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Sobre a redução da toxicidade em jogos multiplayer

Rage

Com o passar dos anos, a indústria de jogos multiplayer foi se aperfeiçoando no sentido de tornar a experiência o mais agradável possível e evitar que jogadores pouco civilizados ou mal intencionados prejudiquem e incomodem os outros.

Ainda há muito a ser feito e é preciso que a inteligência artificial evolua bastante para entender o contexto das conversas entre os jogadores e avaliar cada caso de uma forma mais "humana". Hoje o que existe é basicamente uma lista de palavras ofensivas e jogadores que as utilizam são silenciados ou banidos, mas esse sistema literal e que não capta as sutilezas da comunicação humana não sabe diferenciar quando um jogador fala amistosamente para outro: "e ai, viado, bora jogar?" ou agressivamente ameaça: "sai da partida, viado!". Para o algoritmo, é tudo xingamento.

Esse sistema vai naturalmente evoluir e a IA vai agir como se fosse um moderador humano e até melhor, já que não terá as paixões de micropoder e atitudes arbitrárias que um moderador humano pode ter. Por mais que um humano entenda melhor o contexto de uma relação entre jogadores, ele pode banir alguém simplesmente porque "não foi com a cara". Um moderador robótico não cairá nestes erros da emoção.

O futuro da moderação nos jogos é otimista, creio eu, desde que as empresas também saibam pegar leve e a moderação tenha algum tipo de discernimento entre o que é de fato um comportamento tóxico e abusivo ou o que é uma "agressividade saudável" que é natural em todo tipo de competição.

Quero dizer com isso que nos jogos em geral é comum as pessoas se empolgarem com a adrenalina e o espírito competitivo, ficando mais exaltados, até xingando. E as pessoas na partida sabem distinguir se a coisa passou do limite ou não. 

Por exemplo, numa partida de futebol tanto o técnico quanto os jogadores e a torcida xingam e gritam bastante tentando orientar o jogo. Quando você erra um gol e solta um palavrão, está apenas verbalizando um instante de frustração. Não há problema nisso. Se você parte pra cima do goleiro e chuta a canela dele, aí sim passou dos limites.

Enfim, estou divagando. A questão é que será preciso uma evolução na moderação de jogos também neste sentido para não criar um ambiente tão regrado que vai parecer que a experiência de jogo vai ser tensa e cheia de emoções reprimidas porque os jogadores ficarão com medo de serem banidos por um simples palavrão ou por desabafar com um grito.

Mas o que faz um jogo ser uma experiência sem estresse e intimidação não é só a moderação. Existem outros detalhes na estrutura do jogo que fazem diferença e posso tomar um exemplo comparando Tibia e Runescape.

O Tibia é incrível e misteriosamente viciante, mas parou no tempo em diversos aspectos, inclusive na questão do bem-estar dos jogadores. O jogo é estruturado de tal maneira que favorece e recompensa os jogadores abusivos. Por exemplo: nos servidores PvP você pode ser livremente atacado por qualquer jogador com muito mais level que você, de modo que você não tem a menor chance de se defender. Pior ainda, você pode ser atacado por um número ilimitado de jogadores. Se uma guilda inteira resolver te perseguir, você será fuzilado por um ataque em grupo.

No Runescape, os combates só acontecem se todos aceitam se engajar em luta. O mapa tem áreas com PvP aberto onde você entra por sua conta e risco, mas na maioria do mapa e as partes mais dadas à convivência ninguém pode te atacar sem seu consentimento. Além disso, mesmo nas áreas com PvP aberto, você pode se teleportar e fugir caso alguém te ataque. No Tibia não tem nada disso. Se te atacarem e você está em desvantagem, o máximo que pode fazer é tentar correr, mas até a fuga no Tibia é uma tortura.

Uma mecânica que faz parte da alma da jogabilidade do Tibia é a trap. Ou seja, você pode prender as pessoas, bloquear passagens. Isso é intrínseco ao PvP do jogo. Existem runas que criam paredes mágicas, trancando alguém durante uma fuga num corredor. Você pode até mesmo bloquear uma porta com o corpo do seu personagem. Se alguém ficar no seu caminho, você só passa se essa pessoa sair.

Essa mecânica dos corpos "sólidos" cria diversas situações em que um jogador pode perturbar outros, impedindo que entre ou saia de um lugar se colocando no caminho, impedindo que fuja de um ataque cercando-o com uma turma de jogadores. É um troço bem chato e cruel.

No Runescape, como na maioria dos jogos multiplayer, se você caminha em um corredor estreito e tem um jogador na sua frente, você pode atravessá-lo como se fosse um fantasma. Essa mecânica pouco realista é que impede as situações de abuso como as que se veem no Tibia.

Algo ainda mais bárbaro é o poder que as guildas têm. Nos mundos PvP do Tibia, as guildas agem praticamente como máfias. Elas decidem em quais áreas do mapa você pode ou não jogar, por exemplo. Imagine isso. Você entra em um jogo achando que tem seus recursos livremente disponíveis para todos, até paga pra jogar no modo premium, e aí descobre que lá tem jogadores com certos privilégios que monopolizam áreas de mapa e simplesmente dizem que você não pode entrar ali. É como um bairro na vida real que é dominado por milícias ou máfias que controlam quem entra e quem sai.

Se você quiser ganhar um pouco mais de privilégios, terá de se submeter a uma máfia, ops, guilda, e aí receberá tarefas, terá que pagar mensalidade com o dinheiro do jogo e cumprir ordens que os líderes vão te delegar, do contrário pode ser banido da guilda e será caçado como um pária.

Todo esse sistema de coisas é bem tradicional no Tibia e a maioria dos jogadores que está lá há anos não questiona. Para eles é o normal, é uma característica do jogo e quem não gosta assim que vá procurar outra coisa pra jogar. Meu ponto é que esse é um formato de multiplayer arcaico e que não evoluiu para atrair novos jogadores que querem ter uma experiência sem estresse. Afinal o propósito dos jogos não é proporcionar momentos de relaxamento e diversão?

Outro elemento do Tibia que se torna naturalmente motivo de conflitos desnecessários: a escassez de recursos. A história nos ensina que a falta de recursos é um dos principais motivos de guerras e conflitos entre indivíduos, tribos ou nações. Num lugar onde há água em abundância, ninguém briga por isso; onde ela é escassa, há quem mate por um balde de água.

Os locais de caça do Tibia, as chamadas hunts, são projetados de tal forma que somente uma pessoa ou um grupo atuando em party consegue caçar confortavelmente com o melhor aproveitamento do tempo. Se tiver alguém a mais, os montros vão morrer mais rápido e o respawn rate não foi feito para suportar muitas pessoas ao mesmo tempo, de modo que você tem que esperar mais para que nasça um monstro e o resultado é que os jogadores veem uns aos outros como intrusos atrapalhando a sua caçada.

Um dos maiores, senão o maior motivo de brigas no Tibia é esse: "fulano invadiu minha caverna"; "estou caçando aqui há horas, a caverna é minha"; "essa caverna é exclusiva da guilda tal". No Runescape até há certos monstros em pequena quantidade que geram alguma disputa, mas a quantidade de locais de caça é tão grande que você sempre tem alguma alternativa caso chegue num local e já esteja ocupado. 

O respawn rate também é mais rápido e geralmente tem monstro de sobra pra jogadores que ocupam o mesmo local. Sem contar que há mil coisas pra se fazer além de caçar, diferente do Tibia cujo cerne da jogabilidade é ficar nas hunts em repetitivas matanças. Logo, sendo esta a principal tarefa a ocupar os jogadores no Tibia, esse jogo devia ter muito mais locais de caça e abundância de monstros, mas em vez disso há uma escassez desnecessária e geradora de disputas.

Por fim, tem a questão da liberdade do jogador escolher um servidor. No Runescape, há dezenas de servidores nas várias partes do mundo. Você pode logar seu personagem em qualquer um deles livremente, com exceção dos premium que são, claro, para quem paga assinatura. O fato é que você não está preso a um servidor, o chamado "mundo". E este é mais um dos motivos por que não há a crise de escassez no Runescape.

Se você está fazendo uma missão que tem que caçar num lugar específico, aí chega lá e já tem uma pessoa caçando, não tem problema: você pode ir pro lobby, escolher outro mundo e ver se o local está vazio. Desta forma, com essa possibilidade de saltar entre mundos, você tem à sua disposição dezenas de cópias da mesma área de caça.

Jogadores costumam usar essa facilidade para a coleta de recursos. Por exemplo, a mineração de runita é bem rara e, quando você esgota um spot de minério, leva vários minutos para dar respawn. Jogadores mais focados nesta tarefa podem simplesmente ficar saltando entre mundos, minerando o mesmo spot em cada servidor ciclicamente. Esse é um exemplo de como as coisas são abundantes.

Essa possibilidade de mudar de servidor a qualquer instante previne que jogadores fiquem confinados em locais onde são vítimas de bullying ou stalking. No Tibia, existe até uma magia específica para você localizar um jogador no mapa (o exiva) e se alguém ou uma guilda resolve te perseguir e te infernizar dia após dia, você não tem o que fazer. A única forma de levar seu personagem para outro servidor é pagando, o que torna esta tarefa um recurso último de desespero, algo que no Runescape você pode fazer todo dia se quiser, a qualquer minuto e de graça.

Creio que jogos devem ser ambientes de escapismo e diversão e não uma simulação da miséria, estresse e violência do mundo real.

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