Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Quarentena e governo tirano em Colony

Colony (2016-2018)

Uma série de invasão alienígena com o Sawyer de Lost (2004-2010) e a Lori de The Walking Dead (2010-2018). Eis a sinopse de Colony (2016-2018).

Não espere, porém, ver aliens e naves nos céus. Esta série não é uma sci-fi hard como uma Falling Skies (2011-2015) ou uma Defiance (2013-2015). A narração é mais focada no casal protagonista que tem de lidar com os novos problemas cotidianos de uma sociedade em uma espécie de estado de sítio por causa da invasão.

O que chama atenção é a forma profética como esse programa descreve um novo mundo sob constante quarentena. O cenário com alguns prédios destruídos dá a entender que houve uma guerra e agora a humanidade vive em uma delicada trégua com os invasores.

Os aliens criaram colônias cercadas por enormes muros e os governos humanos se submetem às suas exigências. Assim as cidades estão num perpétuo lockdown, numa quarentena tensa em que os cidadãos vivem sob constante vigilância tanto de drones alienígenas quanto dos militares humanos, as fronteiras de cada cidade são rigidamente seletivas e a locomoção das pessoas e o contato entre elas são monitorados e regrados por restrições. 

É um novo mundo com teor totalitarista bem estilo Big Brother, onde todos vigiam todos, os filhos denunciam os pais à polícia por qualquer comportamento minimamente suspeito, especialmente se forem simpatizantes do movimento rebelde que se opõe ao governo e a essa vida de subserviência.

A experiência imersiva de Euro Truck Simulator 2

Euro Truck Simulator 2 (2012)

Já não é nenhuma novidade a ideia de que num futuro próximo teremos uma vida virtual tão imersiva que será considerada praticamente parte da "vida normal". Esse conceito foi profundamente explorado há vinte anos nos filmes Matrix e desde então tem se tornado algo cada vez mais possível.

Já em 2003 foi lançado um multiplayer de mundo aberto com essa proposta de criar uma segunda vida, o Second Life. Parecia promissor, mas não virou mainstream e até hoje é um jogo nichado. Se tem um jogo que oferece uma experiência satisfatória de vida virtual, eu diria que é o Euro Truck Simulator 2 (2012).

Euro Truck Simulator 2 (2012)

Euro Truck Simulator 2 (2012)

No Euro Truck você se sente um caminhoneiro. A forma como o jogo funciona cria uma imersão que convence. Você pode "sentir" o peso do caminhão por causa da mecânica e da interação do motor com o tipo de pista, e a exploração do cenário, simulando cidades europeias, com seus edifícios, armazéns, pontos turísticos, tudo contribui para passar a sensação de "nossa, estou mesmo viajando". Você pode fazer entregas, assumindo o personagem do caminhoneiro, ou simplesmente percorrer as estradas interestaduais e vagar pelas cidades. 

Euro Truck Simulator 2 (2012)

Euro Truck Simulator 2 (2012)

Um detalhe que torna a experiência prazerosa é a sonoplastia. O som do motor e das rodas na pista é um tipo de ASMR relaxante (o barulhinho das rodas em pista de cascalho é muito bom). Também a passagem do tempo, a variação do clima, da iluminação, fazem você se sentir um pouco dentro de um mundo real. Você ainda pode ligar um rádio, tocar músicas, e a experiência de caminhoneiro na estrada está completa.

Agora com as tecnologias de VR então, este tipo de jogo vai evoluir mais ainda, criando o protótipo do mundo que futuramente será nossa segunda vida.

Euro Truck Simulator 2 (2012)
"Eu seeei, tô correndo ao encontro dela"

Humanos versus robôs no cinema

HAL 9000

A máquina inteligente é constantemente representada na ficção como uma ameaça à humanidade. Há um temor de que a máquina adquira consciência e vontade própria e se rebele contra seus criadores, decidindo por guerrear contra os humanos. 

The Terminator (1984)

Nota-se isso na assustadora robô Maria, do clássico Metropolis (1927); no ardiloso HAL 9000, de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968); nos androides ameaçadores, de Blade Runner (1982); na inteligência artificial Skynet e seu exército de máquinas que decidem exterminar a humanidade, da série de filmes Terminator (1984 em diante); no grandioso mundo virtual que aprisiona a todos, da série de filmes Matrix (1999-2003); nos robôs que se rebelam em Eu, Robô (2004). Semelhante ao mito do apocalipse zumbi, poderia haver um apocalipse de robôs que destruiriam a humanidade.

Há, porém, outra abordagem mais otimista: a de que na tecnologia e na inteligência artificial está a possibilidade do ser humano evoluir, transcender. Aliás, isto é bem explícito no filme Transcendence (2014), em que se realiza uma mescla de software e uma consciência humana carregada para dentro do computador, resultando em um novo ser humano-máquina. 

Robocop (1987)

Já antes, na série de filmes Robocop (1987 em diante), a robótica é usada para salvar a vida de um policial que tem seu corpo destruído num fuzilamento. Ele se torna um ciborgue que trabalha para proteger as pessoas e é um híbrido de partes humanas e mecânicas, uma imagem do que poderia ser o homem do futuro.

Em Her (2014), temos outro bom exemplo. A inteligência artificial absorve elementos humanos, inclusive de pessoas que já morreram há séculos, como filósofos e escritores, trazendo-os de volta à vida numa versão virtual e formando uma consciência digital que rapidamente evolui e transcende a civilização humana, mas não se volta contra ela. A máquina não é inimiga, é semidivina. E, como divindade, simplesmente perde o interesse pela mediocridade humana, indo além.

The Machine (2013)

Em The Machine (2013), temos um novo exemplo desse conceito de união humano-máquina. A base da inteligência artificial é a própria mente, a consciência de uma pessoa que sofre upload para um banco de dados, sendo amalgamada ao software, o que resulta num ser que rapidamente aprende e evolui e já não precisa de um frágil corpo humano. 

O ideal de libertar a mente do corpo orgânico fica bem evidente nesse filme. O cientista envolvido no projeto, Vincent, a princípio usa a robótica para restaurar soldados mutilados, inclusive com danos cerebrais, mas ele continua com corpos humanos e defeituosos, de modo que a pesquisa evolui para a criação de um corpo totalmente cibernético, melhor, mais forte, mais resistente, e neste corpo será carregada uma consciência  humana. Assim nasce uma versão melhorada da humanidade, ou melhor, um ser pós-humano, transumano. A máquina, portanto, não é inimiga da humanidade, é a sua próxima versão, a sua versão evoluída.

Esta tese hoje em dia tem sido bastante defendida pelo magnata e visionário Elon Musk. Segundo ele, a melhor forma de evitarmos um apocalipse robótico é mesclando nossos corpos e mentes à inteligência artificial por meio de implantes que realizem este amálgama.

Surgirá a partir daí uma nova espécie que superará o conflito humano x máquina, afinal o humano também será, em parte, máquina. Nos filmes do gênero cyberpunk, esse tipo de mescla é bastante comum, mas o resultado pode ser problemático, criando um mundo distópico em que a essência humana é consumida pela máquina.

A Vida Imortal de Henrietta Lacks

Henrietta Lacks

Médicos descobrem uma pessoa cujas células têm um incrível poder de reprodução, formando um organismo praticamente imortal. Estas células são extraídas para estudo e desde então passam a ser cultivadas em laboratórios no mundo inteiro.

Parece um tema de ficção, uma história do Wolverine ou de teoria conspiratória, mas Henrietta Lacks realmente existiu, bem como suas células anômalas, conforme explicado no livro A Vida Imortal de Henrietta Lacks, de Rebecca Skloot (2009).

Mas ela não era exatamente uma "mulher imortal". Aos 30 anos, Henrietta Lacks (1920-1951), descendente de escravos e que trabalhava nos campos de tabaco nos EUA, foi diagnosticada com um tumor e uma amostra de células foi retirada para análise no Johns Hopkins Hospital.

Até aí temos só mais um caso rotineiro de biópsia, mas neste hospital havia um pesquisador que há anos procurava uma maneira de cultivar células humanas com eficiência, George Otto Gey (1899-1970). Visionário, ele entendeu que células cancerígenas, devido à sua rápida reprodução, poderiam ser ideais para este tipo de pesquisa e passou a cultivar aquelas extraídas de Henrietta.

Observou-se então a impressionante capacidade de reprodução destas células, bem mais rápida do que a de células humanas normais, o que faz delas uma espécie de organismo imortal, se mantido em devidas condições no laboratório. Estas células ganharam o nome de HeLa.

Henrietta Lacks faleceu devido ao câncer, mas aquelas células continuaram a ser cultivadas e distribuídas para vários laboratórios no mundo. Foi a partir delas que Jonas Salk (1914-1955) produziu uma vacina contra a poliomielite. Foram enviadas ao espaço para experimento sob a gravidade zero. São usadas para pesquisas sobre câncer, AIDS, efeitos da radiação e substâncias tóxicas, mapeamento genético, etc. 

Segundo Rebecca Skloot, "mais de 60 mil artigos científicos foram publicados sobre pesquisas feitas com células HeLa e esse número foi aumentando de forma constante a uma taxa de mais de 300 artigos a cada mês."

As células HeLa existem até hoje seguindo uma linhagem ininterrupta, desde a sua extração e primeiro cultivo feito por George Otto Gey. Ele fez questão de propagar o material para qualquer pesquisador interessado, de modo que logo HeLa estava presente em diversos laboratórios. 

E mais, elas possuem uma grande capacidade de contaminação, de modo que ao longo das décadas várias outras culturas de células foram e ainda são contaminadas pelas HeLa. A simples presença de uma célula numa proveta, pinça ou qualquer outro material pode ser suficiente pra levar a contaminação adiante.

O biólogo Leigh Van Valen (1935-2010) propôs que as células HeLa fossem classificadas como uma nova espécie, batizada de Helacyton gartleri, uma vez que não podem ser consideradas células humanas propriamente ditas devido ao seu comportamento e mesmo a composição cromossômica serem diferentes das células humanas normais, pois são fruto de uma mutação.

A família de Henrietta Lacks afirmou que as células foram colhidas sem permissão e moveram um processo que foi levado até o Supremo Tribunal da Califórnia no caso "Moore v Regentes da Universidade da Califórnia". Concluiu-se, porém, que, na época em que as células foram extraídas, não havia qualquer lei que exigisse consentimento do paciente quanto ao destino do material extraído durante cirurgia, diagnóstico ou tratamento.

Na verdade, mesmo hoje esse tipo de legislação é raro e vago e geralmente se considera este material extraído como propriedade do médico ou do hospital que então podem descartar, guardar amostras, usar em pesquisas, etc. Um tumor extraído de um paciente, por exemplo, é expurgado como lixo hospitalar sem necessidade de qualquer autorização deste. No caso de HeLa, existem até laboratórios que patenteiam ou vendem o material.

Paixão e culinária em Como Água para Chocolate

Como Agua para Chocolate (1992)

Laura Esquivel (1950), escritora mexicana, começou a carreira como roteirista para programas de TV e filmes. Desde a juventude tem interesse em filosofia e misticismo oriental. Estes dois elementos, o cinema e o misticismo, estão presentes no estilo da escritora, como se nota em Como Água Para Chocolate (1989), um romance fantástico e narrado de maneira cinematográfica e dramática.

A história é ambientada durante a Revolução Mexicana, no começo do século XX, particularmente em uma fazenda onde vive uma família governada por uma opressora tradição matriarcal. O termo "como água para chocolate" é um ditado popular comum no México e se refere ao estado em que a água fervente está pronta para receber o chocolate, o que pode representar o fervor sexual, por exemplo. No Brasil temos uma expressão parecida que é "em ponto de bala".

Como Agua para Chocolate (1992)

Fervor é o estado da alma da protagonista Tita, e o livro está repleto de fogo, um fogo sexual que surge na alma de Tita e ganha vida de maneira mágica, chegando a provocar incêndios reais e mesmo a incendiar uma casa inteira! Não à toa a autora usou a cozinha e a culinária como o ambiente principal, pois lá a fervura está sempre presente, como que simbolizando a própria temperatura dos sentimentos da personagem.

Tita apaixona-se por Pedro, num momento descrito como cheio de brasa:

"...podia recordar perfeitamente... o olhar de Pedro sobre seus ombros... Esse olhar! Ela caminhava até a mesa levando uma bandeja de charão com doces feitos de gemas de ovos quando o sentiu, ardente, queimando-lhe a pele. Voltou a cabeça e seus olhos se encontraram com os de Pedro. Nesse momento compreendeu perfeitamente o que deve sentir a massa de um filhó ao entrar em contato com o azeite fervendo".

Como Agua para Chocolate (1992)

Pois bem, essa brasa será contida por causa das tradições e tabus da família, rigorosamente governada pela mãe de Tita, Elena, representante de um poder tirano e estagnado, que irá de encontro ao espírito inovador e rebelde de Tita. Tita é designada pela mãe a ser a solteira da casa, obrigada a permanecer a serviço dela até a velhice. A moça, porém, quer a liberdade para poder seguir sua vida e experimentar o relacionamento amoroso.

Esse antagonismo irá levar Tita ao sofrimento, ao desespero, doença e mesmo à loucura, de modo que terá que passar por uma jornada de renascimento e redenção com ajuda de outro personagem, o médico John.

O livro é dividido em 12 capítulos nomeados com os meses do ano e cada qual traz uma receita culinária especial, adequada às festividades de cada época. A culinária é tratada como algo mágico, alquímico, e o estado de espírito de Tita sempre exerce algum efeito sobre os pratos que ela prepara. 

Desta forma, o estilo da obra pode ser classificado como de "realismo mágico", uma narrativa levemente surreal, mas na qual a magia e o fantástico aparecem como parte do cotidiano, parte de eventos rotineiros como o ato de cozinhar ou a manifestação amorosa. Como Romeu e Julieta, a história é um romance trágico e dramático, no qual os apaixonados têm seus sentimentos reprimidos por pressões da família.

O filme, lançado em 1992, teve roteiro da própria Laura Esquivel de modo que a trama se mantém fiel à história original. Claro que o filme não chega aos pés do livro em sua aura mágica e nas descrições vívidas dos sentimentos da protagonista, mas vale a pena conferir.

Como Agua para Chocolate (1992)

Sobre a redução da toxicidade em jogos multiplayer

Rage

Com o passar dos anos, a indústria de jogos multiplayer foi se aperfeiçoando no sentido de tornar a experiência o mais agradável possível e evitar que jogadores pouco civilizados ou mal intencionados prejudiquem e incomodem os outros.

Ainda há muito a ser feito e é preciso que a inteligência artificial evolua bastante para entender o contexto das conversas entre os jogadores e avaliar cada caso de uma forma mais "humana". Hoje o que existe é basicamente uma lista de palavras ofensivas e jogadores que as utilizam são silenciados ou banidos, mas esse sistema literal e que não capta as sutilezas da comunicação humana não sabe diferenciar quando um jogador fala amistosamente para outro: "e ai, viado, bora jogar?" ou agressivamente ameaça: "sai da partida, viado!". Para o algoritmo, é tudo xingamento.

Esse sistema vai naturalmente evoluir e a IA vai agir como se fosse um moderador humano e até melhor, já que não terá as paixões de micropoder e atitudes arbitrárias que um moderador humano pode ter. Por mais que um humano entenda melhor o contexto de uma relação entre jogadores, ele pode banir alguém simplesmente porque "não foi com a cara". Um moderador robótico não cairá nestes erros da emoção.

O futuro da moderação nos jogos é otimista, creio eu, desde que as empresas também saibam pegar leve e a moderação tenha algum tipo de discernimento entre o que é de fato um comportamento tóxico e abusivo ou o que é uma "agressividade saudável" que é natural em todo tipo de competição.

Quero dizer com isso que nos jogos em geral é comum as pessoas se empolgarem com a adrenalina e o espírito competitivo, ficando mais exaltados, até xingando. E as pessoas na partida sabem distinguir se a coisa passou do limite ou não. 

Por exemplo, numa partida de futebol tanto o técnico quanto os jogadores e a torcida xingam e gritam bastante tentando orientar o jogo. Quando você erra um gol e solta um palavrão, está apenas verbalizando um instante de frustração. Não há problema nisso. Se você parte pra cima do goleiro e chuta a canela dele, aí sim passou dos limites.

Enfim, estou divagando. A questão é que será preciso uma evolução na moderação de jogos também neste sentido para não criar um ambiente tão regrado que vai parecer que a experiência de jogo vai ser tensa e cheia de emoções reprimidas porque os jogadores ficarão com medo de serem banidos por um simples palavrão ou por desabafar com um grito.

Mas o que faz um jogo ser uma experiência sem estresse e intimidação não é só a moderação. Existem outros detalhes na estrutura do jogo que fazem diferença e posso tomar um exemplo comparando Tibia e Runescape.

O Tibia é incrível e misteriosamente viciante, mas parou no tempo em diversos aspectos, inclusive na questão do bem-estar dos jogadores. O jogo é estruturado de tal maneira que favorece e recompensa os jogadores abusivos. Por exemplo: nos servidores PvP você pode ser livremente atacado por qualquer jogador com muito mais level que você, de modo que você não tem a menor chance de se defender. Pior ainda, você pode ser atacado por um número ilimitado de jogadores. Se uma guilda inteira resolver te perseguir, você será fuzilado por um ataque em grupo.

No Runescape, os combates só acontecem se todos aceitam se engajar em luta. O mapa tem áreas com PvP aberto onde você entra por sua conta e risco, mas na maioria do mapa e as partes mais dadas à convivência ninguém pode te atacar sem seu consentimento. Além disso, mesmo nas áreas com PvP aberto, você pode se teleportar e fugir caso alguém te ataque. No Tibia não tem nada disso. Se te atacarem e você está em desvantagem, o máximo que pode fazer é tentar correr, mas até a fuga no Tibia é uma tortura.

Uma mecânica que faz parte da alma da jogabilidade do Tibia é a trap. Ou seja, você pode prender as pessoas, bloquear passagens. Isso é intrínseco ao PvP do jogo. Existem runas que criam paredes mágicas, trancando alguém durante uma fuga num corredor. Você pode até mesmo bloquear uma porta com o corpo do seu personagem. Se alguém ficar no seu caminho, você só passa se essa pessoa sair.

Essa mecânica dos corpos "sólidos" cria diversas situações em que um jogador pode perturbar outros, impedindo que entre ou saia de um lugar se colocando no caminho, impedindo que fuja de um ataque cercando-o com uma turma de jogadores. É um troço bem chato e cruel.

No Runescape, como na maioria dos jogos multiplayer, se você caminha em um corredor estreito e tem um jogador na sua frente, você pode atravessá-lo como se fosse um fantasma. Essa mecânica pouco realista é que impede as situações de abuso como as que se veem no Tibia.

Algo ainda mais bárbaro é o poder que as guildas têm. Nos mundos PvP do Tibia, as guildas agem praticamente como máfias. Elas decidem em quais áreas do mapa você pode ou não jogar, por exemplo. Imagine isso. Você entra em um jogo achando que tem seus recursos livremente disponíveis para todos, até paga pra jogar no modo premium, e aí descobre que lá tem jogadores com certos privilégios que monopolizam áreas de mapa e simplesmente dizem que você não pode entrar ali. É como um bairro na vida real que é dominado por milícias ou máfias que controlam quem entra e quem sai.

Se você quiser ganhar um pouco mais de privilégios, terá de se submeter a uma máfia, ops, guilda, e aí receberá tarefas, terá que pagar mensalidade com o dinheiro do jogo e cumprir ordens que os líderes vão te delegar, do contrário pode ser banido da guilda e será caçado como um pária.

Todo esse sistema de coisas é bem tradicional no Tibia e a maioria dos jogadores que está lá há anos não questiona. Para eles é o normal, é uma característica do jogo e quem não gosta assim que vá procurar outra coisa pra jogar. Meu ponto é que esse é um formato de multiplayer arcaico e que não evoluiu para atrair novos jogadores que querem ter uma experiência sem estresse. Afinal o propósito dos jogos não é proporcionar momentos de relaxamento e diversão?

Outro elemento do Tibia que se torna naturalmente motivo de conflitos desnecessários: a escassez de recursos. A história nos ensina que a falta de recursos é um dos principais motivos de guerras e conflitos entre indivíduos, tribos ou nações. Num lugar onde há água em abundância, ninguém briga por isso; onde ela é escassa, há quem mate por um balde de água.

Os locais de caça do Tibia, as chamadas hunts, são projetados de tal forma que somente uma pessoa ou um grupo atuando em party consegue caçar confortavelmente com o melhor aproveitamento do tempo. Se tiver alguém a mais, os montros vão morrer mais rápido e o respawn rate não foi feito para suportar muitas pessoas ao mesmo tempo, de modo que você tem que esperar mais para que nasça um monstro e o resultado é que os jogadores veem uns aos outros como intrusos atrapalhando a sua caçada.

Um dos maiores, senão o maior motivo de brigas no Tibia é esse: "fulano invadiu minha caverna"; "estou caçando aqui há horas, a caverna é minha"; "essa caverna é exclusiva da guilda tal". No Runescape até há certos monstros em pequena quantidade que geram alguma disputa, mas a quantidade de locais de caça é tão grande que você sempre tem alguma alternativa caso chegue num local e já esteja ocupado. 

O respawn rate também é mais rápido e geralmente tem monstro de sobra pra jogadores que ocupam o mesmo local. Sem contar que há mil coisas pra se fazer além de caçar, diferente do Tibia cujo cerne da jogabilidade é ficar nas hunts em repetitivas matanças. Logo, sendo esta a principal tarefa a ocupar os jogadores no Tibia, esse jogo devia ter muito mais locais de caça e abundância de monstros, mas em vez disso há uma escassez desnecessária e geradora de disputas.

Por fim, tem a questão da liberdade do jogador escolher um servidor. No Runescape, há dezenas de servidores nas várias partes do mundo. Você pode logar seu personagem em qualquer um deles livremente, com exceção dos premium que são, claro, para quem paga assinatura. O fato é que você não está preso a um servidor, o chamado "mundo". E este é mais um dos motivos por que não há a crise de escassez no Runescape.

Se você está fazendo uma missão que tem que caçar num lugar específico, aí chega lá e já tem uma pessoa caçando, não tem problema: você pode ir pro lobby, escolher outro mundo e ver se o local está vazio. Desta forma, com essa possibilidade de saltar entre mundos, você tem à sua disposição dezenas de cópias da mesma área de caça.

Jogadores costumam usar essa facilidade para a coleta de recursos. Por exemplo, a mineração de runita é bem rara e, quando você esgota um spot de minério, leva vários minutos para dar respawn. Jogadores mais focados nesta tarefa podem simplesmente ficar saltando entre mundos, minerando o mesmo spot em cada servidor ciclicamente. Esse é um exemplo de como as coisas são abundantes.

Essa possibilidade de mudar de servidor a qualquer instante previne que jogadores fiquem confinados em locais onde são vítimas de bullying ou stalking. No Tibia, existe até uma magia específica para você localizar um jogador no mapa (o exiva) e se alguém ou uma guilda resolve te perseguir e te infernizar dia após dia, você não tem o que fazer. A única forma de levar seu personagem para outro servidor é pagando, o que torna esta tarefa um recurso último de desespero, algo que no Runescape você pode fazer todo dia se quiser, a qualquer minuto e de graça.

Creio que jogos devem ser ambientes de escapismo e diversão e não uma simulação da miséria, estresse e violência do mundo real.

Os charmosos demônios de Makai Ouji

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

A história é curtinha, com 12 episódios, e acontece numa Inglaterra do século XIX, o que se nota nas elegantes roupas vitorianas. O protagonista, William, é uma espécie de reencarnação de Salomão e herdou a autoridade para eleger o próximo demônio a reinar no inferno enquanto Lúcifer está adormecido.

Me chamou logo atenção a presença de muitos detalhes da goétia, uma tradição mágica do ocultismo judaico que afirma que Salomão ganhou dos anjos o poder de controlar os 72 principais demônios do mundo. O inferno não é uma anarquia. Existe toda uma política e o pessoal lá faz de tudo pra conseguir o "voto" de William/Salomão.

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

Mas neste anime o ocultismo não envereda para uma história sombria e com personagens macabros. Ao contrário, temos demônios muito fofos e adoráveis, com um enredo cheio de humor. Em meio às brigas, invocações e bolas de fogo, acontecem cenas divertidas e os demônios parecem muito à vontade na Terra, fazendo amigos e se envolvendo em entretenimentos, até mesmo uma curiosa disputa de culinária com a participação de ninguém menos que o cozinheiro Baphomet!

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

Dentre a horda de demônios, os dois mais chegados a William são o oposto um do outro. Dantalião é másculo e marrento, porém muito leal a Salomão. Sytry é um demônio andrógino e muito belo que não para de comer doces. E há outra dúzia de demônios e também anjos, como o próprio Miguel, um ser autoritário e esnobe.

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

Muitos dos títulos de cada episódio trazem um dualismo, como "Human and Angel" (ep. 2), "Exorcist and Ghost" (ep. 3), "Pain and Ecstasy" (ep. 8), etc. Após os créditos finais há sempre uma breve cena com algum personagem. As músicas de abertura e do final são cantadas pelos dubladores dos personagens e têm uma letra muito bonitinha e platônica, principalmente a "Shadow's Love Song".

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

Falando em platônico, o título do anime tem a ver com o fato de William ser muito cético, um "realista", e procura sempre explicações científicas para os fatos sobrenaturais. Ou seja, ele é um aristotélico e rejeita tudo o que pareça abstrato, surreal e ideal. Obviamente, o mundo à sua volta, cheio de anjos e demônios, contraria a sua forma de pensar.

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

A magia steampunk de O Castelo Animado

Howl's Moving Castle (2004)

O Castelo Animado (Howl no Ugoku Shiro, 2004), é uma obra do grande cineasta japonês Hayao Miyazaki, baseada no livro Howl's Moving Castle (1986) da escritora britânica Diana Wynne Jones.

Sophie, uma garota de poucas ambições, fortuitamente encontra um belo mago, Howl, e também uma feiticeira, a Bruxa do Nada. A bruxa, enciumada, lança uma maldição em Sophie, transformando-a em uma idosa.

Howl's Moving Castle (2004)

Howl's Moving Castle (2004)
O mascote ígneo Calcifer.

Procurando um meio de livrar-se da maldição, Sophie parte para as montanhas e acaba encontrando o castelo de Howl, uma fantástica estrutura ambulante, com pernas mecânicas e movida a vapor. A presença de máquinas a vapor e outros equipamentos retrofuturistas em um cenário medieval que também conta com elementos mágicos cria uma peculiar combinação de fantasia e ficção científica steampunk.

A animação que mais chama atenção é justamente a do castelo, cheio de detalhes, partes móveis, um aglomerado de pedaços que se mantêm delicadamente juntos em funcionamento, dando ao edifício a aparência de um monstro, uma casa viva.

O responsável pelo funcionamento mágico deste castelo é uma chama viva e falante chamada Calcifer, uma das personagens mais interessantes da história, aliás. Calcifer tem um papel fundamental na trama, dada a sua relação mágica com o mago Howl.

Howl's Moving Castle (2004)

Howl's Moving Castle (2004)

Hayao Miyazaki é um pacifista e costuma dar um grande valor aos papéis femininos. Aqui não será diferente. Sophie é a personagem principal e é ela quem se envolve em toda a trama de modo a resolver os mistérios e maldições em que vários seres estão envolvidos, incluindo Howl. 

Miyazaki é generoso com as personagens e faz com que todas encontrem a redenção. Aqueles que estão amaldiçoados se curam, mas também os que amaldiçoam. Até mesmo a Bruxa do Nada, a princípio maligna e invejosa, se torna mansa e inofensiva. Howl é retratado como um jovem belo, de olhar gentil e que, embora forçado a usar seu poder em guerras, manifesta-se a favor da paz.

Howl's Moving Castle (2004)

Howl's Moving Castle (2004)

Temos, enfim, um belíssimo conto de fadas com a catarse que merece. Sim, com um final feliz. O desenho é bastante detalhista e delicado e a animação de alta qualidade, com o renomado padrão do Studio Ghibli. Tudo isto compõe uma história agradável, mágica, feita para encantar.

É possível notar também uma alegoria. Sophie, amaldiçoada pela velhice, redescobre a juventude no amor. Howl, por sua vez, desgastado pela guerra que o torna obscuro, é salvo pelo amor de Sophie, que o faz redescobrir sua criança, sua pureza interior, representada pelo coração do mago.

Também o castelo tem algo de alegórico. Ao longo da história ele vai sofrendo mudanças, se transformando. Chega a desfazer-se quase por completo, para então ser reconstruído com uma nova aparência. O castelo ilustra o ciclo na vida de Howl e de Sophie, de destruição e recriação, de fins e recomeços. Um ciclo que todos nós experimentamos de diversas maneiras.

Howl's Moving Castle (2004)

Howl's Moving Castle (2004)

Os ciclos da vida em Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera

Spring, Summer, Fall, Winter... and Spring (2003)

Este é um filme coreano e alemão lançado em 2003. A história se passa em um pequeno templo que flutua no centro de um lago, numa área isolada e bucólica.

Uma criança é educada por um velho mestre budista. Quando se torna adulto, tem de lidar com as paixões humanas e por um período se desvia da vida equilibrada que seu mestre ensinou, mas acaba retornando às origens e purgando os seus erros.

O filme explora o tema do sofrimento humano, o perigo das paixões e a libertação da alma através do caminho do dharma budista, e faz isto de uma forma fluente, delicada. Além disto, a estética é muito bela e há uma comunicação visual muito eloquente, cultivando o silêncio, contendo breves diálogos. Uma das personagens, por exemplo, só fala algumas palavras depois de 44 minutos de filme.

A linguagem visual é que expressa os sentimentos dos personagens e também a passagem do tempo. Isto se nota quando a paisagem muda e também muda o templo, que vai envelhecendo aos poucos, e os animais de estimação, que se sucedem, também denunciam a passagem dos anos, sem contar, claro, a aparência dos personagens.

De longe o personagem mais interessante é o velho mestre. Ele acompanha o sofrimento do discípulo, que se debate envolvo em conflitos, e demonstra uma compaixão de um Buda, sempre disposto a perdoar, sempre paciente, no aguardo que o discípulo encontre a sabedoria.

Certos fenômenos sutilmente estranhos tornam o mestre ainda mais interessante, como o fato dele conseguir seguir o discípulo mesmo depois que este leva o barco para longe do templo. Como o mestre faz para atravessar o lago? No final do filme há algumas pistas a respeito.

Por fim, como se deduz pelo título, o tempo passa de maneira cíclica, renovando-se, alcançando estágios de crise e de repouso, queda e ascensão, como na samsara budista, um eterno retorno.

Spring, Summer, Fall, Winter... and Spring (2003)

A arte do ceticismo

Question emoji

O raciocínio por trás do ceticismo é muito simples: ele se baseia na probabilidade lógica de qualquer coisa não ser aquilo que se acha ou se diz que é.

Ou seja, imagine um grupo de homens das cavernas que viviam aqui há milhares de anos. Um deles volta de uma caçada apavorado e diz que viu um rato do tamanho de um homem. Perguntado pelos companheiros da tribo como era o monstro, ele fala que não sabe ao certo porque viu apenas sua enorme sombra numa rocha.

O ancião da tribo então raciocina e elabora uma série de probabilidades:
- É possível que o homem tenha visto um rato gigante;
- É possível que ele tenha se confundido ao ver uma mera sombra, talvez até a própria sombra;
- E possível que ele esteja alucinado e não viu nada, mas acha que viu;
- É possível que ele tenha visto a sombra de um rato normal, mas todos sabem que sombras podem ser maiores que os objetos que as emitem. Vemos este efeito toda noite ao acendermos nossas fogueiras e elas projetam nossas sombras bem maiores nas paredes;
- É possível que o homem esteja simplesmente mentindo para brincar conosco ou por qualquer outro motivo.

Tendo, então, uma gama de possibilidades em sua mente, o ancião não vai tomar como certeza a afirmação do homem antes de investigar. Assim ele envia o homem e um grupo de caçadores armados para o local onde supostamente fora visto o rato gigante, de modo a averiguar a informação.

Esta é a atitude cética. Se na aldeia não houvesse um pensador cético, a tribo simplesmente acreditaria na palavra do homem e criaria um mito sobre um rato gigante que viveriam a temer sem nunca tê-lo visto.

O ceticismo não consiste em desacreditar das coisas, mas investigá-las antes de chegar a uma conclusão. O cético não pode aceitar como verdadeira uma afirmação, não importa quem a tenha proferido. Ele irá, porém, calibrar o nível de desconfiança dependendo da fonte.

Para o cético, a palavra de um leigo sobre determinado assunto merece alto grau de desconfiança, enquanto a palavra de um especialista é mais confiável. No entanto, mesmo o especialista não pode receber crédito irrestrito e sua afirmação também deve ser investigada, pois, sendo um ser humano como qualquer outro, o especialista pode errar ou mentir ou equivocar-se ou deturpar a informação por n motivos.

É este raciocínio que torna a religião vulnerável ao exame. O argumento geralmente usado pela religião para blindá-la de questionamentos é: "Este dogma foi dado por um Ser Superior e Perfeito, logo, não pode ser questionado". 

De fato, segundo a lógica, se há um ser perfeito, a sua informação será perfeita e nossa mente imperfeita será incapaz de confrontá-la. Todavia, sabemos que os dogmas, profecias, escrituras e quaisquer outras informações de cunho religioso nos chegam através de mensageiros humanos. Podem os mensageiros humanos ser infalíveis? Para o cético, não.

Logo, o cético não questiona Deus. Deus, enquanto conceito, é inquestionável por natureza. O que se questiona é o suposto mensageiro de Deus e a mensagem proferida por lábios humanos, escrita por mãos humanas e interpretada por teólogos humanos.

Esta atitude de desconfiança do cético não se restringe aos dogmas religiosos, mas também à ciência, à filosofia, a líderes políticos e ideológicos, etc. Dedicar uma fé cega a qualquer um destes ramos do saber é contrário à atitude cética.

Dito isto, é importante também salientar que a vida não é uma ciência exata e o cético não pode ser um matemático da vida, pois, ao contrário, ele reconhece a presença da imperfeição e da imprecisão no mundo, o que inclui os seus próprios pensamentos e sua própria desconfiança. 

É preciso equilibrar o ceticismo com um grau de tolerância à imprecisão para que seja possível viver sem se tornar uma "máquina de questionar tudo". Aí entra a boa-fé, a capacidade de aceitar uma informação sem questioná-la, dando um voto de confiança. 

Na vida cotidiana, nas coisas comuns do dia a dia, no relacionamento com as pessoas, precisamos mais de boa-fé do que de ceticismo. O ceticismo, por sua vez, funciona como uma vacina, um mecanismo preventivo que nos imunize contra a possibilidade de sermos completos trouxas que acreditam em tudo que os outros dizem. 

Deep Dark ou Minha musa inspiradora é um buraco na parede

Deep Dark (2015)

Gosto de encontrar de vez em quando alguma pérola de terror nonsense, como é o caso de Vagina Dentada (resenha aqui) e Crueldade Subconsciente (aqui). Pois bem, browseando o acervo de terror da Amazon Prime (que é bem maior que o da Netflix, diga-se de passagem), eis que me deparo com Deep Dark (2015).

É a história de um artista com bloqueio criativo (na verdade, sem talento mesmo) que se muda pra uma casa enquanto busca por inspiração. De repente ele se vê conversando com um buraco na parede. Seria um delírio? O fato é que o buraco acaba ajudando o cara na criação de uma peça de arte que obtém sucesso imediato.

A parceria do artista com o buraco na parede (que fala com uma voz de mulher) continua e suas obras atraem a atenção de todos. Logo se desenvolve um estranho relacionamento afetivo que começa com o homem acariciando e beijando o buraco, até rolar aquilo que você naturalmente iria prever: sexo.

Essa entidade que vive na parede se torna bem possessiva e ciumenta, chantageando o artista, trocando sexo e atenção pela sua ajuda criativa, mas a história caminha para um fim trágico quando a curadora de arte descobre o segredo do buraco na casa do artista e tenta arrancá-lo da parede com uma motosserra, o que acaba levando a criatura à morte.

Pois é, é aquele tipo de filme que no final você se pergunta: "O que foi que acabei de assistir?'. Por isso mesmo gostei.

Deep Dark (2015)

Loving Vincent, um filme literalmente feito com pinturas

Loving Vincent (2017)

O que de cara chama atenção em Loving Vincent (2017) é a estética adotada. Trata-se de uma animação, com frames pintados à mão por artistas simulando o próprio estilo do renomado pintor Vincent van Gogh. Isso mesmo, é um filme feito todo com pinturas, frame a frame!

A ideia é ótima e o resultado é bem original, além disso a trilha sonora de Clint Mansell (um grande parceiro dos filmes do Aronofsky, como Cisne Negro, Requiem for a Dream, The Fountain, etc) acrescenta um ar dramático à narrativa, mas a história em si é morninha. Vincent nem mesmo é o protagonista. É mais uma investigação sobre a morte dele do que um relato da sua vida. 

Loving Vincent (2017)

Loving Vincent (2017)

Vincent viveu discretamente até os 28 anos, quando então experimentou e se achou na pintura. Um caso curioso. Sem formação, sem ter despertado e desenvolvido o dom na infância, parece até que de repente foi tomado por uma inspiração, possuído por um espirito. Então por 8 anos pintou 800 quadros, vendendo apenas 1. 

É curioso o fato de o artista ter sido morto com um tiro na barriga. O "normal" é que suicidas atirem na própria cabeça ou no tórax. Por que na barriga? Foi um tiro acidental? Foi disparado por outra pessoa acidentalmente e ele quis poupá-la da punição? Ferido no campo, van Gogh retornou para casa, morrendo dois dias depois.

Loving Vincent (2017), making-of

Loving Vincent (2017), making-of

Hoje, Vincent van Gogh é geralmente conhecido como um artista que tinha problemas mentais, depressão, esquizofrenia (o que explicaria o fato de ter cortado a própria orelha), mas seus quadros são alegres, usam o azul claro e amarelo, cores de uma vibrante manhã ensolarada. 

Ele pintou muitos rostos, o que mostra que gostava das pessoas. Sua pinturas pareciam homenagens, fotos que tirava dos amigos, mas que acabaram se revelando peças únicas de arte e só devidamente reconhecidas depois da morte do artista.

O realismo mágico de Tales from the Loop

Tales from the Loop (2020-)

Tales from the Loop (2020-)

O sci-fi costuma ser um gênero que vem acompanhado de outro gênero auxiliar. Em muitos filmes, por exemplo, o sci-fi serve como cenário para uma história de ação ou aventura, como é o caso de Star Wars.

Um subgênero que se tornou bem comum em histórias de ficção científica é a distopia. O futuro é sempre sombrio, violento, corrompido, mas repleto de maravilhas tecnológicas. Um grande exemplo disto é a perturbadora Black Mirror (resenha aqui).

Tales from the Loop (2020), parte da nova safra de séries da Amazon, foge de todos estes clichês da ficção científica. A história não se passa em um mundo distópico, não há muita ação nem aventureiros disparando pistolas laser e, de certa forma, nem mesmo parece sci-fi.

A primeira temporada teve oito episódios, todos com acontecimentos relacionados a um dispositivo chamado Loop, uma esfera negra que pode ser comparada a alguma espécie de acelerador de partículas ou computador quântico. O Loop não é bem explicado, como todos os eventos bizarros da série, mas claramente é uma máquina capaz de manipular energias e até o próprio tempo.

O cenário é uma pacata cidadezinha que possui um laboratório em que cientistas estudam o misterioso Loop. A presença do aparelho na região faz com que aconteçam fenômenos estranhos e em cada episódio alguns habitantes da cidade vão se deparar com tais fenômenos.

Vemos, por exemplo, dois garotos que trocam de corpos; um casal de jovens namorados que descobre um aparelho que paralisa o tempo e assim vivem uma romântica e fantástica experiência, enquanto todo o resto do mundo está congelado; um homem viaja para um universo paralelo onde encontra sua outra versão, etc.

Duncan Joiner in Tales from the Loop (2020-)
A atuação deste garoto foi uma revelação na série, realmente dramática e convincente.

Cada episódio, portanto, é um pequeno conto envolvendo estas bizarras aventuras, mas nada é claramente explicado e os eventos sobrenaturais nem mesmo podem ser devidamente classificados como típicos de uma ficção científica. Em certos momentos, as histórias beiram a fantasia ou o realismo mágico. Acontecem coisas surreais na vida das pessoas e elas nem parecem muito chocadas com isto.

O casal que conseguiu congelar o tempo ou os garotos que trocaram de corpos lidaram com estas situações como se fosse uma brincadeira. A reação simplória dos personagens contribui para criar esse ar de realismo mágico, uma fantasia que parece apenas um acidente natural na vida das pessoas. 

Para completar a caracterização incomum desta série, a melancólica e bela trilha sonora e o rumo lento dos acontecimentos, sem ter eventos estrondosos, nem uma atmosfera sombria, como na série Dark, da Netflix (resenha aqui), faz de Tales from the Loop uma peça única e quase inclassificável de sci-fi/fantasia.

Simon Stålenhag
Esteticamente, o cenário da série é inspirado nas ilustrações do pintor Simon Stalenhag.