Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Sobre barbeiros e um espinho no dedo

Cortar o próprio cabelo é uma arte que muita gente deve ter aprendido por necessidade nestes tempos de lockdown atrás de lockwdown, mas pra mim não é novidade. Há anos eu corto meu cabelo. 

Este hábito foi algo que veio naturalmente, dada minha crescente tendência ao minimalismo e a simplificar as coisas. Pra que sair de casa, pegar um transporte pra ir num salão, e ainda eventualmente esperar minha vez, se posso fazer isto em casa em 20-30 minutos?

Não é nenhum big deal, na verdade, e você não precisa ser um artista, a não ser que seja perfeccionista ou adepto de um tipo muito específico de corte que só profissionais sabem fazer. Já teve vezes em que por preguiça e praticidade resolvi raspar tudo, mas normalmente gosto de aparar, o que faço em menos de 20 minutos.

Anyway, tenho umas lembranças curiosas da época em que eu ainda ia em cabeleireiro. Nunca fui de ter uma pessoa fixa pra isso. Tem gente que passa anos e até décadas tendo um "meu cabeleireiro". Eu fui migrando aqui e ali, experimentando, descobrindo. 

Lembro que na adolescência achei muito cool um cara que eu frequentava perto da escola e que tinha uma pedra de sal do tamanho de uma maçã. Era um barbeiro à moda antiga. Após raspar os cantos da nuca, ele esfregava essa pedra de sal para prevenir inflamações e era uma sensação boa na verdade. Parecia que a superfície do sal se liquefazia no calor da pele e a pedra deslizava como um sabonete. Causava um ardorzinho nas partes arranhadas, mas era uma sensação boa. 

Eu gostava destes barbeiros quando eram lacônicos e focados no trabalho. Desculpem, humanos, mas não sou de small talk, embora eu seja de big talk, ou seja, posso me delongar bastante sobre um assunto que me interesse, mas não tenho saco para as conversas formais que existem só para preencher o silêncio, como falar sobre o clima e quejandos assuntos.

Tive uma época trágica da vida em que cheguei ao limite do stress e da depressão, a ponto de desenvolver uma alopécia, um círculo de calvície no topo da nunca. Os cabelos são grandes termômetros do nosso estado emocional e a alopécia veio bem no momento em que eu estava com os nervos no limite.

Todos que experimentaram a alopécia sabem como é uma experiência marcada principalmente pela vergonha, o que acaba contribuindo ainda mais para o desgaste emocional. Existe uma diferença entre você se tornar calvo ao longo dos anos e aceitar isto como sua tendência genética, assumindo a identidade de calvo, e você muito subitamente perder os cabelos de uma forma irregular e claramente ficar com uma aparência de que algo está errado na sau saúde.

As pessoas ficam olhando, estranhando, até zombando, de modo que passei a usar boné para onde quer que fosse, até quando ia à faculdade à noite, o que causava estranheza também. As pessoas faziam uma cara de "por que este menino nunca tira o boné?", mas ainda era menos constrangedor do que ficar com a bizarra careca exposta. 

Coincidentemente, eu tinha uma colega de faculdade que tinha uma severa alopécia que a deixou praticamente toda calva e ela usava peruca. Imagino como isso a afetou.

Claro que procurei um dermatologista, três, na verdade, pois cada um propunha um tratamento diferente. Felizmente, após seis meses, a alopécia sumiu de vez. Durante estes meses eu contei com a ajuda de uma amiga cabeleireira para lidar com meu caso peculiar. Ao cortar meu cabelo, ela deixava uma parte mais volumosa atrás para que eu penteasse por cima da parte calva, dando uma disfarçada. Um truque que todo semi-calvo conhece. 

Ironicamente, alguns anos depois, quando tive um linfoma e fiz oito meses de quimioterapia, as enfermeiras no início já me alertaram que eu ia perder os cabelos por causa dos remédios e todos os outros pacientes que estavam no mesmo tratamento que eu estavam carecas, mas eu permaneci estes oito meses com o cabelo inteirinho, como se a experiência com a alopécia tivesse me vacinado.

A lembrança mais marcante que tenho era do último barbeiro que frequentei. Devo ter frequentado por uns dois ou três anos, inclusive na época da quimioterapia. Era um senhor já idoso, magro, meio parecido com o Seu Madruga, só que mais velho. Deve ter vivido uma longa carreira naquela profissão e insistia em trabalhar mesmo já estando debilitado.

Ele tinha algum tipo de problema respiratório, pois não falava. Não creio que fora sempre mudo, pois não usava linguagem de sinais, então devia ser algo já da velhice. Quando tentava falar algo, ele conseguia emitir breves sussurros que não chegavam a representar nenhuma palavra inteira, mas de toda forma nos entendíamos no que era necessário, pois basicamente eu dizia como queria o corte e no final perguntava o preço, ao que ele indicava com os dedos.

O momento mais preocupante era quando ele passava a máquina para aparar a nuca e começava a tossir com uma tosse asmática por causa da nuvem de fiapos que subia no ar. Era uma situação constrangedora que a gente não sabe o que fazer ou dizer, mas o velho continuava tossindo e passando a máquina com valentia. Depois que desligava a máquina e voltava a usar a tesoura, ele ficava tranquilão cortando como se nada tivesse acontecido.

Aí teve uma vez que no caminho para o salão eu espetei um espinho ou farpa no dedo, mas esperei o cara terminar o corte, paguei e só então pedi uma pinça. Fiquei cutucando o dedo, tentando pegar essa farpa que era bem fina e difícil de enxergar, mas que estava de fato lá, já que eu sentia a pontada. 

Cutuquei, cutuquei e o velho resolveu intervir. Estendeu a mão pedindo a pinça, pegou meu dedo e ficou mordiscando ele com a pinça no mesmo vão esforço que eu fazia e suspeito que aquele senhor de óculos não tinha uma visão melhor que a minha para encontrar a farpa, mas deixei que ele continuasse tentando.

Isso já faz quase uma década e agora nem lembro como foi o desfecho da história. Não lembro se ele conseguiu tirar a farpa, se me devolveu a pinça e numa segunda tentativa eu consegui ou se eu falei que tinha saído só para dar o problema por resolvido. De toda forma, fiquei com essa lembrança do dia em que um velho barbeiro tentou tirar um espinho do meu dedo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário