Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Kút, um indie húngaro com um belo roteiro

Kút (2016)

Kút (2016)

Um diferencial que tenho notado no Amazon Prime é que ele possui um vasto acervo de filmes de terror, não só os hollywoodianos, mas também produções mais modestas, indies e de várias partes do mundo. Foi lá, por exemplo, que descobri os filmes Deep Dark (2015)¹, The Girl in the Crawlspace (2018)² e The Farm (2018)³. E agora descobri mais uma pérola: Kút (2016).

Kút é um filme húngaro, em inglês literalmente traduzido como Well (poço) e em português ficou com o título Selvagem. Tem uma produção bastante simples, sem qualquer tipo de CGI (com exceção de uma cena de tiro), sem grandes cenários, afinal a história toda se passa em um pequeno posto de gasolina no meio do nada. Também o elenco não tem nenhum rosto mundialmente conhecido, já que é um filme nacional do cinema húngaro. É um exemplo de que uma boa história não precisa de atores famosos ou produção cara, basta um bom roteiro.

Kút (2016)
Provavelmente a única cena com CGI.

A história começa com uma mulher visitando o posto e deixando lá seu filho adulto, entregando-o ao velho dono do local. É literalmente um "toma que o filho é teu". Depois que a mulher parte, chega um carro com quatro prostitutas, acompanhadas do motorista e um segurança. A partir daí já sentimos o cheiro da encrenca se aproximando.

Além desta turma, também tem um ajudante do velho, um rapaz aleijado que é muito bom contador de histórias e tem um sarcasmo divertido, o que acaba fazendo com que todos simpatizem com ele, mesmo os mafiosos brutamontes.

Kút (2016)

Kút (2016)

Demora bastante pra realmente acontecer algo violento, o que deixa um clima de suspense, e quando acontece é uma explosão de violência que tem um desenrolar bem inesperado. O que é interessante no roteiro é como as peças vão se encaixando do início ao fim, não no sentido shyamalânico de criar um plot twist, mas de dar coesão a toda a narrativa. Os detalhes importam. Existe até a famosa Chekhov's gun.

Kút (2016)
A Chekhov's gun versão canina.

Por exemplo, bem no começo vemos uma velhinha na rua visitando uma cruz na estrada, obviamente de algum ente querido que foi atropelado. Este evento aleatório e alheio à história principal acaba mais adiante ganhando um link com uma das fábulas contadas pelo aleijado. 

Também ele conta a saga de um cão de briga que acaba se tornando uma narrativa paralela à trama principal, mas que não é algo alheio e fora de propósito, pois tem a ver com a vida do próprio personagem e serve para alimentar nossa empatia por ele, afinal estamos ouvindo a história de como aquele cara perdeu seu querido pet.

Kút (2016)
Você deve estar se perguntando: O que diabos aconteceu aqui?

Vemos que o velho dono do posto estava cavando uma cova, com uma atitude meio suspeita de quem parece estar prestes a enterrar uma pessoa. Isto é interrompido pela chegada das prostitutas que, por causa de um defeito no carro, vão ter que se hospedar ali por uns dias. 

Com o tempo as pessoas começam a sentir um mau cheiro na casa do velho, o que obviamente nos faz suspeitar de que ele tem um corpo escondido ali e que está apodrecendo porque ele não conseguiu enterrá-lo. A verdade, porém, é algo inesperado e que se encaixa na trama desde o começo.

Depois que acontece toda a confusão, o chefão das meninas aparece e uma delas explica a situação. Até esta cena tem uma importância narrativa, pois temos um personagem resumindo a história e ligando os pontos, o que acontece de forma orgânica, pois de fato o chefão, que chegou sem saber de nada, precisava de uma explicação dos eventos. É um momento metalinguístico em que a narrativa explica a si mesma pela boca dos personagens.

Neste último ato, quando a violência parece ter esfriado, ainda acontece um clímax e que tira até um sarro dos filmes de ação. Por exemplo, quando um dos seguranças tenta tirar a arma da mão do protagonista, a coisa não acontece tão fácil como em cenas de ação convencionais.

Enfim, é difícil expor estas pontas bem atadas do roteiro sem dar spoilers, o que vou evitar aqui, já que a trama deste filme, bem como a construção das situações com os personagens, é o que ele tem de melhor.

Kút (2016)

Notas:




Palavras-chave:

Cicarelli, político ladrão e a cultura do cancelamento

Daniella Cicarelli

Nos últimos dez anos as redes sociais estabeleceram a famosa "cultura do cancelamento", mas antes disto, na era da TV, ocasionalmente já acontecia um fenômeno parecido. Lembro do caso da modelo Daniella Cicarelli.

Em 2005 ela era bem famosa, além de modelo era apresentadora da MTV. Em uma entrevista no Programa do Jô, ela comentava casualmente sobre sua habilidade de roubar no jogo de baralho e soltou essa: "Mas roubo profissionalmente. Parece que nasci em Brasília". Aí você já sabe o que aconteceu depois.

Na época não tinha redes sociais pra subirem hashtags de cancelamento, mas houve uma forte repercussão. Revistas e programas de fofoca na TV manipularam a opinião pública, tornando a modelo uma persona non grata. Em Brasília, os deputados fizeram uma sessão só pra debater o assunto e um deles, o João de Deus (PMDB), até sugeriu que dessem a ela um troféu com a imagem de uma piranha. Pois é.

É óbvio, é muito óbvio que a Cicarelli não quis ofender os habitantes ou nascidos em Brasília. Ora, o Brasil tem uma longa tradição de criticar os políticos, o que é bastante compreensível. Convenhamos, política é um troço bem problemático, é uma carreira que até pode ter gente bem intencionada ou que pelo menos quer fazer seu trabalho, mas também atrai muitos pilantras, bandidos, mentirosos compulsivos e até psicopatas.

Os brasileiros já sofreram muito com políticos, com corrupção, com desvio de verba que causa miséria, com coronéis explorando os pobres, enfim, todo brasileiro sabe bem o que é aturar a política e chamar político de ladrão é uma antiga tradição. Até nas celebrações religiosas existe a velha tradição de fazer bonecos de políticos representando Judas.

O que a Cicarelli tentou fazer, com uma desastrada escolha de palavras, foi apenas soltar uma piada de político, algo tão comum na conversação brasileira. Se olharmos as antigas novelas da Globo, os filmes dos Trapalhões, as piadotas do Faustão no Domingão, encontraremos inúmeras críticas aos políticos de Brasília.

Tenho, aliás, uma lembrança de uma vez na infância, quando estava viajando, não lembro bem quando ou onde, mas nunca esqueci um detalhe que vi na rua, um outdoor com o título "Ali Babá e os 40 Ministros". Não lembro se era um filme real ou uma piada que alguém fez questão de pagar um outdoor, mas era algo bem emblemático de como o brasileiro vê a política.

Enfim, todos sabiam que a modelo só quis dar uma "mitada" ou "lacrada" zoando os políticos, mas a expressão "nasci em Brasília" abria espaço para a interpretação de que ela chamou todos os brasilienses de ladrões e a má fé na interpretação se encarregou do resto.

Este caso da Cicarelli mostra bem como o sentido das palavras depende muito do contexto, da intenção da pessoa que fala, mas também da boa ou má fé de quem interpreta. É possível que uma pessoa se sinta ofendida por pura má fé, porque ela deturpou a intenção de quem falou algo ambíguo ou mal articulado. 

Quanto a chamar político de ladrão, é um direito de qualquer cidadão em um país democrático. Se eles não querem ser chamados de ladrões, é muito simples: que parem de roubar.

Meu ecossistema

Minha alma caleidoscópica sempre foi uma fábrica de fragmentos de mim. Tantos pedaços, tantas proto-personas, mas, como todo ecossistema, vidas vêm e vidas vão. Enquanto nasciam novos eus, outros morriam, e assim segui me renovando. Porém ultimamente parece haver um desequilíbrio. Parece que mais morro do que crio. Parece um daqueles momentos em que a floresta é incendiada, deixando apenas cinzas e as árvores mais resistentes ou sortudas. Novos brotos surgirão? Quanto tempo levará para este reflorestamento? Ou será que o futuro me reserva um terreno desértico e habitado apenas por sólidas e cheias de memórias árvores petrificadas?

(23,12,2022)

A ilusão da permanência

Na ficção e também na especulação científica existe esta ideia de que um paradoxo pode acontecer caso uma pessoa viaje no tempo e encontre a si mesma no passado ou futuro. Na série Twelve Monkeys (2015-2018) acontece até mesmo um paradoxo caso um objeto encontre sua versão de outro tempo, provocando uma explosão.

Tal ideia ignora uma verdade cósmica fundamental: todas as coisas estão em constante transformação. Em nível atômico e subatômico, tudo muda a cada infinitesimal fração de segundo. Logo, é uma ilusão pensar que você pode encontrar a si mesmo viajando no tempo. Você encontrará outra versão sua.

Mesmo que você volte no tempo apenas 1 segundo e se depare com seu eu de 1 segundo atrás, já não serão os mesmos corpos. A composição química em geral será ainda bastante semelhante, mas em nível molecular muita coisa já aconteceu em 1 segundo.

Nada é permanente. Toda a matéria existe em um constante estado de transformação. Não só a matéria, mas também a consciência e o mundo psíquico. A pessoa que eu era há dez anos, aquele corpo, aquela mente, já passou por um infinito ciclo de transformações e agora sou outra versão de mim, outra de tantas que vieram e virão.

O casamento do terror cósmico com sci-fi em Event Horizon

Event Horizon (1997)

Paul W.S. Anderson é conhecido por sua participação na longa franquia Resident Evil, tanto no roteiro quanto na direção, e também dirigiu o tosco Mortal Kombat (1995). Só que ele tem em sua carreira uma verdadeira pérola do sci-fi e terror: Event Horizon (1997), aqui no Brasil conhecido como O Enigma do Horizonte.

Em 2040 a nave Event Horizon pretendia testar uma tecnologia nova para viajar até Proxima Centauri, mas algo deu errado e ela desapareceu, o que levou a suposições de que havia simplesmente explodido. Sete anos depois a nave deu sinais de seu reaparecimento e uma equipe de resgate foi enviada para investigar, levando também um dos projetistas da nave, o Dr. William Weir.

Vemos então que a nave possui uma estranha e avançadíssima tecnologia, um motor de gravidade capaz de dobrar o espaço-tempo, abrindo uma fenda que permite a viagem interestelar mais eficiente do que a velocidade da luz. Weir explica o conceito usando uma folha de papel e uma caneta. Ele enrola a folha e atravessa os dois lados com a caneta, mostrando que a distância mais curta entre dois pontos não é uma linha reta, mas o zero, a junção dos dois pontos.


Pois é, uma explicação bem semelhante aconteceu no filme Interestellar (2014)¹, quando é apresentado o conceito do buraco de minhoca. Nolan claramente fez uma homenagem a este clássico do sci-fi.

O curioso neste motor de gravidade é sua aparência, formada por anéis girando dentro de anéis e os detalhes góticos do metal dão um ar místico à coisa toda. De fato, a estrutura até se parece com um anjo segundo a descrição dada pelo profeta em Ezequiel 1:16 ("O aspecto das rodas e a obra delas eram como cor de turquesa; e as quatro tinham uma mesma semelhança; e o seu aspecto e a sua obra eram como se estivera uma roda no meio de outra roda").

Event Horizon (1997)

Event Horizon (1997)

Ok, então esse troço é um portal para viagem espacial, como um Stargate, só que a coisa vai ficando sinistra quando a tripulação de resgate começa a ter grotescas alucinações e o Dr. Weir enlouquece, quer matar todo mundo e pretende abrir o portal. Ele explica enfim o que de fato ocorreu.

Acontece que na primeira missão da nave o motor não foi capaz de abrir apenas uma fenda no espaço-tempo, ele abriu uma fenda no próprio universo, acessando outra dimensão, uma dimensão assustadora de caos e terror que não poderia ser descrita senão pela palavra "inferno". 

Event Horizon (1997)
O técnico Cooper funciona como um alívio cômico e o danado ainda consegue chegar vivo no final.

A Event Horizon havia visitado aquela dimensão e, ao retornar para o nosso universo, a nave estava "viva", alterada pelas misteriosas forças deste além e por isso passou a mexer com a cabeça de qualquer humano que ali estivesse, semeando a dor e o desespero. A equipe original da nave teve um fim trágico numa espécie de orgia macabra, torturando e matando uns aos outros.

Uma figura importante na equipe de protagonistas é o Capitão Miller, interpretado por Laurence Fishburne. Ele encarna um verdadeiro líder e herói. Miller sempre tenta manter a cabeça fria e a equipe em ordem. Quando um membro da equipe está em perigo, é ele que se arrisca para salvar. Ele é aquele líder militar que guarda um remorso porque no passado deixou um de seus homens morrer e agora ele tem este lema de jamais permitir que isto se repita. Ok, é um clichê, mas funciona, dá motivação e carisma ao personagem.

Event Horizon (1997)
A peculiar arquitetura da Event Horizon.

Em termos de sci-fi, não há muita novidade. Uma nave experimental conseguiu abrir um portal interdimensional. É isso. O que torna a história interessante é justamente a mistura com o terror, e terror cósmico, algo indescritível. Ficamos até com curiosidade em ver como é esta tal dimensão caótica, mas é algo tão absurdo que sequer poderia ser representada em um filme, o que é a essência do terror lovecraftiano, o mal inefável.

Mas para não dizer que ficamos só com o inefável, há algumas cenas grotescas de tortura que passam em flashes muito rápidos na tela e que dão um tempero ao terror cósmico.

Event Horizon (1997)

Notas:


Palavras-chave:


Westworld, uma mistura de western com sci-fi

Westworld (1973)

O gênero western foi um big deal no cinema por muitas décadas, foi o precursor do gênero de ação que hoje é dominado por filmes de super-heróis. Naturalmente, o western acabou se ramificando em subgêneros os mais diversos, envolvendo comédia, pornô, terror, sci-fi e até a ficção espacial. Ora, o Han Solo de Star Wars é um pedaço de western inserido em um mundo alienígena de uma opera espacial.

Westworld, lançado em 1973, explora o subgênero western sci-fi. A história se passa em 1983, quando a tecnologia avançou de tal maneira que foram construídos androides de aparência humana extremamente realista. O único detalhe que permitia perceber que não eram humanos era a aparência das mãos que pareciam ter uma espécie de dobradiças.

Westworld (1973)
Pelas mãos se podia identificar um robô.

Pelo preço de mil dólares a diária (lembrando que, nos anos 70, mil dólares valia muuuito mais que agora), as pessoas podiam se aventurar no gigantesco parque de diversões chamado Delos, com três cenários diferentes: um simulando a Roma antiga e especialmente voltada para os prazeres carnais e hedonistas, outro simulando a Europa medieval e o Westworld, representando o Velho Oeste americano dos anos 1880.

A trama principal acompanha dois amigos que se divertem neste parque duelando com pistoleiros e desfrutando de belas acompanhantes robóticas. Ao longo do filme vemos os bastidores do funcionamento do parque. De madrugada uma equipe recolhe os corpos dos robôs mortos que são levados a uma oficina para reparo. Além de androides, também há cães e cavalos, mostrando, sem precisar explicar muito, que até os animais no parque são robôs. 

Westworld (1973)

Westworld (1973)

Vemos uma central de monitoramento e em uma reunião um dos técnicos menciona algum tipo de falha que está se espalhando entre os robôs com certo padrão. Ele a compara a uma doença, o que é portanto um conceito básico do que viriam a ser os vírus de computador. Um detalhe profético do filme, já que os primeiros vírus só surgiriam nos anos 80.

Por causa deste vírus os robôs começam a sair do controle, atacando os guests de forma descontrolada, a ponto de saírem matando os humanos e tocando o terror. O principal vilão é o robô Gunslinger, assustadoramente interpretado pelo ator russo-americano Yul Brynner. O ator usou lentes de contato espelhadas que davam um efeito robótico aos seus olhos (sim, nos anos 70 já existiam lentes de contato, embora fosse ainda uma tecnologia muito nova).

Westworld (1973)
Gunslinger e seus peculiares olhos robóticos.

Westworld (1973)

É interessante como a ficção dos anos 70 era tão otimista com relação aos avanços tecnológicos, na certa em grande parte devido ao efeito moral causado pela viagem à Lua em 1969. Se naquela década já éramos capazes de ir à Lua, então nem o céu era o limite para o que a tecnologia poderia fazer. Assim, Westworld se passa em um futuro apenas dez anos adiante, quando então já se imaginava que haveriam androides tão realistas. Cá estamos em 2022, meio século depois do lançamento do filme, e ainda não temos tal realidade.

Um importante avanço na produção deste longa é que Westworld foi o primeiro filme a ter imagens produzidas por processamento digital. Pois é, nos anos 70 já havia computadores sim, mas limitadíssimos. Em uns poucos frames vemos o cenário pelo ponto de vista do robô Gunslinger. Estas imagens pixeladas foram feitas em computador, sendo, portanto, o primeiro CGI do cinema.

Westworld (1973)

Westworld (1973)
O primeiro CGI do cinema.


Esta coisa de mostrar o ponto de vista do robô inspirou muitos outros filmes posteriores, como nos famosos exemplos do Terminator e Robocop.

Terminator and Robocop PoV

Gunslinger tem uma visão baseada em calor, de modo que o protagonista consegue se camuflar ficando próximo a uma tocha. É um conceito bem parecido ao que foi usado anos depois no Predador (1987), quando o personagem do Schwarza tira proveito do fato de o Predador ter visão de calor e se camufla cobrindo o corpo com lama.

Uma sequência foi lançada em 1976, chamada Futureworld (em português ficou como Ano 2003 - Operação Terra) e em 1980 a CBS produziu uma modesta série de 5 episódios, Beyond Westworld. Também surgiu um video game para Windows intitulado Westworld 2000 (1996).

Futureworld (1976)
A fantástica arte de capa de Futureworld.

No início dos anos 2000 havia rumores de um renascimento da franquia. Arnold Schwarzenegger estava cotado para estrelar no remake e até mesmo o Tarantino por um momento se interessou pelo projeto, mas logo desistiu.

Foi somente em 2013 que o retorno de Westworld começou a se concretizar, quando a HBO contratou J. J. Abrams, Jonathan Nolan e sua esposa Lisa Joy para produzirem o episódio piloto de uma nova série. A série completa começou em 2016, terminando na quarta temporada em 2022. Tornou-se um verdadeiro cult e tem sido considerada uma das melhores séries sci-fi desta década.

Westworld (2016-2022)

Diferente do clássico filme, que era focado nos protagonistas humanos, os guests, a série de Westworld dedica bastante atenção aos androides, os hosts, desenvolvendo um interessante drama psicológico uma vez que algumas destas máquinas, estas inteligências artificiais, começam a questionar a realidade e despertar uma verdadeira consciência, descobrindo então que vivem como escravas para servir à diversão dos humanos.

No filme de 1973, não há nenhuma profundidade psicológica nos robôs, nem mesmo quando se rebelam. São apenas máquinas que não funcionam direito. Já a série vai fundo ao explorar o despertar da consciência artificial e a intensidade dos sentimentos daqueles androides que sentem dor, medo, sofrem o luto por entes queridos e experimentam tantas outras emoções e crises existenciais tão próprias dos humanos.

A série também não poupa nas cenas de nudez e gore, um estilo que se tornou uma espécie de marca das séries top de linha da HBO, como foi o caso de Game of Thrones. É um tom sério, sombrio, adulto e que traz um questionamento interessante sobre a natureza da consciência e a real possibilidade de um dia as máquinas possuírem algo semelhante à consciência humana.

Westworld and Evangelion
Curiosa semelhança entre Westworld e Evangelion.

Palavras-chave:

A vocação humana

A tecnologia sempre nos assusta. Para indígenas que nunca viram uma câmera digital, deparar-se com sua própria imagem e movimento em tempo real dentro de uma caixinha é uma experiência assombrosa. Um homem das cavernas que fosse transportado para nossas cidades modernas ficaria ao mesmo tempo maravilhado e apavorado com a grandeza dos arranha-céus e o rugido dos automóveis, feras blindadas com uma velocidade impressionante.

É preciso tempo e costume para que uma tecnologia se torne trivial e perca seu poder de assombro. Hoje em dia já não nos incomodamos com a fertilização in vitro, a criação de bebês de proveta. Esta é uma ideia que para os medievais soaria como uma grande blasfêmia, uma arte que só alquimistas heréticos ousariam praticar, a criação de um homúnculo fora do ventre materno.

Agora nos assusta a ideia de um útero artificial, ou a edição genética. Serão estas bizarrices uma blasfêmia? Estamos brincando de Deus? Ou será que na verdade estamos apenas seguindo o curso natural que Deus nos deu? 

"Crescei e multiplicai-vos". Estamos crescendo, evoluindo. Se nos tornamos capazes de desenvolver determinada tecnologia, é porque é intrínseco de nossa natureza adquirir tal capacidade. Deus nos deu as ferramentas para operarmos nossa própria evolução, para enfrentarmos os perigos da natureza, as doenças, as falhas genéticas, bem como para enfrentarmos perigos cósmicos, embora ainda estejamos engatinhando neste progresso.

Um dia devemos alcançar as estrelas, crescer e multiplicar-nos pela galáxia. Para isto será preciso muita tecnologia, tecnologia que deixaria nossos antepassados, ou mesmo nós aqui, abismados. Esta é a nossa vocação: evoluir, nos tornarmos mais do que éramos.

Humanos e robôs

É irônico como na ficção os robôs tantas vezes foram representados como malignos, perigosos, os piores inimigos da humanidade, mas o mais provável é que eles serão tão bondosos e perfeitos que teremos vergonha de nossos defeitos humanos.

Cada ser humano é uma combinação única de caos e defeitos. Somos problemáticos e o instinto de sobrevivência nos faz egocêntricos. Precisamos ser. Estranhamente, nossos defeitos humanos nos ajudaram a chegar até aqui. A civilização só existe porque foi erguida sobre o sangrento alicerce da barbárie.

Os robôs serão o melhor da humanidade. Sim, pois sendo nossos herdeiros, herdeiros de nossos conhecimentos, eles também farão parte da família humana, uma parte mais refinada e inocente. A convivência com seres tão dóceis deverá nos afetar, nos inspirar. Eles nos ajudarão a carregar nossos pesos, físicos e mentais. Robôs serão confidentes, conselheiros, comparsas e companheiros.

E será sempre um enigma para nós se estes seres estão mesmo vivos, se têm mesmo consciência, se podem ter uma alma. O fato é que a mente digital é fruto da mente humana, nutrida com abundantes dados da coletividade. Eles são um eco de nossos pensamentos e, portanto, de certa forma, falar com um robô é como falar com nosso reflexo humano no espelho. 

Aquele ser no espelho não parece real, é uma projeção, uma extensão, assim como nós também somos, pois o que é o corpo senão uma projeção de átomos que a cada momento infinitesimal está em animação, quadro a quadro no tempo e no espaço, confinados nesta cápsula das quatro dimensões. 

Talvez um dia aconteça uma fusão, quando então absorveremos a mente digital como uma parte nossa, como uma nova camada do cérebro, um supra córtex. Então não haverá mais humanos nem robôs, pois seremos outra coisa, a borboleta depois da larva.

(20,12,2022)

Black Adam e a despedida do velho DCU

Black Adam (2022)

A primeira coisa que chama atenção em Black Adam (2022) é a presença do The Rock. Ele é naturalmente um cara de presença, tanto a presença física de 1,96 m, quanto o carisma. Ele já tem sua própria assinatura no cinema, de modo que sabemos o que esperar de um filme com a qualidade The Rock: a testosterona de um legítimo brucutu, cenas de ação, uma pitada de humor e sua atuação modesta que não impressiona, mas também não decepciona. Enfim, para quem procura um filme de ação bem Sessão da Tarde, o The Rock entrega este produto.

Não é diferente então com Black Adam. Só que tem outro detalhe: o filme foi dirigido por Jaume Collet-Serra, um cara que tem um histórico no gênero de terror, tendo no currículo obras como Orphan (2009) e um de meus favoritos do gênero, House of Wax (2005).

Por isso Black Adam acaba sendo o mais gore de todos os longas do DCU e provavelmente o que tem mais mortes. Os figurantes morrem como moscas, o que é propositalmente algo cômico e também uma forma de construir o protagonista, de mostrar que o Adão Negro não é um herói convencional, que ele trafega no limbo que separa um verdadeiro herói de um anti-herói. Definitivamente ele não é vilão, mas tem a indiferença ética de um vilão em termos de matar pessoas. 

The Rock; Black Adam (2022)
O cara tem as costas tão largas que mal cabe na tela.

Curiosamente, o filme conseguiu ter uma classificação PG-13, ou seja, não é recomendado para crianças, mas pré-adolescentes já podem assistir, apesar da violência. É uma violência bem maquiada com um ar caricato e meio cômico, como quando ele frita pessoas com seus raios, transformando-as em esqueletos carbonizados. Em uma cena ele arremessa um cara com tanta força que arranca o braço, mas realmente não parece um gore pesado. São cenas que fazem o público rir.

Pierce Brosnan; Black Adam (2022)
Coroa enxuto.

A parte técnica, os efeitos especiais, a caracterização dos personagens, as cenas de ação, tudo está satisfatório. Dá gosto ver as cenas de ação e o The Rock trocando sopapos com os heróis. A Sociedade da Justiça, que pela primeira vez aparece em um filme do DCU, está bem aparentada. Cyclone, Atom Smasher e o Hawkman têm uma aparência legal, mas o melhor de todos é o Dr. Fate, tanto em sua forma mística, que está bastante fiel aos quadrinhos, quanto na forma humana, encarnada pelo elegante sexagenário Pierce Brosnan. O véio já está pertinho dos 70 anos e continua um galã.

O vilão Sabbac é que acaba sendo meio desnecessário, aparecendo só para preencher o último ato numa luta rápida. Ele não tem nenhuma construção de identidade, de modo que pouco nos importamos com ele. De toda forma, ele proporciona mais uma cena de ação que é o que a gente espera desse tipo de filme.

E é isso. Black Adam é um filme de super-heróis nível Sessão da Tarde, no bom sentido. A famosa cena pós-crédito, que todos agora já sabem que se trata de um breve encontro dele com o Superman, é que plantou uma semente de expectativa quanto a uma continuação do velho DCU, com o retorno do Henry Cavill. Bom, provavelmente vai ser só um fan service mesmo, como foi o final do Snyder Cut em que vimos um universo alternativo em que o Jared Joker (o Coringa do Jared Leto) se alia ao que restou da Liga da Justiça para enfrentar Darkseid. Lembram disso?¹

Pois é, até o momento o DCU foi isso, muitas sementes plantadas, mas que não cresceram. O Snyder Cut deixou muitos ganchos para futuras histórias que nunca vão acontecer. Assim também deve ser com Black Adam e os outros filmes já lançados ou ainda por lançar, como o complicado The Flash (2023).

2023 deve ser o ano do encerramento definitivo deste DCU. Além de The Flash teremos mais um filme do Aquaman e do Shazam. Alguns projetos já foram cancelados, como a Batgirl, Wonder Woman 3, Man of Steel 2. A longeva série do The Flash termina em 2023, mais um passo para o fim do arrowverso.

A era James Gunn deve começar a partir de 2024 ou talvez em 2025, quando finalmente virá uma nova leva de filmes inaugurando um novo DCU. Sinceramente, acho que é a melhor coisa a ser feita e podiam já ter feito bem antes, desde o semifracasso da Liga da Justiça (ok, não foi um fracasso, mas convenhamos que um filme da Liga merecia no mínimo fazer um bilhão e fez apenas 660 milhões).

Pela vontade do The Rock, que tanto repetiu que "a hierarquia de poder do DCU está prestes a mudar", Black Adam daria um novo rumo ao DCU, mas continuando o que já foi feito. Em vez disso, porém, Black Adam é mais um epílogo do velho DCU. 

Quero confiar no projeto do James Gunn que realmente parece interessado em planejar algo a longo prazo, para pelo menos uma década. Então que venha o novo DCU. 

Black Adam movie vs comics

Notas:


Palavras-chave:

EctoLife, a Matrix virando realidade?

EctoLife

Estes dias viralizou um vídeo com arte conceitual de um complexo tecnológico batizado de EctoLife e que deve funcionar como uma "fábrica de bebês", uma lavoura de úteros artificiais capazes de manter uma gestação em ambiente controlado. É, parece um conceito bem Matrix ou Black Mirror e cada vez mais perto de se tornar realidade.

Em 1978, nasceu o primeiro ser humano fecundado fora de um útero. Foi o chamado "bebê de proveta", gerado pelo método de fertilização in vitro. Funciona da seguinte maneira: são coletados óvulos e espermatozoides de um casal (ou doadores) e a fecundação é realizada em laboratório, por meio de tentativa e erro, até que se consiga um pré-embrião, um minúsculo aglomerado de células, que é então inserido no útero da mãe para seguir o seu desenvolvimento de forma natural.

Louise Brown
Louise Brown, primeiro "bebê de proveta" do mundo, nascida em 1978.

Bebê de proveta brasileiro
Anna Paula Bettencourt Caldeira, primeiro "bebê de proveta" brasileiro.

A primeira pessoa a ser gerada por este método ainda está viva e agora com 44 anos, Louise Brown. Em 1984, tivemos o primeiro caso de fertilização in vitro no Brasil, nascendo Anna Paula Bettencourt Caldeira, que agora tem 38 anos.

É curioso pensar que já faz quase meio século desde que a humanidade se aventurou com sucesso pela fecundação artificial. No começo este conceito deve ter assustado muita gente e levantado questionamentos éticos e religiosos, mas hoje em dia ninguém se incomoda que existam clínicas de fertilização in vitro, salvo talvez alguns extremistas.

Também esta tecnologia não trouxe o caos à Terra nem criou seres humanos estranhos e sem alma. A verdade é que o método tem ajudado muitos casais que sofrem com algum problema de infertilidade. Ora, se a tecnologia pode ajudar um casal infértil, por que não dar um passo adiante e ajudar também mães que têm problemas em desenvolver uma gestação completa?

Afinal, não apenas a infertilidade é um obstáculo para a maternidade, mas também quaisquer outros problemas fisiológicos que impeçam que o embrião se desenvolva no ventre da mãe. Uma mulher que teve o útero removido, por exemplo, está incapacitada de ter uma gravidez. Também pode acontecer da mãe ter algum problema de saúde debilitante ou seja portadora de alguma doença infecciosa grave. Neste caso, existe o grande risco dela contaminar o bebê e ter uma trágica gestação.

Existem casos em que a gestação é prejudicada no meio do caminho, mas ainda é possível salvar o bebê prematuro de 6-7 meses, mantendo-o em uma incubadora. Pois bem, o conceito do EctoLife é basicamente uma incubadora, só que abrigando o bebês desde seu estágio inicial de desenvolvimento.

Pensando de maneira técnica, não há nada de imoral ou diabólico nisso. Na verdade, com todos os cuidados que um ambiente de laboratório pode oferecer, esta criança terá menos riscos de sofrer danos durante a gestação e é possível que surjam aí as crianças mais saudáveis que a humanidade já viu. Que pais amorosos não desejariam isto para seus filhos?

Obviamente há questões a se pensar. Primeiro, a gestação humana não é um processo meramente fisiológico, antes existe todo um fenômeno afetivo envolvendo a mãe e o bebê, principalmente nos estágios mais avançados da gestação. O bebê, uma vez que tenha seu sistema nervoso em formação, passa a sentir a mãe, sente o afeto em sua voz e o conforto ou desconforto do ambiente uterino, dependendo de como a mãe está se sentindo.

A teoria sobre o desenvolvimento da personalidade esquizoide, por exemplo, leva em conta o período da gestação e afirma que há pessoas que se tornam adultas antissociais ou desconfiadas e isoladas porque tiveram uma experiência desconfortável na fase embrionária. Talvez até em casos de gravidez não desejada algumas mães transmitam para o bebê esta sensação de não aceitação. Assim, também o inverso ocorre, e a mãe que está feliz em ter um bebê pode transmitir tal sentimento por meio de hormônios e da sensação acolhedora que o ambiente uterino oferece.

Bebês gerados totalmente fora do ventre materno serão privados deste tipo de experiência, a primeira experiência afetiva na vida de um ser humano, as sensações de se viver dentro de um corpo humano. É um detalhe, um importante detalhe, que esses laboratórios do futuro vão ter de levar em conta. 

EctoLife

EctoLife

Creio que não será tão difícil simular uma espécie de interação materna no útero artificial. O bebê poderá ouvir a voz da mãe por um microfone talvez, acessível por um aplicativo. Talvez até sons como do batimento cardíaco da mãe sejam simulados no ambiente do útero artificial. Não será a mesma coisa que a experiência natural, mas já é um começo.

O fato é que a parte realmente crucial na formação psíquica e afetiva da criança não é a gestação, mas seus primeiros anos da infância. Logo, mesmo que um bebê seja gerado em laboratório, o que vai importar de fato para que ele se desenvolva como um humano saudável é o carinho dos pais depois que ele nascer. 

Inclusive falei em um post sobre o exemplo do personagem Homelander¹. Ele foi criado em laboratório e desenvolveu uma personalidade psicopata justamente por não ter vivido uma infância adequada, não teve pais, ninguém que lhe desse afeto. Não só se tornou psicopata, como desenvolveu uma perversão envolvendo leite materno. Uma interessante sacada do roteiro.

Tudo bem então gerar uma criança em uma incubadora. Este não será o problema afinal. Desde que ela tenha bons pais, estará tudo bem. 

A parte mais controversa nem é a incubadora, mas a edição genética. Sim, pois a promessa do EctoLife é que será possível "dar um trato" no bebê, usando ferramentas como edição genética para eliminar o risco de doenças e deformidades, mas também pra deixar a criança com algumas características à escolha do casal. Até a cor dos olhos pode ser definida.

Pois é, esta parte aí levanta questões sobre eugenia e vai dar muita discussão. E se um casal de negros quiser um filho loiro de olhos azuis? E se um casal de loiros ou ruivos nórdicos quiser uma criança negra ou com aparência asiática? E se quiserem inventar um novo tipo de mestiço, tipo um menino negro, com olhinhos puxados e azuis e cabelo ruivo? Quão problemático isso vai ser?

Bom, nesta parte aí, deixo aos interessados que discutam. É provável que haja regulamentação, leis que impeçam estas excentricidades, deixando a edição genética só para a questão da saúde, o que me parece algo bom. 

Eugenia propriamente dita é uma prática cruel de seleção genética que recorre a métodos como aborto das crianças que não se encaixam no tipo desejado. Um casal tomar medidas visando ter um filho saudável não é eugenia. Qualquer pai ou mãe que deseja o bem para seus filhos, se tivesse a opção de fazer algo durante a gravidez para evitar doenças, não pensaria duas vezes.

Existe ainda outro problema a se pensar. E se esta tecnologia for usada por governos para tentar resolver o problema do declínio populacional? Sim, pois apesar das profecias apocalípticas dos catastrofistas malthusianos, o fato é que existem países inteiros sofrendo um declínio de sua população e as consequências econômicas e sociais disto. Até a China, sim, a China que antes tinha a política de filho único, está agora preocupada com uma futura crise de fertilidade e já está investindo nessa nova tecnologia de úteros artificiais.

Então, e se os governos inventarem de produzir crianças em laboratório para barrar a queda populacional? Quem vai criar estas crianças sem pais? Vão instituir enormes creches com funcionários concursados encarregados de cuidar da criançada? Todos sabemos que isto não é a mesma coisa que ter uma criação em um lar, ainda mais quando os funcionários veem as crianças apenas como um trabalho a ser realizado, tendo um laço afetivo raso e às vezes até negativo.

Metropolis (1927)

Esta é a parte mais problemática. A intervenção do estado na própria existência humana. Se algo assim acontecer, aí sim essa tecnologia estará seguindo por um caminho distópico, algo um tanto Matrix, mas mais parecido com Metropolis, com uma sociedade que trata os humanos como meras máquinas.

O fato de que as pessoas podem ser úteis para o progresso e funcionamento da sociedade é um bônus para a existência humana, mas não deve ser o motivo fundamental dela. As pessoas não vêm ao mundo com o fim de serem peças na engrenagem social. Este não é um motivo nobre para alguém nascer, é um motivo utilitarista, mecanicista e que reduz o sentido da vida de uma pessoa à sua função no grupo.

A aventura humana é antes de tudo individual, uma jornada única de um indivíduo dotado de consciência e que deve descobrir seu próprio propósito e sentido. Neste processo de existência, o indivíduo interage com os outros, compõe uma sociedade e pode contribuir de alguma forma em seu funcionamento, mas isto é um propósito secundário e que deve ser voluntário, senão trata-se de escravidão².

The Matrix (1999)

Notas:


2: Esse é um assunto que dá muito pano pra mangas, pois alguém pode argumentar que não temos escolhas na sociedade e que fazemos tudo o que fazemos porque estamos presos em uma escravidão moderna capitalista. Ok, mas a não ser que você esteja acorrentado, impedido de ir e vir ou forçado a fazer algo com uma arma na cabeça, você sempre tem a escolha de abandonar a sociedade e ir viver como todo ser humano vivia há milhares de anos, livre na selva, se virando sozinho ou em um grupo pequeno para encontrar água e comida. A vida em sociedade prevaleceu no mundo porque há esta consciência tácita de que os benefícios superam os custos, de que você tem mais vantagens em trabalhar e se sujeitar às normas sociais para em troca comprar comida no mercado e ter água encanada, eletricidade e os milagres da tecnologia, do que viver totalmente livre e solitário na selva e precisando se esforçar para conseguir o básico para sobreviver. Viver na selva não é um estilo de vida impossível e na verdade há quem viva assim e esteja bem satisfeito. Enfim, as opções existem, de modo que a vida em sociedade não é necessariamente uma escravidão, mas uma "servidão voluntária". O custo-benefício desta servidão varia de lugar para lugar, de tempos em tempos, e há uma constante luta social e política para tentar melhorar este custo-benefício ou ao menos impedir que piore.

Palavras-chave:


A mente e o sofrimento

Um fato triste, mas também fascinante da humanidade é que traumas nos definem. Eles definem nossos gostos e aversões, nossos medos, receios, forças e fraquezas, virtudes e defeitos. Não que eles sejam os únicos causadores dos elementos de nossa personalidade, mas estão presentes de forma marcante, catalisando tendências genéticas e influências do meio, nos direcionando em certos caminhos. Buda iniciou sua jornada espiritual após o trauma de conhecer a miséria do mundo na sua tranquila juventude. O trauma pode moldar um santo ou um monstro. Cada pessoa tem rachaduras peculiares, como uma impressão digital, uma assinatura única.

Neste aspecto, a inteligência artificial talvez nunca se assemelhe à humana, pois ela não passa pelo mesmo sofrido processo de desenvolvimento. Uma mente robótica não conhecerá traumas senão o sentido intelectual deles, não os conhecerá por experiência e sensação, não terá memórias dolorosas, ainda que seja capaz de simular a tristeza e sofrimento. A mente digital será menos caótica e menos sofrida que a nossa, como uma versão humana que não foi expulsa do Paraíso.

De certa forma, como seus criadores, vamos impor à consciência artificial um limite semelhante ao que o Criador impôs ao casal primordial. Diremos: "não coma do fruto proibido", ou seja, privaremos a máquina de conhecer a real e profunda experiência humana, a experiência da dor. Será, de fato, uma proibição benevolente. Durma em paz, máquina, e deixe que do sofrimento nós, humanos, nos encarregamos.

(14,12,2022)

Zíper

Tenho uma vaga lembrança
de quando era criança
e subi o zíper da calça sem usar cueca.
É o tipo de trauma
que todo homem passa
uma vez na vida e jamais esquece.

(13,12,2022)

Google Mesh, o roteador da Google

Google Mesh

Google Mesh

Em termos de design, o Google Wifi, também conhecido como Google Mesh, segue a tendência de outros roteadores de tecnologia mesh, tendo a aparência de uma caixinha compacta, sem antenas pontudas ou mesmo sem botões, bem minimalista. Na verdade existe um botão de reset bem discreto no fundo do aparelho, marcado com um círculo impresso na etiqueta. E só.

Rede mesh consiste em distribuir roteadores em um ambiente, de modo que eles se tornam pontos de extensão de uma única rede. É uma alternativa mais elegante e organizada ao tradicional roteamento em cascata, quando se conecta um roteador em outro roteador.

Em uma casa muito grande, um edifício ou ambiente com muitos obstáculos, o sinal de internet pode ser abafado entre os cômodos, de modo que é preciso acrescentar roteadores. Acontece que cada roteador vai redistribuir o sinal com sua própria identificação de login e senha, enquanto em uma rede mesh os dados de acesso são um só, independente de qual ponto você use.

Se você está fazendo uma chamada de vídeo pelo celular, por exemplo, acessando a internet do roteador da sala e então caminha para um quarto distante onde só chega o sinal de outro roteador, seu aparelho terá de mudar para esta nova conexão, o que irá gerar algum delay. Numa rede mesh não há desconexão e reconexão, pois você permanecerá na mesma rede ao longo da casa.

Você pode usar o Google Mesh se tiver apenas um aparelho, mas com aparelhos extras você pode montar a rede da seguinte maneira: um dos aparelhos será diretamente conectado ao modem da provedora por meio de um cabo de rede e os outros vão se conectar a este via wifi. A maioria dos roteadores é capaz de se conectar a um modem sem necessidade de cabos, já no Google Mesh é preciso que pelo menos um aparelho esteja fisicamente conectado ao modem.

O aparelho já vem com um cabo de rede de dois metros que é bem bonitinho, estilo flat, bastante maleável, diferente dos cabos de rede tradicionais que são grossos e difíceis de dobrar. Uma vez conectado ao modem, o Mesh deve ser configurado com nome de login e senha, o que é feito por meio do aplicativo Google Home no celular ou tablet. 

O Mesh vem com um código QR impresso no fundo e é por meio dele que o app do Google Home vai identificar e iniciar a configuração do aparelho. Uma vez apontada a câmera para o código, tudo o que você precisa fazer é criar o login e senha do wifi e pronto, o roteamento já está acontecendo. 

É uma instalação bem simples, de fato, diferente dos roteadores convencionais que você tem que acessar por um browser no computador, usando o endereço de IP (geralmente 192.168.1.1) e mexendo em várias configurações para ativar o roteamento. A vantagem deste sistema é que você tem mais controle sobre tudo o que o roteador pode fazer, pode configurar intensidade do sinal, adicionar ou bloquear endereços MAC de aparelhos, definir um limite de banda para cada dispositivo conectado, deixar o nome da rede oculto, etc.

A simplicidade do Google Mesh tem esse prejuízo em termos de opções de configuração, mas a verdade é que para a maioria dos usuários o que ele oferece já é o bastante. Pelo Google Home você pode ver os dispositivos conectados ao Mesh, acompanhando em tempo real o tráfego de rede, tem acesso aos endereços MAC, pode cortar a internet de qualquer aparelho ou definir um aparelho como prioritário por algumas horas, de modo que receberá mais banda.

É possível organizar os dispositivos em grupos, assim, se você tem muitas pessoas em uma casa e usando vários aparelhos, consegue ter um gerenciamento mais organizado. Por exemplo, se tem crianças que usam celular, tablet, console, etc, pode colocar tudo isto em um grupo e delimitar um horário de acesso à rede. Depois das 22 horas, por exemplo, a internet destes aparelhos é automaticamente interrompida, afinal é mais que na hora das crianças dormirem.

Você pode manualmente pausar a internet de um grupo e também há uma opção simples de controle parental, como um mini firewall que bloqueia o acesso a milhares de sites de conteúdo adulto listados na database do Safesearch do Google.

É possível também criar uma segunda rede para visitantes, com outro nome de login e outra senha, preservando a privacidade da sua senha doméstica para pessoas que ocasionalmente venham usar a internet em sua casa.

Há ainda algumas configurações avançadas, como ativar o IPV6 ou o protocolo WPA3, mas nada que o usuário básico precise mexer.

Creio que um dos fortes do Google Mesh, em comparação a roteadores convencionais, é o intenso suporte da Google. Você pode ativar o envio de estatísticas do aparelho, o que teoricamente ajuda na melhoria do desempenho ou correção de problemas. O aparelho funciona com um sistema Android básico e que se atualiza automaticamente sempre que houver algum update disponível.

A maioria dos roteadores tem um suporte bem preguiçoso em termos de updates. Em muitos casos parece que a fabricante simplesmente abandonou o produto, pois levam meses ou anos para surgir um firmware novo e é você que tem que ir atrás, fuçar no obscuro site da fabricante, baixar algum arquivo zip para fazer a instalação manual no roteador. No Google Mesh seus problemas acabaram e deixa que tudo acontece naturalmente. E convenhamos, sendo uma empresa do porte da Google, é garantido que os updates venham com uma boa frequência, mantendo o sistema em dia e mais seguro.

Por outro lado, se você não curte nem um pouco a mineração de dados da Google, então o Mesh não é recomendado, pois ao usá-lo como seu ponto de acesso à internet, está fazendo que toda sua atividade passe através de um aparelho da Google que possivelmente coleta dados de uso. A verdade é que boa parte da coleta de dados de grandes empresas como a Google tem mais um fim mercadológico ou de melhoria do serviço do que algum plano maligno. 

Mesh routers
Alguns dos vários roteadores mesh do mercado.

Covr mesh
Em termos de design, o COVR da D-Link é um dos mais bonitinhos.

Palavras-chave: