição, de que algo está errado e que ele precisa de proteger.

A maneira que o pequeno ser vivo encontra para se proteger é realocando suas energias para o cérebro, reduzindo a atividade e nutrição do corpo. Assim ele pode se refugiar na atividade cerebral, no mundo imaginário. Sim, pois bebês sonham, têm um mundo mental ativo. Este mundo que ele criou será mais confortável que o mundo físico. Assim é moldada a personalidade esquizoide.

Logo, é comum que pessoas predominantemente esquizoides manifestem esta característica no próprio corpo. O formato típico é de uma pessoa magra, alongada, com a cabeça mais proeminente, tipo um alien grey ou um slender man

Eu diria que o alien xenomorfo, aquele do Ridley Scott, é o modelo por excelência de um esquizoide. Bastante magro e alongado, perninhas finas e uma cabeça beeem proeminente e dotada de aguçados sentidos. Convenhamos, faz sentido que o xenomorfo se torne um esquizoide, já que sua gestação é literalmente uma cena de terror.

Notas:

A formação do transtorno esquizoide na infância

O Transtorno de personalidade esquizoide¹ comumente se manifesta em adultos, mas sua origem pode remontar à mais tenra infância. Apresenta-se numa forma de apatia para com os sentimentos e o desinteresse para relacionamentos. Na verdade, não se trata de desinteresse, mas de receio. O esquizoide evita as pessoas porque não confia nelas, mesmo que, no fundo, gostaria de confiar.

É aí que vem a curiosa relação entre o transtorno esquizoide e a infância. É certo que pessoas podem desenvolver o transtorno devido a fortes traumas sofridos na vida adulta, mas aquelas que tiveram uma infância saudável o suficiente para desenvolver o sentimento de confiança no relacionamento com as demais costumam ter "anticorpos" que as permitem se recompor após os traumas e decepções. Quem, todavia, sofreu o trauma na infância, fica fortemente debilitado, já que traumas na infância deixam raízes muito mais profundas.

É comum subestimarmos a profundidade mental de bebês. À primeira vista, um bebê parece uma criaturinha "estúpida". Não sabe falar, não entende o que as pessoas dizem, não sabe nem mesmo andar. Afetivamente, porém, o bebê já possui uma complexidade formidável e ele desenvolverá a sua personalidade e atributos mentais com base em suas experiências com o mundo.

Eis alguns exemplos: o bebê se torna mais apegado aos pais que fazem algumas coisas simples e de grande valor afetivo, como segurar no colo, cantar para ele dormir, fazer brincadeiras bobas e falar com o "tatibitati" para fazê-lo sorrir, etc. 

Estas pequenas e triviais interações têm grande importância na formação da personalidade da criança. Ela se torna mais simpática à interação humana, desenvolve o afeto familiar e, por extensão, terá mais facilidade em desenvolver amizades e lidar com as pessoas em geral. 

O sentimento de confiança na humanidade começa ali, bem na tenra infância. O bebê não sabe ler nem caminhar, mas ele sabe quando é rejeitado pelos adultos, quando ele chora por horas sentindo-se abandonado e ninguém aparece, quando o leite materno lhe é negado, etc.

É na interação física que o bebê desenvolve a noção de "eu" e "outro". Logo, bebês que não têm momentos no colo dos pais, que estão sempre sozinhos porque os adultos não têm tempo ou interesse em manter este contato físico, acabam desenvolvendo um narcisismo, já que se acostumam a perceber apenas o "eu" em seu mundo. Na vida adulta, será a pessoa que sente que não pode contar com a ajuda dos outros e deve resolver seus problemas sozinho. É o comportamento esquizoide.

A tendência é que pais que desprezam seus filhos bebês intensifiquem este desprezo ao longo dos anos, pois aquela criança será considerada um fardo, um incômodo e motivo de aborrecimentos. Devido à deficiente nutrição afetiva, a criança será problemática, não respeitando os pais, tendo surtos de histeria, de modo que o desprezo que os pais já sentiam só aumenta e não raro devolvem na forma de violência física e verbal. Assim, a relação entre os adultos e a criança vai ficando reciprocamente cada vez pior, num ciclo vicioso.

Até o momento, não há "cura" para isto, nem tratamento definido além de drogas sintomáticas como antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos. A raiz do problema, porém, seguirá intocada: o profundo sentimento de abandono que foi plantado na infância².

Notas:

1: O transtorno esquizoide é mais frequente do que se imagina (estima-se entre 3% e 4%, o que equivale a milhões de pessoas), em boa parte por causa do grande número de famílias disfuncionais, de pais que tiveram filhos não planejados e que os receberam como um fardo, de pessoas que se aventuraram na delicada missão de ter filhos, mesmo sem ter o menor preparo ou condição psicológica para tal. Assim, como uma bola de neve, cada geração vai produzindo mais e mais pessoas com tal transtorno.

O esquizoide tem pouco interesse por convenções sociais e hierarquias, todavia ele pode se tornar bastante submisso ou subserviente em relacionamentos, pois é uma forma de ser reconhecido ao atender ao desejo dos outros, mesmo que de uma forma humilhante. Por outro lado, ele pode chegar à conclusão que a melhor forma de lidar com o sentimento de abandono é abraçando o isolamento. 

2: Nem tudo, porém, é dor e sofrimento na vida do esquizoide. Na natureza, as adversidades podem debilitar um ser vivo em determinados aspectos, mas fortalecê-lo em outros. O esquizoide, devido à sua insegurança para com o mundo exterior, ao sentimento de isolamento e de que precisa ser autossuficiente, desenvolve um mundo interior formidável.

Não raro encontramos artistas esquizoides. Eles são profundamente imaginativos, podem desenvolver múltiplas personalidades com diversos talentos e têm ideias que as pessoas comuns não ousam imaginar. O mundo mental do esquizoide é uma obra de arte e é possível que ele consiga viver de maneira satisfatória usando este talento a seu favor.

A IA pode entender ética?

Ultimamente têm surgido chatbots com IA de aprendizado de máquina. Estes sistemas são capazes de elaborar respostas e desenvolver uma conversa com um humano que muitas vezes parece convincente e quem sabe passar no teste de Turing. Ocasionalmente, estas IAs dão respostas polêmicas ou fazer brincadeiras sobre destruir os humanos e fica aquela dúvida se a máquina realmente tem uma opinião sobre isso.

Por mais fascinado que eu seja com a IA, acho que estas "opiniões" que a máquina tece sobre algum assunto estão longe de ser uma opinião de fato. Com o aprendizado de máquina, ela se alimenta de dados que acha na internet e elabora as respostas por meio de correlações. É pura estatística. Para a IA, elaborar uma resposta é como encaixar peças. 

Uma opinião de verdade não envolve apenas raciocínio lógico, mas também conceitos subjetivos, simbólicos, sentimentos, principalmente em termos de ética. Toda opinião ética tem uma carga de sentimentos envolvida. Isto a máquina está longe de entender e por isso é um departamento que a IA não vai poder se encarregar tão cedo. Só humanos entendem ética e olha que nem todos eles.

Tédio e fascínio

Uma parte de mim é fascínio,
a outra é tédio e cinismo.
Mil vezes do mundo desisto,
mil vezes vou redescobri-lo.

Há tantas coisas desprezíveis.
O mal é um hóspede assíduo,
Minotauro no labirinto,
espreitando a cada esquina.

Mas há tantas coisas sublimes.
Este é um esfíngico enigma:
como no mundo coexistem
extremos em estranha harmonia?

(15,11,2021)