Estes dias viralizou um vídeo com arte conceitual de um complexo tecnológico batizado de EctoLife e que deve funcionar como uma "fábrica de bebês", uma lavoura de úteros artificiais capazes de manter uma gestação em ambiente controlado. É, parece um conceito bem Matrix ou Black Mirror e cada vez mais perto de se tornar realidade.
Em 1978, nasceu o primeiro ser humano fecundado fora de um útero. Foi o chamado "bebê de proveta", gerado pelo método de fertilização in vitro. Funciona da seguinte maneira: são coletados óvulos e espermatozoides de um casal (ou doadores) e a fecundação é realizada em laboratório, por meio de tentativa e erro, até que se consiga um pré-embrião, um minúsculo aglomerado de células, que é então inserido no útero da mãe para seguir o seu desenvolvimento de forma natural.
Louise Brown, primeiro "bebê de proveta" do mundo, nascida em 1978. |
Anna Paula Bettencourt Caldeira, primeiro "bebê de proveta" brasileiro. |
A primeira pessoa a ser gerada por este método ainda está viva e agora com 44 anos, Louise Brown. Em 1984, tivemos o primeiro caso de fertilização in vitro no Brasil, nascendo Anna Paula Bettencourt Caldeira, que agora tem 38 anos.
É curioso pensar que já faz quase meio século desde que a humanidade se aventurou com sucesso pela fecundação artificial. No começo este conceito deve ter assustado muita gente e levantado questionamentos éticos e religiosos, mas hoje em dia ninguém se incomoda que existam clínicas de fertilização in vitro, salvo talvez alguns extremistas.
Também esta tecnologia não trouxe o caos à Terra nem criou seres humanos estranhos e sem alma. A verdade é que o método tem ajudado muitos casais que sofrem com algum problema de infertilidade. Ora, se a tecnologia pode ajudar um casal infértil, por que não dar um passo adiante e ajudar também mães que têm problemas em desenvolver uma gestação completa?
Afinal, não apenas a infertilidade é um obstáculo para a maternidade, mas também quaisquer outros problemas fisiológicos que impeçam que o embrião se desenvolva no ventre da mãe. Uma mulher que teve o útero removido, por exemplo, está incapacitada de ter uma gravidez. Também pode acontecer da mãe ter algum problema de saúde debilitante ou seja portadora de alguma doença infecciosa grave. Neste caso, existe o grande risco dela contaminar o bebê e ter uma trágica gestação.
Existem casos em que a gestação é prejudicada no meio do caminho, mas ainda é possível salvar o bebê prematuro de 6-7 meses, mantendo-o em uma incubadora. Pois bem, o conceito do EctoLife é basicamente uma incubadora, só que abrigando o bebês desde seu estágio inicial de desenvolvimento.
Pensando de maneira técnica, não há nada de imoral ou diabólico nisso. Na verdade, com todos os cuidados que um ambiente de laboratório pode oferecer, esta criança terá menos riscos de sofrer danos durante a gestação e é possível que surjam aí as crianças mais saudáveis que a humanidade já viu. Que pais amorosos não desejariam isto para seus filhos?
Obviamente há questões a se pensar. Primeiro, a gestação humana não é um processo meramente fisiológico, antes existe todo um fenômeno afetivo envolvendo a mãe e o bebê, principalmente nos estágios mais avançados da gestação. O bebê, uma vez que tenha seu sistema nervoso em formação, passa a sentir a mãe, sente o afeto em sua voz e o conforto ou desconforto do ambiente uterino, dependendo de como a mãe está se sentindo.
A teoria sobre o desenvolvimento da personalidade esquizoide, por exemplo, leva em conta o período da gestação e afirma que há pessoas que se tornam adultas antissociais ou desconfiadas e isoladas porque tiveram uma experiência desconfortável na fase embrionária. Talvez até em casos de gravidez não desejada algumas mães transmitam para o bebê esta sensação de não aceitação. Assim, também o inverso ocorre, e a mãe que está feliz em ter um bebê pode transmitir tal sentimento por meio de hormônios e da sensação acolhedora que o ambiente uterino oferece.
Bebês gerados totalmente fora do ventre materno serão privados deste tipo de experiência, a primeira experiência afetiva na vida de um ser humano, as sensações de se viver dentro de um corpo humano. É um detalhe, um importante detalhe, que esses laboratórios do futuro vão ter de levar em conta.
Creio que não será tão difícil simular uma espécie de interação materna no útero artificial. O bebê poderá ouvir a voz da mãe por um microfone talvez, acessível por um aplicativo. Talvez até sons como do batimento cardíaco da mãe sejam simulados no ambiente do útero artificial. Não será a mesma coisa que a experiência natural, mas já é um começo.
O fato é que a parte realmente crucial na formação psíquica e afetiva da criança não é a gestação, mas seus primeiros anos da infância. Logo, mesmo que um bebê seja gerado em laboratório, o que vai importar de fato para que ele se desenvolva como um humano saudável é o carinho dos pais depois que ele nascer.
Inclusive falei em um post sobre o exemplo do personagem Homelander¹. Ele foi criado em laboratório e desenvolveu uma personalidade psicopata justamente por não ter vivido uma infância adequada, não teve pais, ninguém que lhe desse afeto. Não só se tornou psicopata, como desenvolveu uma perversão envolvendo leite materno. Uma interessante sacada do roteiro.
Tudo bem então gerar uma criança em uma incubadora. Este não será o problema afinal. Desde que ela tenha bons pais, estará tudo bem.
A parte mais controversa nem é a incubadora, mas a edição genética. Sim, pois a promessa do EctoLife é que será possível "dar um trato" no bebê, usando ferramentas como edição genética para eliminar o risco de doenças e deformidades, mas também pra deixar a criança com algumas características à escolha do casal. Até a cor dos olhos pode ser definida.
Pois é, esta parte aí levanta questões sobre eugenia e vai dar muita discussão. E se um casal de negros quiser um filho loiro de olhos azuis? E se um casal de loiros ou ruivos nórdicos quiser uma criança negra ou com aparência asiática? E se quiserem inventar um novo tipo de mestiço, tipo um menino negro, com olhinhos puxados e azuis e cabelo ruivo? Quão problemático isso vai ser?
Bom, nesta parte aí, deixo aos interessados que discutam. É provável que haja regulamentação, leis que impeçam estas excentricidades, deixando a edição genética só para a questão da saúde, o que me parece algo bom.
Eugenia propriamente dita é uma prática cruel de seleção genética que recorre a métodos como aborto das crianças que não se encaixam no tipo desejado. Um casal tomar medidas visando ter um filho saudável não é eugenia. Qualquer pai ou mãe que deseja o bem para seus filhos, se tivesse a opção de fazer algo durante a gravidez para evitar doenças, não pensaria duas vezes.
Existe ainda outro problema a se pensar. E se esta tecnologia for usada por governos para tentar resolver o problema do declínio populacional? Sim, pois apesar das profecias apocalípticas dos catastrofistas malthusianos, o fato é que existem países inteiros sofrendo um declínio de sua população e as consequências econômicas e sociais disto. Até a China, sim, a China que antes tinha a política de filho único, está agora preocupada com uma futura crise de fertilidade e já está investindo nessa nova tecnologia de úteros artificiais.
Então, e se os governos inventarem de produzir crianças em laboratório para barrar a queda populacional? Quem vai criar estas crianças sem pais? Vão instituir enormes creches com funcionários concursados encarregados de cuidar da criançada? Todos sabemos que isto não é a mesma coisa que ter uma criação em um lar, ainda mais quando os funcionários veem as crianças apenas como um trabalho a ser realizado, tendo um laço afetivo raso e às vezes até negativo.
Esta é a parte mais problemática. A intervenção do estado na própria existência humana. Se algo assim acontecer, aí sim essa tecnologia estará seguindo por um caminho distópico, algo um tanto Matrix, mas mais parecido com Metropolis, com uma sociedade que trata os humanos como meras máquinas.
O fato de que as pessoas podem ser úteis para o progresso e funcionamento da sociedade é um bônus para a existência humana, mas não deve ser o motivo fundamental dela. As pessoas não vêm ao mundo com o fim de serem peças na engrenagem social. Este não é um motivo nobre para alguém nascer, é um motivo utilitarista, mecanicista e que reduz o sentido da vida de uma pessoa à sua função no grupo.
A aventura humana é antes de tudo individual, uma jornada única de um indivíduo dotado de consciência e que deve descobrir seu próprio propósito e sentido. Neste processo de existência, o indivíduo interage com os outros, compõe uma sociedade e pode contribuir de alguma forma em seu funcionamento, mas isto é um propósito secundário e que deve ser voluntário, senão trata-se de escravidão².
Notas:
2: Esse é um assunto que dá muito pano pra mangas, pois alguém pode argumentar que não temos escolhas na sociedade e que fazemos tudo o que fazemos porque estamos presos em uma escravidão moderna capitalista. Ok, mas a não ser que você esteja acorrentado, impedido de ir e vir ou forçado a fazer algo com uma arma na cabeça, você sempre tem a escolha de abandonar a sociedade e ir viver como todo ser humano vivia há milhares de anos, livre na selva, se virando sozinho ou em um grupo pequeno para encontrar água e comida. A vida em sociedade prevaleceu no mundo porque há esta consciência tácita de que os benefícios superam os custos, de que você tem mais vantagens em trabalhar e se sujeitar às normas sociais para em troca comprar comida no mercado e ter água encanada, eletricidade e os milagres da tecnologia, do que viver totalmente livre e solitário na selva e precisando se esforçar para conseguir o básico para sobreviver. Viver na selva não é um estilo de vida impossível e na verdade há quem viva assim e esteja bem satisfeito. Enfim, as opções existem, de modo que a vida em sociedade não é necessariamente uma escravidão, mas uma "servidão voluntária". O custo-benefício desta servidão varia de lugar para lugar, de tempos em tempos, e há uma constante luta social e política para tentar melhorar este custo-benefício ou ao menos impedir que piore.
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