É comum filmes futuristas abordarem um destino decadente da humanidade. 1984, Admirável Mundo Novo, Blade Runner, Matrix, Fahrenreit 451, Equilibrium, Laranja Mecânica, Metrópolis, A Ilha, Planeta dos Macacos, Robocop, Minority Report, V de Vingança, Watchmen, Tron, todos estes têm em comum a visão pessimista do futuro. A isto se chama distopia, uma ideia oposta à da utopia, que espera grandes progressos e um futuro glorioso e pacífico para a civilização.
Aliás, esse é um aspecto no qual a série Star Trek se diferencia do clichê sci-fi distópico. O criador Gene Roddenberry sempre fez questão de enfatizar que Star Trek se passa num mundo que alcançou não só a paz global como cósmica e a missão da Enterprise é antes de tudo diplomática. Eis um futuro desenhado com otimismo. Ironicamente, o ator Leonard Nimoy, o famoso Spock de Star Trek, participou de uma adaptação de Admirável Mundo Novo, em 1998.
Idiocracia (2006) é uma distopia, mas, diferente de todos estes filmes, tem um elemento a mais: o humor. Mais precisamente, a sátira. A distopia tem geralmente um propósito de alerta, ela nos avisa que, se continuarmos seguindo certo rumo, podemos ter o mesmo futuro decadente descrito na história. A sátira faz o mesmo, porém usando do tom de deboche e despudor. Ela expõe os males de uma forma ridícula, ridícula no sentido de vergonhosa e de algo que provoca riso, muito riso. Como diz o clássico lema: "Ridendo castigat mores" (criticamos os maus costumes de uma sociedade, rindo deles).
O filme é dirigido por Mike Judge, que tem experiência em sátiras como a série Beavis and Butt-Head. Conta com a participação de Terry Crews, no papel do semi-imbecilizado presidente Camacho. A história começa com um experimento militar que congela duas cobaias (Luke Wilson e Maya Rudolph) que, acidentalmente, irão despertar 500 anos no futuro.
Este futuro bizarro é marcado pela decadência do intelecto humano, fruto de uma espécie de involução que se explica numa lógica simples: as pessoas mais inteligentes costumavam ter menos filhos, enquanto as imbecis se reproduziam descontroladamente, de modo que logo o mundo inteiro se viu tomado pela "linhagem" dos estúpidos. As cobaias, que em seu tempo eram pessoas de QI médio, no futuro são consideradas as mais inteligentes do planeta.
O filme não alcançou grande repercussão, mas considero-o uma obra-prima subestimada. Numa primeira leitura, parece um humor bobalhão, pastelão, tão idiota quanto a própria idiotice que debocha. Mas é aí que está a sua genialidade.
É uma espécie de metalinguagem: fala da imbecilidade de uma forma imbecil. E, principalmente, faz uma caricatura de nossa própria realidade, particularmente da sociedade estadunidense, da indústria de entretenimento e da influência das grandes corporações na política e no rumo da civilização.
Há muitos detalhes que demonstram isso. O entretenimento das massas neste mundo do futuro é a televisão com programas de conteúdo simplório, humor pouco inteligente (como o programa predileto de todos em que o personagem é constantemente machucado nos testículos e nada mais).
Há arena com carros se destruindo e as multidões berrando enlouquecidas, os veículos exibem um design fálico, as pessoas têm um comportamento sexual explícito e bestializado, o sexo está tão banalizado que se torna o entretenimento e o objeto de consumo padrão. Em todos os locais há prostitutas: cinemas, cafeterias, lanchonetes. E... as pessoas não leem livros.
O domínio corporativista se nota por meio da empresa de isotônicos que simplesmente comprou as instituições governamentais, privatizou a água e tornou seu produto o líquido obrigatório. Ninguém mais bebe água pura. Os bebedouros servem isotônico, até a irrigação das plantas era feita com isto. E o resultado foi um grande desastre ecológico, já que as plantas e a terra sofreram com o excesso de sódio.
Além disso, também as corporações erraram ao dar mais atenção ao supérfluo nas pesquisas científicas. A engenharia genética, em vez de se ocupar em pesquisar melhorias para o intelecto e as capacidades humanas, buscava a cura da calvície e tratamentos para o desempenho sexual. E não é assim hoje, de certa forma?
Por fim, mostra que todos se tornaram dependentes da automação. As tecnologias computadorizadas, feitas por humanos do passado, de tempos em que ainda tinham QI suficiente, se tornaram objetos que os imbecis mal sabem operar e sem os quais não são capazes de fazer coisa alguma.
Ora, tudo isto não é uma previsão do futuro. É uma descrição do presente. O corporativismo está destruindo os recursos naturais. A automação está caindo no paradoxo, pois ao mesmo tempo em que facilita a vida das pessoas, as torna dependentes e até débeis.
A cultura fálica, "testosteronizada", é fortemente imbecilizante por focar sua atenção em atributos não intelectuais e estritamente físicos. A substituição da razão pelo instinto bruto é ilustrada na cena do tribunal em que argumentos de nada valem e são derrubados pelo apelo à emoção e a excitação das massas.
O nosso tempo já presencia tudo isto de alguma maneira. Sendo assim, o filme acusa a nossa própria era, de forma indireta, sugestiva, de ser uma era de idiocracia, de idiotização das massas.
Curiosamente, Nelson Rodrigues já havia comentado sobre isto que ele chamou de "revolução dos idiotas". Em suas palavras: "Os idiotas descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas".
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