Nos últimos dez anos as redes sociais estabeleceram a famosa "cultura do cancelamento", mas antes disto, na era da TV, ocasionalmente já acontecia um fenômeno parecido. Lembro do caso da modelo Daniella Cicarelli.
Em 2005 ela era bem famosa, além de modelo era apresentadora da MTV. Em uma entrevista no Programa do Jô, ela comentava casualmente sobre sua habilidade de roubar no jogo de baralho e soltou essa: "Mas roubo profissionalmente. Parece que nasci em Brasília". Aí você já sabe o que aconteceu depois.
Na época não tinha redes sociais pra subirem hashtags de cancelamento, mas houve uma forte repercussão. Revistas e programas de fofoca na TV manipularam a opinião pública, tornando a modelo uma persona non grata. Em Brasília, os deputados fizeram uma sessão só pra debater o assunto e um deles, o João de Deus (PMDB), até sugeriu que dessem a ela um troféu com a imagem de uma piranha. Pois é.
É óbvio, é muito óbvio que a Cicarelli não quis ofender os habitantes ou nascidos em Brasília. Ora, o Brasil tem uma longa tradição de criticar os políticos, o que é bastante compreensível. Convenhamos, política é um troço bem problemático, é uma carreira que até pode ter gente bem intencionada ou que pelo menos quer fazer seu trabalho, mas também atrai muitos pilantras, bandidos, mentirosos compulsivos e até psicopatas.
Os brasileiros já sofreram muito com políticos, com corrupção, com desvio de verba que causa miséria, com coronéis explorando os pobres, enfim, todo brasileiro sabe bem o que é aturar a política e chamar político de ladrão é uma antiga tradição. Até nas celebrações religiosas existe a velha tradição de fazer bonecos de políticos representando Judas.
O que a Cicarelli tentou fazer, com uma desastrada escolha de palavras, foi apenas soltar uma piada de político, algo tão comum na conversação brasileira. Se olharmos as antigas novelas da Globo, os filmes dos Trapalhões, as piadotas do Faustão no Domingão, encontraremos inúmeras críticas aos políticos de Brasília.
Tenho, aliás, uma lembrança de uma vez na infância, quando estava viajando, não lembro bem quando ou onde, mas nunca esqueci um detalhe que vi na rua, um outdoor com o título "Ali Babá e os 40 Ministros". Não lembro se era um filme real ou uma piada que alguém fez questão de pagar um outdoor, mas era algo bem emblemático de como o brasileiro vê a política.
Enfim, todos sabiam que a modelo só quis dar uma "mitada" ou "lacrada" zoando os políticos, mas a expressão "nasci em Brasília" abria espaço para a interpretação de que ela chamou todos os brasilienses de ladrões e a má fé na interpretação se encarregou do resto.
Este caso da Cicarelli mostra bem como o sentido das palavras depende muito do contexto, da intenção da pessoa que fala, mas também da boa ou má fé de quem interpreta. É possível que uma pessoa se sinta ofendida por pura má fé, porque ela deturpou a intenção de quem falou algo ambíguo ou mal articulado.
Quanto a chamar político de ladrão, é um direito de qualquer cidadão em um país democrático. Se eles não querem ser chamados de ladrões, é muito simples: que parem de roubar.
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