Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Experiências

Tudo o que hoje você passa
é uma história pra lembrar,
uma história pra contar,
uma dor para achar graça.

(06,05,2020)

Metaverso e a normalização do char loving

Tibia char

O metaverso vai ampliar a impregnação da internet na vida das pessoas e no funcionamento da sociedade. Além disso, esta nova fase da internet vai criar uma gamificação da vida, misturando realidade e mundo digital. Como parte desta gamificação haverá o avatar, que será o bonequinho 3D com o qual você irá interagir com outras pessoas.

É por isto que a transição para o metaverso será mais orgânica para quem já está bastante acostumado com video games, enquanto os "noobs" e "normies" vão aderir com uma sensação maior de fascinação pela novidade. 

O char loving é um fenômeno que acontece há anos nos games, especialmente em MMOs e outros multiplayers. Consiste no apego que o jogador desenvolve pelo seu personagem, seu bonequinho, de modo a dedicar tempo em aprimorá-lo. Há jogos em que você pode construir uma casa pro seu personagem e ir decorando, etc. 

Há um prazer nesta brincadeira, mas tem gente que leva a coisa a sério e se apega tanto ao personagem que sofre uma grande crise de ansiedade e até ataque histérico quando seu personagem é banido ou hackeado.

Este fenômeno se tornará cada vez mais comum com o metaverso, ainda mais porque o avatar não é um personagem de jogo, mas a sua própria identidade no mundo virtual. O avatar é você, ou melhor, um espectro seu. As pessoas vão se habituar a comprar roupinhas, cuidar da reputação, do "crédito social" de seu avatar e vão sofrer um baque imenso quando por algum motivo este avatar for prejudicado.

Pois é, é algo bizarro de se pensar, bem Black Mirror, mas parece ser um caminho sem volta. Convenhamos que a cada geração o cérebro dos humanos tem se remoldado para se adaptar às novas tecnologias e no metaverso haverá esta reconfiguração mental meio esquizofrênica, de modo que teremos uma noção fragmentada do eu, nos vendo não apenas como uma mente em um corpo de carne e osso, mas também existindo nesta forma etérea e remota de um avatar.

A lança de kryptonita, a Chekhov's gun de Batman v Superman

Kryptonite spear

Um dos momentos mais criticados de Batman v Superman (2016) é a famigerada cena da "Martha", mas sinceramente eu acho que a cena faz bastante sentido, pois, mesmo sendo mera coincidência que a mãe do Superman tinha o mesmo nome da mãe do Batman, a súbita menção de seu nome foi um forte trigger nas emoções perturbadas do Bruce, de modo que este choque, somado à intervenção da Lois e o conhecimento do fato de que Martha foi feita de refém, despertou de novo o lado heroico do Batman e arrefeceu sua fúria irracional.

Ai estes dias revi o filme, agora na versão estendida de 3 horas. Não é tãão diferente da primeira versão. Basicamente a narrativa ficou menos corrida, desenvolvendo cada evento de forma mais detalhista. Então percebi o que de fato parece ser o maior furo de roteiro: a lança de kryptonita.

A lança de kryptonita é a arma mais legal do Batman em todo o snyderverso. O problema é como tentaram transformá-la numa Chekhov's gun, ou seja, um item que tem uma importância chave na trama. Seu papel faz sentido, o problema foi apenas a forma apressada como isto ficou estabelecido. 

O Superman viu o nascimento do Doomsday e com seu poder de percepção é compreensível que ele de cara tenha entendido que Doomsday era algum tipo de criatura kryptoniana e que, portanto, seria vulnerável a kryptonita. Até aí, só o Superman poderia saber disso.

Então começa o quebra pau, o Batman entra na briga e do nada ele já sabe que o bicho é kryptoniano e, por isso, viaja até Gotham, com o Doomsday atrás dele, a fim de pegar a lança. Ao mesmo tempo a Lois, que caiu de paraquedas nessa treta, também já começa a procurar a lança, sendo que ela mal viu o Doomsday e não podia saber que ele era kryptoniano ou vulnerável à kryptonita.

A ideia de que a lança poderia matar o Doomsday era totalmente especulativa. Ninguém sabia de fato que tipo de criatura ele era e quais suas fraquezas, mas assim do nada todos chegaram a essa mesma conclusão de que a lança era a solução.

O outro problema foi o fato do Superman ter se sacrificado ao empunhar a lança que o enfraquecia, mesmo vendo que ele tinha a Wonder Woman à sua disposição. Ele podia muito bem ter jogado a lança para ela usar, enquanto ele agarrava o Doomsday. Faria bastante sentido, já que Diana é a personagem mais habituada a empunhar lanças e espadas. 

Imagina que foda seria a cena do Superman dando um mata-leão no Doomsday e a Wonder Woman saltando com a lança no coração do bicho. Ou podia ser o Batman também, enquanto a Diana continuava segurando o bicho com o laço. O personagem menos adequado a usar a lança era o Superman.

Mas ok, esta parte dá pra relevar devido à urgência do momento e ao fato do Superman do snyderverso ser mesmo um cara sem muita habilidade estratégica, como ficou provado na luta desastrosa contra o Zod.

Quanto à questão da utilidade da lança, só tem um personagem que realmente poderia saber que o Doomsday era vulnerável à kryptonita: o Lex Luthor. Esse furo de roteiro seria resolvido se, por algum motivo, o Luthor conseguisse passar a informação para os outros. 

Tipo, vendo que o bicho saiu do controle e que ele próprio está em risco, num momento de desespero o Luthor poderia soltar esta dica sobre a vulnerabilidade à kryptonita. Ao encontrar o Batman, o Superman poderia falar da lança e talvez até o Alfred, sabendo lá pelos seus computadores que a Lois estava perto do local onda ficou a lança, ele poderia ligar pra ela avisando, mandar um zap, sei lá. Enfim, a trama ficaria melhor amarrada se esse lance da lança tivesse uns poucos minutos de explicação.

James Webb e a Sonda Parker fazendo história

Parker Probe

Este último mês de 2021 teve dois eventos de grande importância para a astronomia e para a civilização. O maior de todos foi o lançamento do telescópio James Webb. Este foi nada menos que o projeto mais caro da NASA, chegando aos 10 fucking bilhões de dólares.

O projeto existe desde o início dos anos 2000 e o lançamento teve mais adiamentos que o Cyberpunk 2077, o que acabou aumentando bastante o custo, mas finalmente o dia chegou. A estimativa é que ele dure de 5 a 10 anos, bem menos que o Hubble que já está aí no espaço desde 1990, mas em compensação ele tem uma capacidade de captação muito superior à do Hubble e vai enxergar além, praticamente até às origens do universo.

Também diferente do Hubble, que está na atmosfera da Terra como um satélite (cerca de 7 mil quilômetros), o Webb vai ficar além da Lua, a 1,5 milhão de quilômetros, realizando uma órbita de seis meses em volta da Terra. Além de ter equipamentos mais avançados que o Hubble, o fato de o Webb ficar no vácuo do espaço, longe das interferências atmosféricas da Terra, dá ainda mais vantagem em termos de captação de radiações cósmicas.

O Hubble era essencialmente uma gigantesca máquina fotográfica, literalmente tirando fotos dos confins do universo. O Webb, por sua vez, vai se concentrar na radiação infravermelha, ou seja, o espectro não visível ao olho humano, de modo que fará descobertas reveladoras.

Enfim, se a missão der certo, ao longo desta década teremos um volume gigantesco de informação coletada acerca dos primórdios do universo, o que ajudará no amadurecimento das teorias estabelecidas e também no surgimento de novas teorias sobre o passado do cosmo.

Todavia, além desta contribuição para o conhecimento acadêmico do universo, o Webb também tem uma missão que será muito marcante para a civilização e a cultura humana: ele irá encontrar planetas com uma precisão que até então não tínhamos. 

Há poucas décadas, descobrir planetas além do sistema solar, galáxia adentro, era uma tarefa quase impossível, afinal planetas não têm a mesma luminosidade das estrelas. Agora já fomos capazes de encontrar alguns milhares e com este novo telescópio o número vai crescer bastante, aumentando a nossa coleção de tipos de planetas e identificando um número cada vez maior de planetas parecidos com a Terra ou com uma provável chance de abrigar vida.

Será que o Webb conseguirá encontrar traços de civilização em alguns destes planetas? Posso estar com uma expectativa alta demais, mas vai que... 

Notar sinais de civilizações tecnológicas pelo universo é algo que em alguns anos ou décadas se tornará comum para nós. A questão mesmo é o que devemos fazer diante disto. Imagine que um dia, num futuro próximo, encontremos um planeta que dê claros indícios de ter uma alta civilização, devemos enviar sinais de saudação na direção deste planeta ou é melhor ficarmos quietinhos pra não corrermo o risco de atrair possíveis predadores? 

Anyway, partindo para o outro evento, também tivemos um feito da sonda Parker. Esta pequena nave foi lançada em 2018 na direção do Sol e este mês ela finalmente alcançou a área da coroa solar que é o que se pode chamar de atmosfera do Sol, a vasta cabeleira solar, sua região mais superficial e que é curiosamente mais quente que a "bola" solar em si, chegando a 2 milhões de graus Celsius.

Esta sonda, que tem um poderoso escudo contra o calor intenso, vai continuar orbitando o Sol por anos, coletando dados sobre a sua superfície e o vento solar, o que ajudará bastante a compreender o temperamento deste ser majestoso que tanto pode alimentar a vida na Terra quando nos destruir num instante. 

A cada órbita a sonda tem se aproximado mais do Sol e a estimativa é que chegue até 6 milhões de quilômetros da fotosfera. A esta altura, devido ao imenso impulso gravitacional, ela estará navegando a 700 mil quilômetros por hora, tornando-se a nave humana mais veloz até então.

[Rascunho] Poder

O desejo de dominar os demais
é doença, um mal que degenera.
Quem anseia por dominar jamais
será capaz de evoluir na Terra.

Dominar é um estado primitivo.
Você vive como vivem bestas-feras.
É brutalizar-se, perder o motivo.
...

O poder é o tesão dos vazios.
Almas frias e sem vida interior
preenchendo o abismo que há em si
com a vil ilusão... 

(10,07,2021)

[Rascunho] Memórias

As memórias pra mim são um tesouro.
Mesmo as más, mesmo as que entristecem.
Acumulo memórias...¹
Mais valor ganham quando envelhecem.

As memórias, mesmo as mais medíocres,
os registros de momentos banais
são as pérolas... 
os adornos...

(07,07,2021)

Notas:

1: É, seria bem óbvio completar "acumulo memórias como ouro", mas aí formaria uma rima pobre com "tesouro" e tenho certo preconceito com rimas pobres.

Sobre vilões "bem intencionados"

Thanos

O inferno está cheio de boas intenções. Alguns vilões são motivados por "boas ideias" que no fim das contas se mostram bem estúpidas. Foi o caso do Thanos que tinha uma utópica e idiótica meta de resolver os problemas do mundo eliminando metade dos seres vivos (como se isso não criasse uma série de danos colaterais que só escalariam os problemas pré-existentes).

Assim são as utopias, ideias simplistas que ignoram a complexidade da realidade. Pensa-se que tudo pode se resolver num estalar de dedos. Pois bem, este é o caso do vilão (vilã) de Mr Robot, Whiterose. Indignada com os males do mundo, particularmente o preconceito que fez com que ela sempre sofresse por um amor homoafetivo proibido, Whiterose empreende um colossal projeto, uma conspiração global para criar uma máquina quântica capaz de resetar o mundo, criar um mundo paralelo. É o Great Reset do espaço-tempo.

Este tipo de plano também se vê no filme Tenet¹. Nos três casos, do Thanos, de Whiterose e de Tenet, o plano falha no fato de ser incapaz de prever o verdadeiro resultado. Whiterose queria criar um mundo paralelo porque considerava seu mundo caótico e errado, mas o que garante que o novo mundo criado será melhor? E se for pior? E se ele criar um inferno na Terra? Seu plano foi um grande e ingênuo tiro no escuro das infinitas possibilidades.

Este é o problema destes planos mirabolantes e utópicos: eles apostam todas as fichas numa jogada, de modo que há uma chance mínima de se ganhar um grande prêmio e uma chance imensa de falhar miseravelmente. 

O outro problema é que estes "déspotas esclarecidos" não consultaram as outras pessoas se era isso que elas queriam. Isto por si só já deixa claro que o vilão é mesmo um vilão, pois ele não respeita o consentimento dos outros indivíduos. 

Então, nerds, quando forem discutir se Thanos estava certo, lembrem disso: ele elaborou um "plano de salvação" e executou contra a vontade de todos os seres vivos. Violar a vontade das pessoas é e sempre deverá ser um ato de vilania.

Notas:

Metaverso e o fim do anonimato

O anonimato na internet é relativamente uma ilusão. Mesmo que você use um avatar de figurinha e um apelido e mesmo que use VPN para esconder seu IP, em tese é possível rastrear uma pessoa a ponto de encontrar o dispositivo em que ela está navegando na internet e até sua geolocalização.

Todavia, mesmo os recursos atuais de identificação de usuário podem ser burlados facilmente. Por exemplo, se uma pessoa acessa a internet em uma lan house (sim, lan houses ainda existem) ou usando um wifi público, não tem como saber com certeza quem é esta pessoa. Pode-se identificar seu aparelho, mas não quem está usando ele.

Uma pessoa mal intencionada pode até mesmo usar a impressão digital de outra para ter acesso a autenticação em contas. Uma digital, que é considerada uma das formas mais únicas de se identificar alguém, pode ser clonada.

A biometria é sim um recurso de segurança mais avançado que a mera senha. Para se autenticar por leitura biométrica você precisa de seu corpo, seja a sua digital ou a íris ou o rosto diante de uma câmera. Só que esta tecnologia também tem suas falhas e em alguns casos é possível copiar a digital, o rosto ou a íris de alguém e enganar o leitor biométrico, bem ao estilo Missão Impossível.

Já no metaverso, a identificação do usuário provavelmente vai chegar a um nível de detalhes digno de um bom sci-fi futurista. Um dos motivos pelo qual as grandes empresas de internet sonham com o metaverso é porque a mineração de dados experimentará um boom gigantesco. 

Ao navegar no metaverso, tudo o que você faz é coletado pela data mining, a saber, os movimentos dos seus olhos, do seu corpo, sua maneira de andar, de mexer as mãos e até mesmo seus batimentos cardíacos e reações emocionais, expressões faciais, etc.

No modelo atual, as empresas sabem o que você gosta por meio de cookies, de seu histórico de navegação no site da loja, das coisas que você pesquisa. Isto é bom, pois é assim que as lojas vão entendendo seu gosto e se tornam capazes de sugerir coisas que você realmente tem interesse. 

Hoje em dia muita gente já sabe que é assim que funciona e tem até esta noção de "ensinar o algoritmo", fazendo buscas e vendo vídeos no Youtube, por exemplo, que mostram pra máquina o que você gosta, esperando que ela entenda e sugira conteúdos relacionados.  

Basicamente, este é o motivo pelo qual a data mining é tão importante para o mercado, é o ouro moderno, pois o mercado se torna muito mais eficiente em vender algo quando descobre o público-alvo. 

Pra que veicular a propaganda de mamadeiras e fraldas para um solteirão convicto se pode focar em alcançar casais e especialmente mulheres grávidas? É papel do algoritmo encontrar estas mulheres grávidas e ficar sugerindo as fraldas e mamadeiras para elas. A data mining faz a roda do capitalismo girar mais rápido.

Imagine então como será a precisão da data mining no metaverso, uma vez que é capaz de captar minúcias do seu comportamento corporal. Quando você assistir a um filme, o leitor corporal vai observar se seu corpo dá sinais de tédio ou de interesse, se você ri e chora ou se fica apático, assim obtendo uma avaliação inconsciente do filme, melhor do que o sistema de estrelinhas. O algoritmo vai entender o que você gosta ou não gosta melhor do que ninguém.

Pois é, isto é tão fascinante quanto sinistro. O fato é que este futuro está chegando e com ele o fim definitivo do anonimato, pois o algoritmo vai identificar você baseado em uma coleção gigantesca de informações sobre seu comportamento, então não adianta VPN ou usar um CPF alheio, uma lan house ou digital de outra pessoa. O algoritmo vai saber que você é você porque vai identificar seu jeito peculiar de se comportar. 

É por isto que não importa para o metaverso se você navega usando um avatar de alienígena ou personagem de anime. O algoritmo vai te reconhecer melhor que seus parentes ou amigos. Isto também abre espaço para outra bizarra possibilidade, a de humanos desenvolverem relações afetivas com a IA em forma de pessoas ou bichos digitais. Tipo o filme Her¹. Em algum momento isto vai acontecer, se é que já não está acontecendo, mas já estou divagando.

Notas:

Batman, Buda e o Diabo

Hellbat

Antes de se tornar Batman, Bruce Wayne era um garoto rico e que não tinha com o que se preocupar, até que viu seus pais serem mortos diante dele. Sua reação a este trauma foi tornar-se um justiceiro.

Alguém pode dizer: "Ah, pelo menos o Batman ainda teve uma infância cheia de privilégios de um garoto mimado". Pois é, é justamente este contraste entre sua infância e sua tragédia que faz ele se tornar o Batman.

Neste aspecto o Batman teve uma experiência parecida com a de Sidarta Gautama, o Buda. Sidarta igualmente foi uma criança riquíssima que vivia no conforto e protegido contra as desgraças do mundo, até que um dia ele saiu do castelo e viu idosos em decadência, doentes, pessoas sofrendo. 

Quem nasceu e cresceu tendo contato com as misérias do mundo, acaba encarando isto como algo normal, já que experienciou desde sempre. Tanto Buda quanto o Batman tiveram uma infância paradisíaca e, quando enfim conheceram o aspecto trágico do mundo, sofreram um choque de realidade. Ambos desenvolveram uma noção de que algo está errado no mundo, algo está quebrado. Ambos buscaram uma solução para isto, de maneiras opostas.

Para Buda, a solução para o sofrimento começa dentro da consciência de cada um, pela iluminação, a fim de alcançar um estado de transcendência, como a flor de lótus que cresce no lamaçal e mesmo assim se mantém limpa e bela.

Para o Batman, a solução para a injustiça é lutar para transformar o mundo, combater os injustos e impor a justiça. É uma luta eterna, sem fim, mas a que ele obstinadamente se dedica de uma forma até paranoica, obsessiva. O choque de realidade daquela criança mimada ao testemunhar o assassinato dos pais moldou em sua mente esta obsessão pela justiça e por consertar o mundo.

É aí também que o Batman se assemelha ao Diabo¹. O Diabo não é uma figura tão simples como muitos pensam. Ele não representa simplesmente o Mal. No Novo Testamento, de fato, ele é o Mau, com "u". A oração "mas livrai-nos do mal" seria melhor traduzida como "livrai-nos do mau", pois a palavra grega é poneron, um substantivo que representa uma pessoa maligna. Livrai-nos do maligno, que, no caso, é o Diabo.

Na teologia, porém, a figura do Diabo foi ganhando diversas camadas de simbolismo. Com base no Antigo Testamento, onde o Diabo foi chamado de Satan no livro de Jó (o opositor, o adversário) e Hillel em Isaías (a estrela da manhã, que, na versão latina da Vulgata, virou Lucifer), desenvolveu-se a ideia de um ser a princípio angelical, um querubim belo e poderoso criado por Deus, que se rebelou.

Destarte, além de ser a essência da maldade e da desgraça do mundo, o Diabo também se tornou um anti-Deus, uma espécie de conspirador que pretende tomar o lugar de Deus, ser adorado e estabelecer um novo sistema no mundo, subvertendo a ordem original. 

Assim ele aparece no jardim do Éden como uma serpente tentando recrutar Adão e Eva para a sua ideologia, provocando o pecado original e, a partir daí, dividindo a civilização humana em uma eterna luta entre os devotos de Deus e os devotos do Diabo.

Tá, mas onde entra o Batman nisso? Então, acontece que ao longo da Idade Média a figura do Diabo ganhou ainda outro significado: ele se tornou o Punidor, o carrasco que reina no inferno e se encarrega de castigar os pecadores que para lá são enviados. Ou seja, Deus é o juiz, mas quem executa a pena é o Diabo.

Na Divina Comédia, Dante então organizou esta teologia popular, folclórica, dando-lhe ares épicos. Assim surgiu um inferno organizadíssimo, com vários círculos, vários departamentos dedicados a punir diferentes tipos de pecadores. O "gerente" desta instituição é o Diabo.

É aí que entra o Batman. Ele é o Diabo em seu aspecto punidor. Inclusive o design do personagem sugere a imagem de um ser demoníaco. Ele é um morcego, veste-se de preto, tem "chifrinhos", vaga na noite, o horário das trevas. Ele contrasta com o Superman, que todos sabem que é um evidente arquétipo de Jesus e que vaga durante o dia, alimentando-se da energia solar. Superman é luz e Batman é trevas. Superman é esperança e Batman é justiça.

Notas:

1: Vale notar também que, por volta do renascimento e especialmente na era moderna, o Diabo ainda ganhou mais um aspecto, que o assemelha ao grego Prometeu: ele é o libertador da humanidade no sentido de promover a sua maioridade, de levar a civilização a superar o governo dos deuses e seguir seu próprio caminho. É assim que surgiu o luciferianismo, adotando Lúcifer como o principal nome do Diabo, uma vez que ele significa "Portador de luz", no caso, a luz da razão. 

E ainda há muitos outros seres relacionados ao Diabo: pessoas desencarnadas que se tornaram espíritos obsessivos, criaturas extradimensionais que são bestas-feras sem qualquer sentimento de bondade, até alienígenas reptilianos são, por algumas pessoas, identificados com o Diabo. Todos estes tipos de Diabo, porém, não vêm ao caso aqui. 

Sobre o sarcasmo

O sarcasmo costuma se desenvolver em pessoas sofridas e amargas, pois é um mecanismo de defesa e de manifestação da agressividade. Também há pessoas que praticam o sarcasmo porque acham que isto as fará parecer inteligentes e cool. De fato, é preciso uma boa inteligência verbal para elaborar o sarcasmo, bem como para compreendê-lo. Adotar este método de comunicação só para parecer cool, porém, revela certa vaidade e insegurança de quem o faz.

Há ainda um bom motivo para se utilizar o sarcasmo: a resistência à tirania. Em tempos ou lugares onde a liberdade de expressão é limitada, onde as pessoas são perseguidas e censuradas por suas ideias e palavras, pelo simples fato de dar uma opinião, o sarcasmo funciona como um filtro críptico, um firewall que barra as mentes mais simplórias e que pode confundir as menos simplórias ou distraí-las em falsas interpretações, como um honeypot.

Assim como, em tempos de perseguição religiosa, os místicos se refugiam no ocultismo, o sarcasmo é um tipo de esoterismo para o livre-pensar.

Sobre os muitos mundos

Nós experimentamos o mundo pela primeira vez através dos cinco sentidos. A função dos sentidos é captar fragmentos da teia quântica ou, em outros termos, da emanação de energia que há em todas as coisas e seres, então esta informação, levada pelos nervos de todo o corpo ao cérebro, é processada, interpretada e "renderizada" na forma do mundo. O mundo é aquilo que nossa mente revela.

Esta revelação, esta foto que tiramos do mundo, é armazenada na memória, mas, diferente de um armazenamento digital, em que os dados de um arquivo são mantidos intactos, a nossa memória está sempre editando a realidade, acrescentando ou removendo detalhes, sensações e, principalmente, o simbolismo de cada momento que recordamos. 

Podemos chamar a tal "realidade", o mundo concreto e feito de energia, como o "primeiro mundo" (segundo a nossa impressão, pois mesmo este mundo externo a nós pode ser o reflexo, a holografia de algum outro reino ou dimensão). Este mundo é bem vasto, pois consiste não apenas no universo, mas no multiverso e nas diversas dimensões físicas destes.

A percepção e interpretação desta realidade cria em nossa mente o "segundo mundo". A memória, por sua vez, cultiva um "terceiro mundo", que é a recordação do segundo mundo em constante alteração e recriação. 

Ao longo dos anos nossas memórias vão sofrendo sutis mudanças, de maneira que este terceiro mundo é bastante dinâmico e metamorfo. Nunca temos uma recordação idêntica a outra, pois a memória não consiste apenas em lembranças sensitivas da nossa percepção de momentos, mas também sentimentais e os sentimentos com que impregnamos as memórias alteram seu significado. Um evento que no passado nos fez chorar, no futuro pode nos fazer rir. 

Além destes três mundos, há um "quarto mundo", que é aquele que nossa mente deliberadamente cria por meio da imaginação e dos sonhos. O quarto mundo, embora seja criado com ideias e detalhes do primeiro mundo, como ingredientes e peças que usamos para montar nosso próprio quebra-cabeças, é uma realidade essencialmente de nossa autoria e única, o seu mundo particular. 

Criamos e recriamos versões deste quarto mundo todos os dias, quando imaginamos coisas, quando deliramos, quando sonhamos dormindo ou acordados, quando simulamos possíveis cenários, quando fazemos planos, quando contamos uma história e criamos universos e personagens.

Tendemos a achar que o quarto mundo é o menos real de todos, é ficção, é pura imaginação. Todavia, ao imaginar, ao criar algo neste mundo surreal, também podemos ocasionalmente plantar uma semente que vai ganhar vida no mundo concreto. Histórias outrora imaginadas podem ser proféticas e ganhar forma real no futuro. Como toda forma de energia, a imaginação também contribui para a transformação do primeiro mundo.

Os mais céticos e materialistas podem conceber a existência destes quatro mundos, mas eles se negam a reconhecer outro, um "quinto mundo" que só os místicos, os religiosos admitem. Trata-se do mundo sobrenatural, espiritual, uma realidade paralela à nossa e com a qual podemos ter contato por meio da alma, espírito, anima, mana, atma ou como queira chamar.

Para os céticos, o quinto mundo nada mais é do que parte do quarto mundo, uma criação imaginária. Todavia, eles ignoram as manifestações do quinto mundo na forma de fenômenos sobrenaturais, milagres, aparições, etc. Muitos destes fenômenos podem ser desmentidos, esclarecidos, analisados cientificamente, porém ainda restará uma realidade que simplesmente não pode ser explicada senão como sendo parte do quinto mundo. 

Uma forma de conciliar materialistas e espiritualistas nesta questão é identificar o quinto mundo como sendo outra ou outras dimensões da realidade física, portanto, algo que pertence ao primeiro mundo. É como uma versão da teoria dos deuses astronautas, porém identificando-os não apenas como aliens interestelares, mas também interdimensionais.

Eis que agora também estamos criando um "sexto mundo", o mundo virtual, digital, que é na verdade parte do primeiro mundo, é uma realidade concreta, feita de pixels, bits, imagem e som produzidos por um computador. 

Chegará um dia em que este sexto mundo terá uma conexão direta com nosso cérebro e então seremos capazes de transmitir, fazer um broadcast de nossa mente neste ambiente virtual, gravar nossos sonhos, delírios, as coisas que imaginamos e traduzir nossas experiências espirituais. 

O sexto mundo, portanto, será uma espécie de hipervia conectando todos os outros, um limbo interligando as várias dimensões de nossa mente. 

Da negação da verdade nos trouxas

É comum as pessoas insistirem em uma opinião, crença ou estilo de vida mesmo depois que racionalmente descobrem que estavam erradas, que foram enganadas, enfeitiçadas. Tem algo de orgulho nisso, mas também de autoproteção, pois quem foi feito de trouxa por um charlatão não suporta o incômodo mental que advém da descoberta. Saber a verdade pode ser uma experiência infeliz, de modo que a pessoa, em seu cálculo interno de custo-benefício, pode concluir que é melhor continuar vivendo em negação, ignorando a verdade e insistindo na mesma opinião errada, não dando o braço a torcer. A sua negação se torna ainda mais fácil quando o charlatão é amparado por uma grande estrutura de sustentação de suas mentiras, um sistema, uma autoridade. O trouxa ama a autoridade, pois esta pode ditar para ele uma verdade pronta e que sirva de travesseiro onde sua consciência possa se manter dormente.

Sobre barbeiros e um espinho no dedo

Cortar o próprio cabelo é uma arte que muita gente deve ter aprendido por necessidade nestes tempos de lockdown atrás de lockwdown, mas pra mim não é novidade. Há anos eu corto meu cabelo. 

Este hábito foi algo que veio naturalmente, dada minha crescente tendência ao minimalismo e a simplificar as coisas. Pra que sair de casa, pegar um transporte pra ir num salão, e ainda eventualmente esperar minha vez, se posso fazer isto em casa em 20-30 minutos?

Não é nenhum big deal, na verdade, e você não precisa ser um artista, a não ser que seja perfeccionista ou adepto de um tipo muito específico de corte que só profissionais sabem fazer. Já teve vezes em que por preguiça e praticidade resolvi raspar tudo, mas normalmente gosto de aparar, o que faço em menos de 20 minutos.

Anyway, tenho umas lembranças curiosas da época em que eu ainda ia em cabeleireiro. Nunca fui de ter uma pessoa fixa pra isso. Tem gente que passa anos e até décadas tendo um "meu cabeleireiro". Eu fui migrando aqui e ali, experimentando, descobrindo. 

Lembro que na adolescência achei muito cool um cara que eu frequentava perto da escola e que tinha uma pedra de sal do tamanho de uma maçã. Era um barbeiro à moda antiga. Após raspar os cantos da nuca, ele esfregava essa pedra de sal para prevenir inflamações e era uma sensação boa na verdade. Parecia que a superfície do sal se liquefazia no calor da pele e a pedra deslizava como um sabonete. Causava um ardorzinho nas partes arranhadas, mas era uma sensação boa. 

Eu gostava destes barbeiros quando eram lacônicos e focados no trabalho. Desculpem, humanos, mas não sou de small talk, embora eu seja de big talk, ou seja, posso me delongar bastante sobre um assunto que me interesse, mas não tenho saco para as conversas formais que existem só para preencher o silêncio, como falar sobre o clima e quejandos assuntos.

Tive uma época trágica da vida em que cheguei ao limite do stress e da depressão, a ponto de desenvolver uma alopécia, um círculo de calvície no topo da nunca. Os cabelos são grandes termômetros do nosso estado emocional e a alopécia veio bem no momento em que eu estava com os nervos no limite.

Todos que experimentaram a alopécia sabem como é uma experiência marcada principalmente pela vergonha, o que acaba contribuindo ainda mais para o desgaste emocional. Existe uma diferença entre você se tornar calvo ao longo dos anos e aceitar isto como sua tendência genética, assumindo a identidade de calvo, e você muito subitamente perder os cabelos de uma forma irregular e claramente ficar com uma aparência de que algo está errado na sau saúde.

As pessoas ficam olhando, estranhando, até zombando, de modo que passei a usar boné para onde quer que fosse, até quando ia à faculdade à noite, o que causava estranheza também. As pessoas faziam uma cara de "por que este menino nunca tira o boné?", mas ainda era menos constrangedor do que ficar com a bizarra careca exposta. 

Coincidentemente, eu tinha uma colega de faculdade que tinha uma severa alopécia que a deixou praticamente toda calva e ela usava peruca. Imagino como isso a afetou.

Claro que procurei um dermatologista, três, na verdade, pois cada um propunha um tratamento diferente. Felizmente, após seis meses, a alopécia sumiu de vez. Durante estes meses eu contei com a ajuda de uma amiga cabeleireira para lidar com meu caso peculiar. Ao cortar meu cabelo, ela deixava uma parte mais volumosa atrás para que eu penteasse por cima da parte calva, dando uma disfarçada. Um truque que todo semi-calvo conhece. 

Ironicamente, alguns anos depois, quando tive um linfoma e fiz oito meses de quimioterapia, as enfermeiras no início já me alertaram que eu ia perder os cabelos por causa dos remédios e todos os outros pacientes que estavam no mesmo tratamento que eu estavam carecas, mas eu permaneci estes oito meses com o cabelo inteirinho, como se a experiência com a alopécia tivesse me vacinado.

A lembrança mais marcante que tenho era do último barbeiro que frequentei. Devo ter frequentado por uns dois ou três anos, inclusive na época da quimioterapia. Era um senhor já idoso, magro, meio parecido com o Seu Madruga, só que mais velho. Deve ter vivido uma longa carreira naquela profissão e insistia em trabalhar mesmo já estando debilitado.

Ele tinha algum tipo de problema respiratório, pois não falava. Não creio que fora sempre mudo, pois não usava linguagem de sinais, então devia ser algo já da velhice. Quando tentava falar algo, ele conseguia emitir breves sussurros que não chegavam a representar nenhuma palavra inteira, mas de toda forma nos entendíamos no que era necessário, pois basicamente eu dizia como queria o corte e no final perguntava o preço, ao que ele indicava com os dedos.

O momento mais preocupante era quando ele passava a máquina para aparar a nuca e começava a tossir com uma tosse asmática por causa da nuvem de fiapos que subia no ar. Era uma situação constrangedora que a gente não sabe o que fazer ou dizer, mas o velho continuava tossindo e passando a máquina com valentia. Depois que desligava a máquina e voltava a usar a tesoura, ele ficava tranquilão cortando como se nada tivesse acontecido.

Aí teve uma vez que no caminho para o salão eu espetei um espinho ou farpa no dedo, mas esperei o cara terminar o corte, paguei e só então pedi uma pinça. Fiquei cutucando o dedo, tentando pegar essa farpa que era bem fina e difícil de enxergar, mas que estava de fato lá, já que eu sentia a pontada. 

Cutuquei, cutuquei e o velho resolveu intervir. Estendeu a mão pedindo a pinça, pegou meu dedo e ficou mordiscando ele com a pinça no mesmo vão esforço que eu fazia e suspeito que aquele senhor de óculos não tinha uma visão melhor que a minha para encontrar a farpa, mas deixei que ele continuasse tentando.

Isso já faz quase uma década e agora nem lembro como foi o desfecho da história. Não lembro se ele conseguiu tirar a farpa, se me devolveu a pinça e numa segunda tentativa eu consegui ou se eu falei que tinha saído só para dar o problema por resolvido. De toda forma, fiquei com essa lembrança do dia em que um velho barbeiro tentou tirar um espinho do meu dedo.

O tempo e o sonho

Quando acordamos de um sonho, é comum que a lembrança deste evento seja nebulosa e, em questão de minutos, esquecemos muitos dos detalhes. É como se o sonho que tivemos há poucos instantes fosse uma lembrança distante de uma vida que vivêramos há muitos anos. Como o tempo é relativo, não duvido. Talvez quando dormimos a consciência fique suspensa em um tempo diferente e nossos sonhos se passem em tempos distintos daquele presente em que se encontra o corpo, tanto no passado quanto no futuro. Acordamos como quem voltou de uma viagem.

(23,12,2021)

Sim

Contemplo as bolhas flutuantes. São como pequenas estrelas de meu próprio universo. Onde foi parar a fonte, eu me pergunto. Nada mais é como antes. Ao mesmo tempo eu contemplo o templo, esta casca em que habito e fico hirto, aflito. Eu preciso de um abrigo, uma caverna, uma lápide onde se enterra a semente daquilo que ainda não tornei-me. Olho a chuva e vejo Shiva. Olho o mar e vejo Maria. Olho a floresta e eis que esta é minha casa, a mata é o berço e a cápsula das energias primordiais. Ali habita o caos e algo mais. Eu sou madeira, sou árvore, ora rígida, ora maleável. Regenero-me, altero, produzo o belo e perfumado espinho, o cauteloso cardo. Minha pele é o espelho da alma, minhas mãos falam mais que os lábios, meus olhos veem melhor fechados, quando sonho, quando aceito o estranho. Ser lagarta é uma arte, a arte de sempre transformar-se. Benditos os malditos. Eles podem apreciar a melodia de seus próprios gritos. Jamais me arrependi de nada que perdi. Tudo que destruí foi um ritual. Cada erro é um altar, uma pedra erguida para recordar. Que arte formidável esta de viver sempre encantado, sempre entediado, sempre trafegando no paradoxo disso e daquilo. Sempre hei de quebrar esta quinta parede, esta outra dimensão. Eu vejo vocês, vocês que estão a assistir nossos delírios. Somos um desenho, uma página, uma lástima, uma trágica tragada na garrafa mágica das nossas fábulas.

(21,12,2021)

Metaverso e misticismo

Morpheus

O metaverso, que se tornou uma das novidades mais faladas no mundo da tecnologia, tem despertado desconfianças e receios, o que na verdade é uma boa coisa. Faz parte do instinto de sobrevivência humano preocupar-se diante de uma nova tecnologia. 

Quão perigoso pode ser o metaverso? Ele vai dar início à matrix maligna em que as máquinas nos escravizarão? Bom, é possível, mas pode ser que nada tão apocalíptico aconteça, assim como foi com a primeira internet. Vai ser apenas uma nova tecnologia de comunicação que vai se tornar normal no nosso dia a dia.

Preocupações à parte, chamo aqui atenção para outro aspecto do metaverso que muitos ainda não devem ter percebido: o potencial que ele tem para despertar ou ampliar a espiritualidade.

Pois é, façamos um exercício de otimismo a este respeito. A internet tem contribuído para acostumar a mente humana à noção da realidade extracorpórea. Como nos comunicamos com as pessoas à distância, vendo-as apenas em video ou na forma de avatares e texto, isto deve ter algum efeito na reconfiguração de nossa rede cerebral, nos tornando menos concretos, mais abertos a lidar com o intangível.

O metaverso vai levar esta noção a outro nível, pois teremos uma experiência 3d do mundo virtual, uma imersão como nunca tivemos antes e que vai nos acostumar à ideia de interagir com um mundo que sequer é físico, um mundo holográfico e imaginário. Entraremos em uma espécie de novo romantismo, de tecno-romantismo ou ciber-romantismo, quando voltaremos a enxergar a realidade pelos olhos platônicos da imaginação. 

Por fim, este tipo de contemplação delirante e alucinógena da realidade acaba nos despertando para uma verdade universal que o mundanismo ofuscou: a de que você não é um corpo, você é uma mente, uma alma, uma consciência em um corpo. Você é, no cerne da sua realidade, energia e código, interpretando o mundo e sendo por ele interpretado. O próprio corpo nada mais é do que energia e é a sua mente que o interpreta como corpo.

Mesmo que isto já seja um conceito científico, é igualmente místico. O metaverso é uma simulação desta supra-realidade extracorpórea e a simulação acaba tendo um efeito didático, alegórico. Eis que entraremos nesta nova era de expansão da consciência, ironicamente catalisada pelas máquinas, que costumamos considerar tão profanas. 

Sobre mundos virtuais e entropia

Unreal Engine 5

Unreal Engine 5

Unreal Engine 5

Unreal Engine 5

Unreal Engine 5

As imagens acima foram produzidas em uma game engine de última geração (Unreal Engine 5). Não são fotos de cenários reais e sim cenários totalmente renderizados no computador. Eis o nível de fotorrealismo a que estamos chegando.

Com as novas engines de jogos é possível criar cidades inteiras tão realistas que onde quer que você dê um zoom poderá notar detalhes mínimos do ambiente, como a textura enferrujada de um corrimão ou poças de água e rachaduras em uma calçada. Não existem blocos de sprites. Toda a cidade é gerada, iluminada e texturizada milímetro a milímetro.

Isto é um exemplo não só do que encontraremos nos futuros jogos, mas também na futura internet, na chamada web3 ou metaverso. Estas engines também permitem criar personagens com um nível impressionante de detalhismo e flexibilidade do rosto. Chega ao ponto de ser algo indistinguível de um rosto real.

O grande segredo do fotorrealismo está basicamente em dois elementos gráficos: a texturização e a iluminação. A tecnologia de ray tracing foi um grande salto para a indústria gráfica, pois deu uma vida aos cenários que agora interagem com a luz de uma maneira muito complexa.

Até aí tudo ótimo. Parece que finalmente estamos chegando ao ponto em que podemos criar um mundo virtual semelhante ao real, de tal forma que vamos até esquecer que aquilo foi criado no computador. Existem também tecnologias de interação com os objetos que adicionam o elemento caos, algo típico da realidade. Por exemplo, em uma batida de carro, os fragmentos desta colisão serão gerados por um processo aleatório, de modo que nunca uma explosão ou colisão será igual a outra.

Creio que agora só falta uma coisa para que todo este realismo seja de fato fiel ao mundo físico: a entropia. A entropia nestas engines acontece somente quando há uma forte interação com o cenário, como no caso da batida de carro, mas no mundo físico a entropia está agindo a todo instante em tudo, em cada mínimo detalhe da realidade. Para isto acontecer em um mundo virtual seria necessário um absurdo processo de renderização contínua.

Por entropia, me refiro ao seu aspecto ordinário. Por exemplo, você mora em determinado bairro e está acostumado a caminhar em suas ruas por anos. Ao longo dos meses e anos você vai testemunhando sutis mudanças no cenário. O letreiro de uma loja com o tempo vai perdendo as cores, a ferrugem do corrimão vai se alastrando, o musgo se espalha em uma velha parede de um terreno abandonado, as faixas de trânsito vão se desgastando com o contato dos veículos, enfim, o cenário está sempre envelhecendo e também se renovando quando há a manutenção, quando o dono da loja bota um letreiro novo e funcionários pintam novamente as faixas da rua.

Esta dinâmica do mundo é que conta a história das coisas. As árvores crescem, os metais enferrujam, as paredes descascam e racham. Se, numa primeira impressão, parece que chegamos ao ponto em que podemos criar uma verdadeida matrix, a verdade é que estes cenários são apenas fotos quase estáticas do que seria um mundo real e vivo, um mundo em constante entropia.

A entropia será o processo mais difícil de simular no mundo virtual e ainda estamos bem longe de ter a capacidade computacional necessária para isso.

Sobre a consciência

Hand with Reflecting Sphere; M. C. Escher (1935)

A consciência é um tipo específico de inteligência. Não é preciso uma superinteligência para a consciência existir. Os computadores são bastante inteligentes em determinadas tarefas, superando em muito os humanos, mas, em termos de consciência, eles não são tão diferentes de uma formiga.

Nos animais existe uma proto-consciência, que consiste na distinção entre si mesmo e os outros, entre o eu e o ambiente. Uma formiga sabe que um torrão de açúcar é outra coisa externa a ela própria, uma coisa que ela pode coletar. Obviamente, a formiga não dá nomes às coisas e não chama aquilo de "açúcar", mas ela tem uma noção básica de que se trata de algo com o qual ela possa interagir, no caso, coletando e levando para a toca.

A proto-consciência também permite aos animais fazer distinção entre amigos e inimigos, até entre parentes e estranhos. Um gato vê seu dono como uma mãe e trata-o com um afeto e distinção que não dedica a outras pessoas. Se entra um estranho na casa, o gato entenderá como um estranho, olhará com desconfiança, mas, caso esta pessoa seja uma visita frequente ou interaja com o dono do gato, o gato com o tempo pode criar amizade com ela.

Também se uma pessoa maltrata um gato, ele passará a entender que trata-se de uma ameaça, um inimigo, e a evitará. O gato sabe distinguir as pessoas. Para ele cada humano é um ser distinto, que ele identifica pelo cheiro, aparência, comportamento, etc. Isto é uma proto-consciência. Até galinhas e ratos, com seus minúsculos cérebros, têm esta capacidade.

Logo, não é preciso uma gigantesca capacidade computacional para ter uma proto-consciência, para fazer distinção das coisas. De fato, computadores já fazem isto. Um computador tem noção de que é um computador, pois é isto que o faz funcionar. O software reconhece e entende suas próprias partes, seu hardware, seus comandos, e quando se depara com um hardware ou código incompatível, ele reconhece que se trata de algo que não faz parte dele, algo estranho e que requer novas instruções para ser entendido.

A IA já é capaz de fazer reconhecimento facial e distinguir uma bola de uma maçã, de modo que já está no nível dos gatos, embora ainda sem a formidável capacidade de percepção felina, que é algo que a IA só terá com um upgrade de hardware, ganhando sensores mais detalhistas, pois basicamente a IA hoje percebe o mundo por meio da visão e audição. A IA, diferente dos gatos, ainda não sente cheiros.

E onde está a pura consciência? Ao que parece, só humanos a possuem neste planeta (ignorando-se a possível existência de outros seres do nosso nível e que estejam entre nós discretamente, como alienígenas e seres de outras dimensões ou espectros). 

Animais podem ser extremamente inteligentes. Existe este mito, ou não, de que golfinhos são tão inteligentes quanto humanos. Bom, os golfinhos não levaram um golfinho à lua, mas enfim... O fato é que mesmo golfinhos não parecem demonstrar a presença de uma consciência profunda.

Enquanto a proto-consciência se manifesta no reconhecimento da distinção eu/outro, o que basicamente é uma distinção material, física, uma distinção de corpos e objetos, a consciência faz isto em um nível subjetivo, imaterial, a ponto dela ser capaz de reconhecer a si mesma!

Os humanos são capazes de pensar sobre os próprios pensamentos, de ter um diálogo interno, o que demonstra o reconhecimento da existência de um ser interno, uma alma ou mente que é uma entidade, um indivíduo, tanto que você conversa com ele. 

A consciência é uma espécie de espelho em que narcisicamente contemplamos a nós mesmos e este espelho acaba se tornando um caleidoscópio, uma vez que a auto-percepção se depara com os aspectos multifacetados da mente.

Curiosamente, esta capacidade mental não parece ser algo que exija um grande volume de dados ou processamento. A consciência é um processo simples. Se fosse comparada a um software, ela não seria um sistema operacional inteiro, mas apenas aquela ferramenta responsável por fazer a varredura dos arquivos, uma ferramenta de auto-análise.

O maior volume de dados que ocupa o cérebro é a memória. Há uma estimativa de que o cérebro trabalha cerca de 2,5 petabytes de dados, sendo boa parte disto a sua gravação de tudo o que vê, ouse, sente, lê, aprende, enfim, a memória. Se, porém, mutilarmos a memória de uma pessoa, se ela sofrer de uma forte amnésia, ainda assim ela chegará ao ponto de se perguntar: "Quem sou eu?". Ora, perguntar "quem sou eu" é um ato de consciência.

Cogito, ergo sum. O ato de pensar sobre si mesmo revela a existência da consciência, de modo que a consciência é a maior evidência de sua própria existência e do ser que a possui. A consciência é a única coisa plenamente auto-evidente em todo o universo. Quem a possui tem certeza de que ela existe porque ela testifica a si mesma. Você pode duvidar de tudo o mais. Tudo à sua volta pode ser uma miragem, uma simulação, um sonho, mas a sua consciência não pode ser desmentida, pois a própria dúvida sobre a existência dela já é a prova da mesma.

O grande mistério é a origem da consciência. Como se forma na mente uma entidade tão idiossincrática, tão própria? A partir de que momento ela "nasce" nos humanos? Bebês já a possuem? Já existe uma semente de consciência no primitivo sistema nervoso de um feto? Qual região do cérebro é responsável por este processo?

Para o budismo, a consciência é autocriada, o que, convenhamos, tem uma lógica. Esta entidade etérea dedicada à autocontemplação parece ter sempre existido assim, voltada a si mesma. Expandindo esta ideia é que se chega ao conceito panteísta de que a consciência é algo que permeia todo o cosmo, talvez algum tipo de campo quântico ou de outra natureza desconhecida, e que ela encontra certos receptores, como o cérebro humano.

Neste caso, nós somos um roteador da consciência cósmica, o que também explica a existência da consciência coletiva, dos fenômenos de sincronicidade, telepatia, do "eu pensei em você" ou "sonhei com você" em curiosas coincidências quando algo acontece com uma pessoa e nós, à distância, sentimos.

A consciência cósmica é o próprio universo observando a si mesmo, o que ele faz em uma escala microcósmica, por meio dos indíduos dotados de consciência. Se, por um lado, isto faz você se sentir pequeno diante da magnitude universal, também deveria fazê-lo sentir-se grande, pois você foi dotado de nada menos que o olho do universo, a capacidade de refletir no mais puro sentido desta palavra: refletir, como num espelho.

O que falta, então, para que computadores tenham consciência? Aparentemente, bastaria elaborar um software com a função de pensar sobre si mesmo, mas isto daria ao computador os poderes mágicos que a nossa consciência tem? Provavelmente seria só um simulacro. 

Talvez o despertar da consciência seja algo que depende da vontade do próprio universo. Talvez a nossa estrutura física, nosso DNA, tenha uma configuração especificamente afinada para a captação da consciência cósmica, de fato como uma antena.

Aliás, se somos antenas, qual é o alcance de sua percepção? Nossa percepção estará limitada a este planeta ou será que podemos alcançar as estrelas e as consciências de outros seres mundo afora? Será que, em sonhos, já tivemos contato com outros mundos?

[Rascunho] Otimista

Costumo ser otimista
porque já conheço a tragédia.
Depois que a gente convive
com a dor, alívio espera.

Chegando ao fundo do abismo,
só lhe resta olhar pra cima.
Quem viveu muitos dias tristes
dorme sonhando com a alegria.

O otimismo é a cama
em que descanso minha alma.
Mesmo cercado pelas chamas,
água

(21,07,2021)

Notas:

É, o poema está incompleto mesmo. Claro que eu poderia completá-lo agora, mas já perdi o momento, a exata ideia e sentimento que eu tinha em mente na ocasião. Então deixo aqui este quase soneto.



Elon Musk, personalidade do ano e precursor do mundo cyberpunk

Elon Musk

A revista Time escolheu Elon Musk para o badalado título, a coqueluche do momento¹, Personalidade do Ano de 2021. Acho esta escolha bem emblemática.

Para Personalidade do Ano, a Time não necessariamente escolhe quem fez o melhor pela humanidade. Não é um Nobel da Paz² ou coisa do tipo, mas uma mensuração de influência, positiva ou negativa. Na última década, este título se dedicou bastante a políticos: Obama em 2012, Merkel em 2015, Trump em 2016, Biden e Harris em 2020 e também podemos incluir o papa Francisco em 2013, que em termos globais é uma importante figura política.

A última vez que um empresário do ramo de tecnologia foi Personalidade do Ano foi em 2010, com o Mark Zuckerberg, o que também foi emblemático. O reptiliano-alien-androide representou a era das redes sociais, que teve seu boom nesta década de 2010-2020. 

As redes sociais mudaram o mundo de uma forma que mal podemos estimar. Opiniões, hábitos, a consciência coletiva, novos vícios, novos gostos, novas antipatias, novas estupidezes... muita coisa surgiu ou evoluiu com as redes sociais. 

Logo, pode-se dizer que ninguém foi mais influente na transformação global nesta década do que o Mark Zuck. E olha que o pivete na época do título tinha só 26 anos (e agora 37 anos, a mesma idade em que o Bambam criou o meme do Birl).

O mundo viveu a fase dos reis e imperadores. Eram eles que exerciam a máxima influência sobre os rumos da civilização. Aí também se inclui a igreja católica, que é como um reino em termos políticos. Então veio a era moderna, os estados nacionais, e os rumos da história ficaram nas mãos de políticos, presidentes e primeiros-ministros. O auge desta fase foi o século 20 e vimos no que isto deu: as maiores e piores guerras da história humana.

O século 21 marcará a passagem da era dos políticos para a dos empresários de tecnologia. É um processo parecido com o que Asimov descreveu na Fundação, sendo que no livro estas eras levaram séculos para acontecer, enquanto nós estamos vendo as coisas mudarem em décadas.

Um sujeito como o Mark Zuckerberg teve mais influência nas transformações do mundo nesta década do que todos os políticos. Antes dele, teve o Bill Gates e Steve Jobs. Estes dois ainda representam a era dos boomers. Eles eram pessoas nascidas na década de 50, com visões de mundo do século 20 e seu modelo de negócios estava impregnado desta visão. O Jeff Bezos, nascido em 1964 foi a fase intermediária entre Bill Gates e Zuckerberg.

Sim, ainda hoje Gates e Bezos têm grande influência, mas eles já têm impérios estabelecidos. Os novos reinos do mundo serão as corporações (pois é, a profecia cyberpunk parece cada vez mais real). Amazon, Google, Microsoft e Meta/Facebook são os novos reinos desta era.

Então entra nesta equação o Elon Musk. Diferente dos outros citados, ele ainda não tem um reino estabelecido, no entanto, o que ele vem empreendendo tem potencial (e provavelmente vai se concretizar) para fundar novos reinos com um poder e influência nunca antes vistos. É justo que ele seja a personalidade desta nova década, pois o que vem aí pela frente será em grande parte protagonizado pelas empresas dele.

O debate sobre crise climática existe há décadas. Alguém aí lembra da Eco 92, do Roberto Carlos cantando sobre o fim das baleias e a Xuxa sobre o boto rosa? Antes deles o Gonzagão já cantava no seu Xote Ecológico de 1989:

"Não posso respirar, não posso mais nadar.
A terra está morrendo não dá mais pra plantar.
Se plantar não nasce, se nascer não dá.
Até pinga da boa é difícil de encontrar.

Cadê a flor que estava aqui?
Poluição comeu.
O peixe que é do mar?
Poluição comeu.
O verde onde é que está?
Poluição comeu.
Nem o Chico Mendes sobreviveu."

Recentemente veio a Greta Thunberg, claramente uma ferramenta política para falar aos mais novos, já que ela recorria mais à emoção do que propriamente a argumentação. Na verdade, Greta ainda é velha política, é o ativismo ecológico estilo Green Peace, apelando às emoções. 

Nesta década de 2020-2030, porém, algo vai mudar na agenda ecológica. Ela se tornará bem mais intensa e podemos dizer até autoritária, ou, em termos mais amenos, será mais normatizada, estabelecida em leis e, especialmente, taxas e impostos. O imposto de carbono está vindo aí.

O fato é que, com o acirramento da agenda ecológica, a Tesla do Elon Musk vai crescer como nunca. É aquela coisa, o pioneiro consegue terrenos maiores e melhores. A indústria de veículos em geral vai migrar para a tecnologia elétrica, tornando obsoletos os combustíveis fósseis³. Postos de gasolina vão falir ou migrar para o abastecimento de baterias elétricas. A Tesla, como é pioneira, já estará bem avançada quando tudo isto se normalizar.

Mais ainda, a Tesla também está desenvolvendo os carros autônomos, outra tendência da década. O hábito de possuir um carro será cada vez menos comum. Hoje em dia a cultura do Uber já está implantando esta mentalidade de "ter um carro pra que se posso alugar um quando preciso". 

Eis que ao longo da década o carro autônomo substituirá o motorista de Uber. Pois é, uma onda de mudanças no mercado de trabalho virá aí, já que Uber e motoboys têm sido uma oportunidade de renda pra muuuita gente. Na próxima década esta galera vai ter que se reinventar mais uma vez.

Bom lembrar que antes da Tesla o Elon Musk já havia participado de uma grande transformação global com o Paypal, praticamente lançando as bases do modelo de economia que se tornaria comum: o da transação digital, que depois seria complementado pelas criptomoedas e que se estabelecerá com as moedas digitais nesta década. 

O Brasil mesmo já está planejando testar sua moeda digital em 2022. Não que o dinheiro em papel vá acabar tão cedo, mas ele será cada vez mais incomum, assim como é incomum hoje pagar alguma coisa com um cheque.

É curioso então ver como o Elon Musk já estava presente nesta revolução global envolvendo as finanças e agora irá protagonizar a revolução dos carros elétricos e autônomos. Se parasse por aí, ele já estraria para a história como uma das figuras mais influentes do século 21, só que o danado, nerd que é, soube dedicar seus bilhões em projetos que olham beeem mais pra frente: Neuralink e SpaceX.

A chance destas duas empresas falirem é grande. É um grande tiro de canhão em direção à lua, bem no estilo Julio Verne. Musk planeja nada menos do que construir uma base em Marte, base que será frequentada ocasionalmente por humanos e operada por robôs, os Tesla Bots. A longo prazo (o que em termos viáveis significa séculos), ele vislumbra a terraformação de Marte. Qual bilionário antes dele teve coragem de investir em uma ideia tão fantasiosa?

Uma simples viagem tripulada a Marte já é em si uma tarefa colossal e caríssima, o que dizer então da construção de uma base. A terraformação de Marte será o empreendimento mais gigantesco já feito pela humanidade, mas isto aí já é coisa que deixaremos para as gerações dos próximos séculos resolverem. O fato é que tudo isto está começando por iniciativa do Elon Musk. 

Quanto ao Neuralink, é um projeto que dependerá não só de brilhantes cientistas como de convincentes marqueteiros. Não será fácil popularizar um chip que deve ser implantado no crânio (se bem que o piercing e a tatuagem hoje são coisas bem comuns e o processo de implantação do chip não é muito mais invasivo que isso).

O implante do chip é o de menos. O mais invasivo no Neuralink mesmo será o acesso literal à mente humana, com toda sua imensidão de dados. Será um boom nunca antes visto no data mining.  Pois é, depois da internet das coisas, que já é uma realidade, vem aí a internet dos corpos, que hoje existe na forma de equipamentos vestíveis, como o smart watch, e futuramente virá como implantáveis. Aí sim poderemos dizer definitivamente que vivemos na era cyberpunk.

O potencial do Neuralink é assombroso, para o bem e para o mal. Mais do que os carros elétricos ou a viagem a Marte, se esse troço der certo, vai mudar a humanidade de uma forma comparável à mudança que tivemos quando surgiu a internet. Mais ainda, pois a conectividade humana será ininterrupta. Nos tornaremos criaturas diuturnamente conectadas, até mesmo quando dormimos. 

É uma visão bem distópica, nos traz à mente a comunidade dos borgs de Star Trek. Ter um chip na cabeça que nos mantém ligados todo o tempo na internet e em supercomputadores que vão aprimorar nossas percepções, habilidades e nossa velocidade de comunicação e aprendizado é algo fascinante e ao mesmo tempo terrível. Será a ciborguização da humanidade, pela primeira vez em nossa história conhecida (sabe-se lá se em eras remotas da nossa história de 250 mil anos não houve alguma fase perdida em que algo parecido já aconteceu).

Sendo bem realista, acho improvável que algo como o Neuralink se torne o novo smartphone nesta década. Ora, os óculos VR existem desde a década de 90 e até hoje a coisa não é tão comum ou acessível. Nesta década, porém, parece ser a vez do VR finalmente. É isto que será o trend antes do chip na cabeça. É uma ideia bem mais confortável poder ter acesso à internet usando um óculos de aparência comum, do que tendo um troço implantado no cérebro.

Logo, neste aspecto o Zuckerberg vai continuar relevante e ele já está investindo pesado nesta área. O metaverso, que dependerá bastante dos óculos VR, é um terreno que será pioneiramente do reino Facebook, mas todos os outros gigantes terão também seus latifúndios. Será uma era de avatares fofinhos e deslumbre com toda a ambientação de realidade aumentada que este novo mundo nos apresentará.

Ao mesmo tempo em que nós, humanos, estaremos migrando para o metaverso, fazendo nossas reuniões (como disse o Bill Gates recentemente, nos próximos três anos as reuniões das empresas serão todas no metaverso), socializando (claro que o "rolé com os amigos" vai continuar existindo de forma presencial, mas será um evento tão raro quanto festa de aniversário, comparado ao encontro virtual no metaverso que será um hábito semanal ou diário das pessoas), frequentando cultos religiosos (pois é, a ciberreligião vem aí) e até turismo, o mundo físico será ocupado pela mão de obra robótica.

Aí mais uma vez entra o Elon Musk com o Tesla Bot, os carros autônomos e, mais ainda, a sua colossal infraestrutura de internet por satélite que já está em funcionamento, o Starlink. É isso que vai possibilitar o funcionamento de uma vasta internet das coisas envolvendo drones, carros e robôs diversos, indo e vindo por toda parte, fazendo entregas, limpando as ruas e até cortando a grama das praças.

Obviamente, o mundo não muda homogeneamente. Este cenário acontecerá mais rápido nas metrópoles, que sempre foram o local de teste das inovações tecnológicas. Nas cidadezinhas do interior muita coisa vai demorar a acontecer, tanto que ainda hoje existem carroceiros andando com seus jumentinhos em pequenas cidades. É bom que seja assim, pois existe uma opção aos que não se sentirem confortáveis com tanta invasão tecnológica. Quem não estiver a fim de viver este mundo novo, fuja para o interior. 

Mesmo no interior, porém, certas tecnologias se normalizarão. O metaverso chegará em todas as vilas, até em tribos no meio da selva. Índios hoje usam smartphone e amanhã usarão os óculos VR, o que é uma coisa bem pitoresca de se imaginar. 

Enfim, por tudo isto a escolha do Elon Musk neste início de década foi emblemática. Ele de fato representa o que está por vir, esta nova era pré-cyberpunk que vai mudar o mundo até 2030. 

Notas:

1: Umas gírias arcaicas em um texto futurista, por amor à ironia.

2: Não que Nobel da Paz hoje signifique muita coisa, já que o título é dado até a presidentes que promoveram intermináveis guerras, né, Senhor Obama.

3: Na verdade os combustíveis fósseis vão continuar em uso, porém em usinas, como complemento na geração de energia e provavelmente ainda em aviões, navios e foguetes, mas o usuário final, o indivíduo comum terá acesso apenas a máquinas que usam energia elétrica.

Eu

O que acontece quando nós mudamos? 
O eu antigo simplesmente desaparece? 
Há um cemitério dos eus que nós já fomos? 
Eles dissolvem-se? Eles desvanecem? 
Se cada vez que em outro nos tornamos,
com o que fomos outrora o que acontece?
Suspeito eu que existe um recanto
no vasto mundo da alma que os recebe.
É como um Hades ou os Elísios Campos
onde nossos heróis e monstros adormecem.
Que multidão eu já guardei cá dentro.
Aposentei tantos eus, tantos momentos.
E este que sou agora, então penso,
quando será a vez do recolhimento?
O que é o eu senão uma multidão,
uma junção de diversos fragmentos?
A alma é sólida como a gravidade,
fragmentada e etérea como o tempo.

(10,12,2021)

Movie 43, um filme tosco com um grande elenco

Movie 43 (2013)

Já escrevi aqui algumas vezes sobre este peculiar gênero do cinema americano que mistura comédia, sacanagem e nonsense. É o caso de A Dirty Shame (2004)¹, Extreme Movie (2008)² e, claro, o grandioso American Pie (1999-2020).

Este gênero está quase extinto, caçado pela patrulha do politicamente correto. Hoje em dia é difícil um grande studio ter coragem de bancar algo do tipo, pois algo parece ter desligado a área do cérebro responsável por compreender o humor satírico. A sátira agora é entendida como um insulto literal e também parece que a apreciação pelo nonsense se tornou escassa. "Why so serious?".

Movie 43 é um dos últimos espécimens deste gênero em extinção, lançado em 2013, um ano em que o Twitter ainda era usado majoritariamente para conversas aleatórias e memes, antes dele ser tomado pela política e o amargor como seu assunto principal. Ele tem uma estrutura narrativa parecida com Extreme Movie: é uma coleção de pequenos contos bem esculhambados.

Só que há um fio que liga tudo. Dois garotos inventam uma mentira sobre um suposto Movie 43 que seria um filme proibido e fazem o irmãozinho mais novo, que é metido a hacker, buscar na deep web. Ao longo da busca, ele vai encontrando uns filmes malucos que vão então preenchendo a história. 

Hugh Jackman; Movie 43 (2013)
Além da referência a Gotham, também tem um conto com Batman, Robin, Wonder Woman e Supergirl.

Kate Winslet, Hugh Jackman; Movie 43 (2013)

Kate Winslet, Hugh Jackman; Movie 43 (2013)

O primeiro envolve uma mulher que vai num encontro com um cara rico, bonito e famoso, mas, quando ele tira o lenço do pescoço, revela uma deformidade inesperada: um par de testículos bem embaixo do queixo. É uma situação hilária por causa do desconforto que ela sente em falar com o cara enquanto ele balança as bolas e todas as pessoas no restaurante parecem fingir que nada há de incomum no sujeito.
 
Em outro filme, uma mulher surpreende o namorado com o fetiche escatológico. Outro, ainda mais bizarro, mostra um casal que "educa" o filho de uma forma abusiva, praticando bullying e até incesto porque eles fazem uma espécie de roleplay simulando o que deveriam ser os colegas adolescentes dele.

A coisa também tem seu momento sci-fi, com um aparelho de mp3, parodiando o iPod que era moda na época, só que este novo produto, chamado iBabe, é uma robô humanoide pelada. Como a ventoinha do robô fica dentro da vagina, torna-se comum o acidente de garotos que perdem o pênis porque, como era de se esperar, tentam brincar com a boneca robótica.

Tem a história de uma adolescente que menstrua pela primeira vez no sofá do amiguinho, criando uma situação de pânico e constrangimento. E a coisa também vai para o lado do humor mórbido, com um cara que rapta um anão irlandês para dar de presente ao amigo, acreditando que é um leprechaun. Outro anão vem resgatá-lo, mas no fim os dois psicopatas matam os anões e jogam no lixo. Pois é, não é uma comédia para os mais sensíveis.

Movie 43 (2013)

A cereja do bolo é o último curta, com uma mulher que está na casa do namorado e flagra o gato dele se masturbando enquanto olha as fotos do cara. Enciumado, o gato passa por cima da moça com um carro e atira nela com uma doze (pois é, gatos conseguem fazer isso), mas ela reage e tenta matar o bicho com uma pá na frente das crianças em uma festa de aniversário. As crianças então atacam a mulher e a matam perfurando-a com as colherinhas de plástico da festa. Uma historinha bem suave.

E olha que um grande elenco hollywoodiano topou participar dessa presepada: Emma Stone, Richard Gere, Dennis Quaid, Kate Winslet, Chloe Moretz, Hugh Jackman, Halle Berry, Anna Faris, Chris Pratt, Elizabeth Banks e outros mais. A direção e roteiro é uma obra coletiva, feita por uma dúzia ou mais de pessoas, cada qual responsável por um conto. Entre os diretores, temos a Elizabeth Banks, Bob Odenkirk (o Better Call Saul) e ninguém menos que o perturbado James Gunn. Claramente foi ele quem escreveu a história do gato. 

Naturalmente, os cinéfilos e a "crítica especializada" detestaram o filme e se questionam como tantos atores de grande carreira toparam participar dessa tosqueira. Pois eu digo. Eles toparam porque são pessoas que sabem brincar e não se levar demais a sério. Veja o Hugh Jackman, o ator que fez um papel tão dramático e intenso nos Miseráveis (que valeu indicação ao Oscar), agora estava interpretando um cara que tem as bolas penduradas no pescoço.

Movie 43 esfrega as bolas da comédia na cara dos cinéfilos e dos moralistas do politicamente correto.

Movie 43 (2013)

Notas: