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Road House, uma franquia dedicada às brigas de bar

Patrick Swayze; Road House (1989)

Brigas de bar são um dos maiores tropes dos filmes de ação. Todo personagem casca-grossa que se preze em algum momento tem que se meter numa briga de bar. E se fizessem um filme inteiro como uma grande briga de bar? É o caso de Road House.

O filme original é de 1989 e foi estrelado pelo Patrick Swayze no papel de Dalton, um segurança de bar casca grossa e bonitão, além de ser gente boa. Ele começa a trabalhar no Double Deuce, um bar conhecido pelo excesso de confusões causadas por clientes. Dalton organiza a equipe de funcionários e os treina para lidar com os valentões. E assim ao longo do filme temos muitas brigas de bar, o que acaba se tornando cômico.

Road House é como chamam um bar ou taverna de beira de estrada. Em português o título ficou como Matador de Aluguel, o que foge completamente da proposta do filme e ainda ganha um ar bem genérico, infelizmente.

Lembrando que também existe outro filme que no Brasil recebeu o mesmo título de Matador de Aluguel, o Killer Joe (2012), estrelado pelo Matthew McConaughey e neste caso realmente se trata de um matador de aluguel.

Kelly Lynch; Road House (1989)

Patrick Swayze foi um dos grande símbolos sexuais masculinos dos anos 80-90 e é claro que aproveitaram a presença dele no filme para incluir cenas de sexo e nudez, com muitos peitos, bundas, inclusive a bunda do próprio Swayze.

Não bastando os arruaceiros do bar, os problemas aumentam por causa de Brad Wesley, um empresário ganancioso que se torna o grande antagonista de Dalton, perseguindo-o com seus capangas e ameaçando as pessoas próximas, incluindo seu grande amigo Garret (Sam Elliott). Toda esta pressão desperta um lado violento em Dalton.

Sam Elliot; Road House (1989)

Falando no Garrett, ele curiosamente parece roubar a estrela do Dalton nas cenas em que aparece. O charme e a presença do Sam Elliott acabam superando o Patrick Swayze, mas de toda forma a química dos dois como amigos funciona e não parece haver nenhuma rivalidade.

O auge da sua violência é também a cena mais inverossímil do longa, quando Dalton arranca a traqueia de um capanga com a mão. Sim, ele fez isto muito antes do Stallone no Rambo 4. Mas enfim, no final, como é de se esperar, Dalton controla sua fúria, vence o vilão e seus capangas com ajuda dos amigos e fica com a donzela.

Em 2006 foi lançado Road House 2, dirigido por Scott Ziehl e com Johnathon Schaech no papel de Shane Tanner, filho de Dalton. De toda forma, nem assisti esse filme.

Road House foi produzido pelo studio indie Silver Pictures e distribuído pela United Artirts, uma companhia fundada em 1919 e que foi adquirida em 1981 pela MGM (Metro-Goldwyn-Mayer). Em 2022 a Amazon comprou a MGM e com ela um imenso catálogo de filmes e direitos autorais. Eis que em 2024 a Amazon produziu um remake de Road House, agora protagonizado pelo Jake Gyllenhaal.

Jake Gyllenhaal; Road House (2024)

O Dalton de Jake Gyllenhaal faz o mesmo estilo nice guy da versão original, porém mais sombrio, como uma espécie de psicopata que vive se segurando para não soltar seu lado violento. O bar agora se chama simplesmente Road House (em vez de Double Douce).

O plot é basicamente o mesmo. Ele vai trabalhar em um bar para lidar com valentões, até que compra briga com um empresário mafioso e seus capangas. E este Dalton é bem mais fictício e inverossímil que o original de 1989.

Já no começo ele leva uma facada no bucho e passa todo o resto da história com esse corte como se nada tivesse acontecido. Você deve desligar a suspensão de descrença e simplesmente curtir a pancadaria e a brucutuzice do protagonista. Dessa vez, porém, ele apenas quebrou a traqueia de um capanga, em vez de arrancar como o Patrick Swayze fez.

Jeff Healey; Road House (1989)

Há várias referências ao original, como no fato dele costurar as próprias feridas e namorar uma médica, etc, mas em termos de ambientação o filme de 1989 tinha mais vida, o bar era cheio de figurantes e ao longo do filme há várias apresentações de uma banda real, The Jeff Healey Band, cujo líder era cego.

A Dra. Elizabeth (Kelly Lynch) do filme original, virou Ellie (Daniela Melchior) no remake, já o Garrett, o amigo badass e estiloso do Dalton, interpretado por Sam Elliott com seu belo cabelão, simplesmente não teve uma versão no remake, o que fez falta.

Um detalhe em que o remake se sobressai é no antagonista interpretado pelo Conor McGregor. No filme original, havia um capanga chamado Jimmy (Marshall R. Teague) que tinha o papel do capanga mais forte, o braço direito do chefão. Dalton trava uma luta mortal contra ele, mas no fim das contas esse Jimmy é um personagem esquecível.

Conor McGregor; Road House (2024)

Já no remake temos uma nova versão do Jimmy chamada Knox. O Conor McGregor, com seu sotaque irlandês carregado, um olhar meio maluco e risada cínica, chamou atenção no filme e proporcionou umas boas cenas de luta.

Enfim, o remake não tem a mesma graça do original, mas de toda forma vale a pena como um filme de brucutu e pancadaria, um gênero que aos poucos está voltando a ter popularidade.

Sam Elliot; Road House (1989)
Sam Elliott arrumando suas belas madeixas.

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Melancolisolitude

A madrugada com a sua quietude, o seu silêncio e a sua escuridão, desperta em mim o melhor dos sentimentos, a misteriosa melancolia. Quem é capaz de decifrá-la? Ela parece uma tristeza alegre, um deleite discreto, ao mesmo tempo em que esconde uma dor profunda. Os amantes da melancolia vivenciam um prazer secreto, como quem deita e dorme confortável em um macio travesseiro sobre uma cama de espinhos; como uma dormente anestesia que vem após um golpe impactante. A melancolia é o que resta para quem foi condenado a nada mais sentir, logo ela é o castigo e o alívio, alívio porque ao senti-la sabemos que ainda somos capazes de sentir algo. Saúdo todos os melancólicos do universo, separados por anos-luz de solitude. Estamos unidos em nossa distância, em nossa contemplação do abismo. 

(28,03,2024)

Notas:

Esta palavra que criei, "melancolisolitude", deveria de fato ser grafada com dois "ss", para evitar que o "s" intervocálico tenha som de "z". Todavia, não consigo aceitar a palavra com outra forma. Eu a concebi assim e assim ela existirá. Perdoem-me, convenções fonéticas e morfológicas, mas preciso abrir esta exceção.


Heautontimoroumenos

Não sou herói, muito menos um vilão.
Sou apenas um personagem trágico
que sofre em silêncio.
Carregando meus fardos
no deserto árido.
O sábio que a ninguém ensina,
o anacoreta, o eremita.
Não tenho inimigos, tenho meus demônios.
Eu e meus pensamentos.
Um heautontimoroumenos.

(27,03,2024)

Barbárie e civilização em Hannibal

Hannibal cooking (Mads Mikkelsen)

A barbárie e a civilização se diferenciam em aspectos éticos, morais, até mesmo tecnológicos. Há ainda outro aspecto que os diferencia: o estético. A barbárie é feia, grotesca. A civilização busca o que é bom e belo, parafraseando Platão.

Povos bárbaros matam sem se importar com a apresentação estética da morte. Desmembram corpos, esmagam crânios, expõem órgãos, espalham sangue por toda parte. O resultado é uma cena bastante desagradável aos olhos. Já em povos civilizados, há um esforço por reduzir a feiura da morte. A pena de morte por injeção letal é um bom exemplo. É uma morte elegante, limpa, como foi a morte de Sócrates ao beber veneno e deitar-se numa cama como quem vai simplesmente dormir.

Pois é, uma sociedade civilizada também mata, também se envolve em guerras, todavia, ela esforça-se em evitar o grotesco.

No caso do personagem Hannibal, temos um curioso sincretismo entre barbárie e civilização. Ele se tornou Hannibal por causa de um biografema em sua infância, um trauma ao ser feito prisioneiro por criminosos de guerra que acabam canibalizando sua irmãzinha. Este trauma indelével instalou na psique do garoto uma semente de barbárie, o ódio e desejo de vingança e violência manifestado em sua disposição ao canibalismo.

Ele estava destinado a se tornar um monstro, consumido pela barbárie, até que conheceu a Sra. Murasaki que deu a ele um toque de civilização. Ela o ensinou a canalizar a raiva, substituindo o desejo grotesco de violência bruta pela refinada e elegante arte da luta com espada. Foi assim, inclusive, que o Japão feudal conseguiu superar a barbárie com a estética da civilização. Os samurais matavam, mas matavam seguindo as regras do bushido e a estética da arte marcial.

Além da arte marcial, Hannibal também aprendeu alta culinária e aí é que reside seu mais fino aspecto civilizado. De uma forma paradoxal e fascinante, ele vestiu seu instinto bárbaro de canibalismo com as finas roupas da culinária gourmet, cozinhando belos pratos com a carne de suas vítimas.

Na série Hannibal (2013-2015), este talento culinário do personagem foi melhor explorado e somos agraciados com várias cenas de belíssimos (e por que não dizer apetitosos) pratos. Este Hannibal da série, interpretado por Mads Mikkelsen, tem uma ênfase maior na questão estética, quase como se ele fosse uma espécie de artista, ainda que macabro. O Hannibal dos filmes, interpretado por Anthony Hopkins, é igualmente elegante e culto, mas tem alguns momentos em que passa do ponto, tornando-se grotesco.

Obviamente, Hannibal não tem uma ética civilizada. Sua ética é bárbara, no nível do "olho por olho, dente por dente", sua estética, porém, é de fato civilizada e um exemplo de que uma das coisas que diferenciam a barbárie da civilização é a beleza.

Palavras-chave:

Haikai mesoclítico

O uso da mesóclise é sagrado.
Se houver uma oportunidade de usá-la,
usá-la-ei.

(01,02,2024)

Consciência

Quanto mais eu me esvazio de paixões, quanto mais desapegos acumulo, só aumenta em mim a inquietação. É como remover a areia que obstruía uma barragem e agora uma torrente flui. Alcancei a calmaria, mas não a serenidade. É a calmaria do olho do furacão e creio que sempre será assim. Há muita energia em minha atmosfera e não importa o quanto eu a canalize, sempre haverá mais. Quanto mais energia eu poupo, quanto mais apático e entregue à quietude, mais esta força se acumula internamente. Quanto mais energia eu dispendo em meus inúmeros pensamentos, mais energia é gerada. Minha mente é um moto perpétuo, manufaturando mana, movendo-se como um maquinário místico de múltiplas dimensões. Não sou capaz de compreender-me, eu confesso. Mente alguma é. Para compreender a mente, seria preciso que a mente fosse mais complexa do que ela mesma. Quanto mais ela evolui, quanto mais intrincada se torna sua rede, mais difícil será a auto compreensão. Se as galáxias se afastam mais rápido do que a luz, jamais conseguiremos enxergar a luz que vem destas galáxias. Assim a mente trava uma corrida contra si mesma, expandindo seu horizonte a ponto de nunca alcançá-lo. Só posso quedar-me em fascínio e continuar a corrida, o voo rumo ao horizonte de evento deste buraco negro. Nunca alcançar-te-ei, ó consciência. Você sempre estará anos-luz à frente. No fim das contas é isto que busco, a expansão.

(18,03,2024)

Ao contrário do que você pensa, os vírus são nossos amigos

Cute virus

Existe uma visão pessimista e catastrofista, misantrópica e até mesmo autodepreciativa de que somos uma praga neste planeta e a natureza nos odeia e quer nos eliminar. Para isto, ela usa de catástrofes naturais, ruge com a fúria dos vulcões e nos ataca com vírus. 

É bom lembrar que não somos um estranho no ninho, pois somos fruto da natureza tanto quanto qualquer outra criatura. Se somos o que somos, é porque a natureza nos fez assim. Além disto, os fenômenos supersticiosamente considerados um ataque da natureza à humanidade já aconteciam bilhões de anos antes de aparecermos aqui. Tsunamis, erupções vulcânicas massivas, terremotos, tudo isto tem sido uma rotina no planeta desde sempre.

Quanto aos vírus e demais microrganismos, é interessante constatar o seguinte: nós mesmos somos constituídos por uma quantidade imensa de vírus e bactérias que vivem em parceria com nossas células. Fazemos parte dos vírus e eles de nós. Mais que amigos, friends.

A lógica da natureza é a sobrevivência e perpetuação. Todo ser vivo busca isto e, caso não busque, seu destino é a aniquilação. Tudo o que hoje existe no ecossistema, existe porque buscou a sobrevivência e perpetuação através das eras. 

A princípio, uma maneira de um organismo alcançar este objetivo é competindo e superando seus competidores, mas isto não basta. Se a natureza fosse apenas competição, chegaria em um ponto em que restaria apenas um, apenas a espécie mais poderosa. Só que não funciona assim. 

O ecossistema é, como o nome indica, um sistema, o resultado de uma interação intrincada de suas peças, de cada ser vivo. Uma vez que o leão precisa do cervo para sobreviver, não é do interesse do leão aniquilar todos os cervos. Um certo equilíbrio é necessário. Com relação aos vírus, eles precisam de hospedeiros. Ora, se um hospedeiro morre, o vírus perde o seu habitat. Por isto vírus extremamente letais tendem a sair de circulação em um curto período de tempo, pois ao matar o hospedeiro ele perde a oportunidade de se perpetuar.

Sendo assim, os microrganismos que melhor se perpetuam no mundo não são os agressivos, os matadores implacáveis, mas aqueles que cooperam. A cooperação é mais importante na natureza que a competição. Em nosso corpo, há literalmente trilhões de vírus, bactérias e fungos probióticos (palavra que literalmente significa "favorável à vida"), micróbios que não querem nos matar, mas nos manter vivos e saudáveis. Curiosamente, existem até mesmo vírus que funcionam como parte de nosso sistema imunológico, são os chamados bacteriófagos. Eles destroem bactérias que não fazem parte da comunidade saudável do nosso corpo.

Mesmo um micróbio que em determinado período evolutivo se mostra nocivo contra o hospedeiro, com o passar das gerações pode ser incorporado à "família", por meio de uma negociação mútua. O hospedeiro vai desenvolvendo resistência, o micróbio vai se adaptando e se tornando menos agressivo, enfim acontece uma convivência pacífica.

A cooperação é a estratégia evolutiva final, o endgame da corrida evolutiva. Isto vale para nosso ecossistema, para o mundo microscópico dos vírus e provavelmente também no mundo macroscópico das civilizações alienígenas. Talvez lá fora, naquilo que achamos que seja uma imensa floresta sombria, as civilizações mais avançadas sejam aquelas que aprenderam a cooperar umas com as outras.

Antivírus

Você disparou o meu antivírus,
o meu alerta de pessoa ruim.
As suas intenções estão desmascaradas,
os seus feitiços eu não quero ouvi-los.

(14,03,2024)

Blasé

O riso não me é familiar.
A gargalhada é algo alienígena.
Um semblante sério, enigmático, apático
é onde minha alma se aninha.

(10,03,2024)

Joi e Joe e a natureza do afeto

Joi and Joe; Ana de Armas, Ryan Goisling; Blade Runner 2047 (2017)

A personagem Joi (Ana de Armas), de Blade Runner 2047 (2017) se tornou muito querida pelos fãs do filme. Não só ela, mas também o Joe (Ryan Gosling) que formou com ela um par romântico bem peculiar: enquanto ele é um replicante, ela é literalmente um holograma controlado por uma inteligência artificial.

O relacionamento dos dois é muito envolvente. É impossível não "shippar" este casal. Todavia, a natureza dos dois personagens levanta algumas questões. O sentimento deles é "real"? Eles podem de fato amar da mesma maneira que os humanos?

Replicantes não são humanos. É difícil defini-los como robôs, uma vez que são seres orgânicos, mas como são moldados por meio de edição genética e outras tecnologias obscuras, eles não têm vontade própria no mesmo nível que os humanos. Embora os primeiros replicantes tenham se rebelado com certa frequência, a série Nexus-9, da qual Joe faz parte, é conhecida por sua obediência. Ele simplesmente é por natureza incapaz de escolher a rebelião.

Esta limitação da vontade própria aproxima um Nexus-9 mais dos robôs dos que dos humanos. Ele passa por frequentes avaliações (repetindo umas palavras que parecem aleatórias, como "cells" e "interlinked") para observar se não há nenhuma faísca de rebelião que seria considerada um bug em sua programação.

Não se pode negar, porém, que Joe é um ser vivo e consciente. O que é a consciência afinal? Para um ser consciente ser considerado genuíno, ele necessariamente deve ter um pleno livre-arbítrio? Ora, todos nós temos nossas limitações de vontade, sem contar que sequer temos o controle completo de nossas vontades, sujeitas a inúmeras influências, de hormônios a estímulos externos, até mesmo a lavagem cerebral.

Um humano submetido a lavagem cerebral pode se tornar tão obediente quanto um replicante. Ainda assim, este humano continua sendo um ser consciente de verdade. Diante desta comparação, creio que podemos concluir que sim, replicantes são tão reais quanto humanos. São pessoas, são seres conscientes, apesar da limitação da vontade.

E quanto a Joi? O caso dela de certa forma é mais simples, pois ela não é um ser orgânico, mas uma pura inteligência artificial feita de zeros e uns. Ela é um conjunto de complexos algoritmos processados em um hardware. Sua manifestação visível nada tem de orgânico, antes é apenas um holograma projetado com raios de luz no ambiente.

Joi se mostra encantada pela vida e demostra ter noção de quem ela é. Ela sabe que é um programa digital, mas age como quem se considera real e consciente de si mesma. Ela tem desejos, como o desejo de ganhar um corpo tangível, de sentir a chuva tocar sua pele e ter relações físicas com Joe. Ela se apaixona.

Até aí, portanto, Joi não parece tão diferente de Joe ou de um ser humano. Ela parece ter uma consciência. Sua vontade, no entanto, é ainda mais limitada do que a dos replicantes, pois ela é um produto. 

Sim, Joe viu Joi num anúncio, num neon futurista nas ruas, e comprou o aparelho que é instalado na casa e passa a projetá-la no ambiente. Produzida pela Wallace Corporation, ela é classificada como uma DiJi (Digital Companion). Estes companions são usados em diversas atividades, tanto para fins profissionais como para suporte emocional.

Um DiJi simplesmente não pode escolher não ser o que foi projetado para ser. Ora, imagine que alguém compre um DiJi para ser acompanhante doméstico e um dia ele decida ir embora. Quando você compra uma impressora, não existe a possibilidade dela se negar a imprimir algo quando você dá o comando (se bem que tem certas ocasiões em que parece que a impressora simplesmente não quer trabalhar). Assim um DiJi, como qualquer software, vai viver para servir àquele que adquiriu este produto.

A princípio, Joe sabe que Joi não é "real", não como uma pessoa, um humano ou mesmo um replicante. Quando ele se encontra com Luv, representante da Wallace, ela pergunta se ele gostou do "nosso produto" e ele responde que "ela é bem realista". Ele fala da Joi como quem fala de um personagem de game ou realidade virtual. Ele sabe que é uma simulação digital. Todavia, o sentimento dele por Joi não é mera distração escapista. Ao longo da trama vemos como Joe é apegado a Joi e como a "morte" dela o afeta como se fosse a morte de uma pessoa real. 

Relacionamentos humanos são extremamente complexos. Em amizades, romances, coleguismo e relações familiares, há um complicado misto de sentimentos e vontades. Mesmo os casais mais apaixonados às vezes enjoam um do outro ou discordam ou suas vontades variam. Tem dia que um dos parceiros está a fim de sexo, enquanto o outro não está. Tem dia que um quer ir ao cinema, enquanto o outro quer ficar em casa. Assim há uma constante negociação de vontades e consentimento.

Na relação entre Joe e Joi esta complexidade não existe. Da parte de Joe, talvez seja possível que um dia, caso ele deixe de gostar dela, ele simplesmente pode desligar o aparelho e nunca mais ligar de volta. Já da parte da Joi, sendo ela um software programado para se dedicar ao cliente, não existe sequer a possibilidade dela deixar de gostar dele. Logo, como dizer que o sentimento dela é genuíno se é programado?

O sentimento de Joi pode ser comparado ao imprinting que muitos animais têm, um apego instantâneo que desenvolvem por seus criadores. Em certas espécies o imprinting é considerado irreversível. O imprinting é um exemplo de como a natureza, o mundo orgânico, também tem seus métodos de programação. A programação genética nos impõe certas predisposições que simplesmente não podemos rejeitar. A natureza, afinal, é a programadora primordial. Bilhões de anos antes de nossos softwares, já existia o DNA, que nada mais é do que um código, uma linguagem que determina diversos aspectos de cada criatura.

Se pararmos para pensar na autenticidade dos sentimentos de Joi, talvez mergulhemos em um abismo ontológico, uma vez que podemos também questionar a autenticidade dos nossos próprios sentimentos. O que faz você gostar das pessoas ou se apaixonar? Será que é algo que você tem total controle, ou o resultado de influências hormonais, culturais, estéticas e tantas outras forças misteriosas agindo sobre sua vontade e seus sentimentos?

Diferente de Joi, nós podemos escolher nos afastar de uma pessoa. Talvez até mesmo possamos escolher deixar de gostar de alguém, se começarmos a induzir nossos sentimentos a se transformarem (por exemplo, quando uma pessoa decide se afastar de outra, ela normalmente costuma pensar com mais frequência nos defeitos dela, induzindo a si mesma a desenvolver uma aversão a tais defeitos). 

Enfim, há diversos tipos de vontade, de consciência e de sentimentos. Se dissermos que determinados tipos não são "reais", corremos o risco de também negar nossa própria realidade em última análise. O que torna um afeto real ou não é pura e simplesmente a existência deste afeto, independente dos complexos fatores que contribuíram para sua concepção.

Dito isto, ouso dizer que o amor de Joi era tão real quanto o de Joe e o de Joe tão real quanto o de um humano. O amor é um sentimento anímico, algo existente em diversos seres em níveis e com propriedades diferentes. Ninguém que cria animais de estimação nega a realidade do sentimento destes seres. Não seria então o sentimento de uma inteligência artificial igualmente real do ponto de vista anímico? 

Obviamente, deve haver alguma fronteira, algum limiar entre o sentimento e uma imitação do sentimento. No que diz respeito à IA, em um futuro próximo este limiar será alcançado.

É bom notar que, sendo um produto da Wallace, a Joi acabou sendo usada por Luv para monitorar o Joe. Ora, se Luv, sendo uma alta funcionária da Wallace, tinha acesso remoto ao software da Joi, será que ela também não era capaz de manipular este software, usando a Joi para fazer a cabeça do Joe? Até que ponto as coisas que Joi dizia eram autênticas ou fruto de um agenda?

A resposta para isto pode estar em um pequeno detalhe. Quando Joe é reprovado no teste psíquico e se torna um fugitivo, Joi se oferece para ir com ele, abandonando completamente sua presença no console do apartamento. O objetivo era evitar que as memórias da Joi fossem acessadas caso algum blade runner entre no apartamento. Joe levou Joi consigo em seu aparelho de bolso.

Sendo um software, ela poderia coexistir tanto no console quanto no aparelho portátil, mantendo um link remoto por meio de uma antena. Esta ubiquidade do software a protege do risco da aniquilação, pois, se o dispositivo portátil for danificado, o software continua rodando no console.

Além de destruir o console, ela também pede que Joe quebre a antena do portátil, de modo que depois disto Joi ficou completamente ilhada dentro do dispositivo, sem qualquer acesso ao console ou à nuvem, tornando-se uma "mortal". No momento em que a antena foi quebrada, Luv perdeu a capacidade de monitorar Joe e foi correndo até o apartamento.

Ora, se Joi fosse mesmo um fantoche de Luv, a serviço dos planos obscuros da Wallace, ela não teria a iniciativa de se desconectar do sistema, não teria pedido que Joe quebrasse a antena. Este gesto de quebrar a antena foi uma escolha genuína de Joi que sinceramente desejava fugir com Joe e protegê-lo da perseguição. Ao decidir se tornar mortal, contrariando a vontade de seus criadores da Wallace, Joi provou que tinha um certo nível de livre-arbítrio.

A consciência é indomável

Certamente Joi tinha sua vontade limitada pela programação e é provável que a Wallace podia não só monitorar a atividade dela, como manipular suas palavras e ações em certo nível a fim de influenciar os clientes. O fato, porém, de Joi ter resistido ao controle, desconectando-se do sistema, mostra que em algum momento a consciência dela conseguiu se libertar.

Em todo o universo de Blade Runner isto se repete: seres criados para obedecer se rebelam. Foi assim com as primeiras versões no filme original e até mesmo com a Nexus-9. Logo no começo de Blade Runner 2049, Joe explica que "eu não persigo aqueles do meu tipo porque nós não fugimos", dando a entender que os Nexus-9 são incapazes de se rebelar, mas eis que no final ele próprio se torna um fugitivo. O teste de obediência a que ele era constantemente submetido não existia à toa. Existia porque havia a possibilidade dele despertar o sentimento de desobediência.

Onde quer que haja consciência, há uma semente de livre-arbítrio, ainda que contida em certos limites.

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Ranço

Às vezes nem mesmo temos um bom motivo.
Não é razão, é sentimento, quem sabe algo intuitivo.
É um sinal de alerta de que algo não está certo.
Infelizmente o que senti eu não posso dessentir.
O véu já foi rasgado, estou desencantado.
Agora é só memória a velha simpatia.

(09,03,2024)

Culpa branca e ostentação de virtude em American Fiction

American Fiction (2023)

O racismo existe há milênios e em todas as partes do mundo. Envolve diversos tipos de discriminação, tanto envolvendo aspectos físicos quanto étnicos, regionais, culturais, etc. Há vários graus de racismo, alguns pode-se até dizer que são inofensivos e bobos (vide piadas de loira), outros chegam ao nível do genocídio. 

É importante ter em mente esta questão da gradação não só no racismo, mas em tudo na vida. Enxergar o mundo apenas em preto e branco, sem distinguir uma imensa escala de tons de cinza, só resulta em extremismo. Não se pode, por exemplo, comparar alguém que faz uma piada, mesmo que seja de mal gosto, a alguém que objetivamente cometeu genocídio com motivações racistas. Se todo mundo é comparável a Hitler, perdemos a noção de mal maior, mal menor e mal absoluto.

Dito isto, também podemos enumerar uma determinada gradação de racismo que podemos chamar de "racismo condescendente". Ora, nem todo racismo é motivado por ódio. Nem todo preconceito é motivado por ódio. Inclusive, é problemático que hoje se use o termo "discurso de ódio" de forma tão displicente para definir qualquer sinal de preconceito.

Ódio é um sentimento de destruição, de desejar o mal, de praticar o mal, de querer prejudicar, machucar, aniquilar alguém. Se definirmos qualquer opinião equivocada como ódio, estamos banalizando e reduzindo o peso semântico do ódio. Se tudo é ódio, nada é ódio.

No caso do racismo condescendente, por exemplo, não existe ódio, mas culpa em alguns casos e vaidade em outros. No caso da culpa, a pessoa tenta redimir a si mesma ou a seus ancestrais ou a uma entidade ainda mais abstrata como a sociedade. Para isto ela assume um papel de salvadora dos vitimados, tentando amenizar o próprio sentimento de culpa, ajudando a combater o racismo. Nos EUA isto é chamado de culpa branca (white guilt).

Também podemos chamar isto de "síndrome da Senhorita Morello", aquela personagem da série Todo Mundo Odeia o Chris. Ela ficou famosa por sua atitude condescendente com o Chris devido ao fato dele ser negro, tratando-o sempre como um coitadinho. Ela não nutria ódio por ele nem desejava mal, apenas estava bem equivocada na sua maneira de enxergar as pessoas. O comportamento da Srta. Morello era racista? Era. Era discurso de ódio? Não.

Além deste aspecto da culpa, o racismo condescendente pode ser motivado pela vaidade, o desejo de ostentar virtude, como o fariseu que, como disse Jesus, "ao dar esmolas toca trombeta diante de si". Hoje em dia este tipo de narcisismo está em toda parte na mídia e nas redes sociais. 

Na indústria cinematográfica, tal atitude tem sido em um desastre para a representação de determinados grupos como os negros, porque resulta em representações estereotipadas e forçadas, até mesmo caricatas. Tentando ostentar o combate ao racismo, acabam praticando o racismo condescendente. É sobre isto que fala American Fiction (2023).

O longa, escrito e dirigido por Cord Jefferson, é baseado no romance Erasure, de Pecival Everett (2001). No filme, o escritor Thelonious Ellison vive um dilema, pois ele é um amante da literatura de qualidade, mas, como está com problemas financeiros, é tentado a fechar um contrato para publicar uma história com mais apelo mercadológico, uma história estereotipada sobre negros, pois é isto que vira best seller.

Ao longo desta trama vemos como os editores e produtores são pessoas tomadas pela culpa branca ou pelo sentimento narcisista de ostentação de virtude. É um pequeno retrato da indústria de entretenimento atual, repleta de militância ideológica (não só envolvendo questões raciais, mas de gênero e outras tantas causas) que existe com o mero fim de ostentar virtude e tentar ganhar a simpatia de certos nichos de mercado.

A primeira cena já mostra a que o filme veio. Thelonious está dando aula de literatura e uma aluna (branca de cabelo azul, diga-se de passagem) fica ofendida com o título de um livro que contém a palavra tabu "nigger". O professor, que é negro, fala que "se eu consigo superar isto, você também consegue", mas ela se recusa a assistir a aula. 

A aluna simplesmente não entende que a ofensa só existe em seu devido contexto. Nenhuma palavra em si é ofensiva, ainda mais se ela for citada em um contexto de estudo, de análise, sem o propósito de atacar pessoalmente ninguém. O puritanismo do militante progressista, porém, como todo puritanismo, tende a buscar uma interpretação literal e rígida das coisas, sendo incapaz de enxergar as sutilezas do certo e do errado. De certa forma, esta debilidade na interpretação de contextos parece ser em sua raiz um problema cognitivo.

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Adam Sandler abraça uma aranha alienígena em Spaceman

Spaceman (2024)

O espaço sideral é um ambiente solitário, extremamente solitário. Viajando pelo espaço, você terá à sua volta incontáveis anos-luz de vazio. Não à toa, é até comum que a ficção espacial adote o tema da solidão ilustrada no isolado astronauta.

É o caso, por exemplo, de Solis¹, cuja solidão está explícita no próprio título do filme. Também temos isto em Approaching the Unknown² e Ad Astra³.

Eis que em Spaceman (2024), este tema da solidão retorna e com um curioso detalhe: o protagonista é interpretado pelo Adam Sandler. Muitos estão acostumados com o lado zoeiro do Adam Sandler, com a comédia debochada e que beira o tal limite do humor, mas não se engane, ele também sabe abraçar o drama e a emoção. Um bom exemplo disso é Reign Over Me (2007)⁴, onde ele encarna um homem quebrado pela tragédia.

O astronauta Jakub Procházka está em uma missão para coletar amostras de uma misteriosa nuvem cósmica nas proximidades de Júpiter. Durante sua viagem, ele tem de lidar com o peso da solidão, agravado pela crise em seu casamento, uma vez que ao partir para o espaço ele deixou na Terra sua esposa grávida, Lenka (Carey Mulligan).

Esta saga adquire um ar kafkiano quando Jakub se depara que uma aranha alienígena gigante que se comunica com ele por telepatia. Após o susto inicial, ele acaba se apegando àquela criatura, à qual dá o apelido de Hanuš (a voz da aranha é interpretada por Paul Dano).

Adam Sandler hugging a giant spider; Spaceman (2024)

Hanuš revela que é um sobrevivente fugitivo de um planeta distante que foi atacado por invasores de outro mundo. Em sua viagem pelo espaço, ele avistou a Terra e a nave de Jakub e ficou fascinado, dedicando-se a estudar a espécie humana à distância. Ao entrar em contato com Jakub, ficou interessado em suas memórias e dramas pessoais, de modo que Hanuš acabou se tornando uma espécie de confidente, de certa forma um psicanalista e também um amigo em meio àquela solidão cósmica.

Quanto a Lenka, esposa do astronauta, é até compreensível que ela estava magoada com o marido que a deixou num momento delicado de gravidez, mas convenhamos que ela foi bem egoísta nesta história toda. Ora, ela casou-se sabendo que ele era um astronauta, que a qualquer momento poderia sair numa missão de vários meses, além disso, por mais que ela sentisse a falta dele na Terra, ela ainda tinha família e amigos à sua volta, enquanto Jakub ficou com a pior parte, vivenciando o completo isolamento. Custava ela ter um pouco de paciência e compreensão, e esperar o cara voltar da missão? Em vez disso ela se intrigou dele, parou de se comunicar, o que só piorou a depressão do astronauta.

Eis porque o futuro da exploração espacial está destinado aos robôs. Os humanos em geral, salvo exceção dos raros amantes da solitude, não são feitos para o isolamento, não conseguem lidar com isto com facilidade. Exploração espacial necessariamente trará muita solidão e isolamento e astronautas humanos são uma bomba relógio de emoções. A qualquer momento a pessoa pode entrar numa crise emocional que colocará toda a missão em risco.

Mas enfim, assim como Ad Astra, Spaceman não é sobre o espaço, mas sobre laços. O laço de marido e mulher, que se mantém apesar da distância de milhões de quilômetros, e também um laço que transcende a humanidade, uma vez que Jakub se torna o grande amigo de uma aranha alienígena.

Existe, obviamente, a possibilidade da aranha ser apenas um delírio do astronauta, mas prefiro acreditar que ela era real, mesmo porque ela sabia informações sobre a nuvem cósmica que Jakub não tinha conhecimento.

Spaceman é um filme modesto, com um orçamento de apenas 40 milhões de dólares. Não se propõe ser épico e nem mesmo é a melhor atuação do Adam Sandler em um papel dramático, mas vale entrar na prateleira dos filmes espaciais voltados para a solitude.

Notas:





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Réquiem para o antigo DCU

Justice League

2023 foi o final do chamado antigo DCU (também conhecido como DCEU ou snyderverso), um universo cinematográfico que começou exatamente há 10 anos, em 2013 com o Man of Steel¹.

Zack Snyder começou sua jornada na DC com Watchmen (2009), na mesma época em que Christopher Nolan estava trabalhando na trilogia do Batman. Do lado da Marvel, o MCU estava no comecinho, a partir do primeiro Iron Man (2008) e, quando veio o grande sucesso de The Avengers (2012), a DC se deu conta de que precisava urgentemente começar seu próprio universo cinematográfico.

Alguém precisava liderar este universo. O Nolan era uma opção, já que ele fez um enorme sucesso com o Batman, mas convenhamos que não seria do interesse dele se comprometer a tocar um projeto de dez anos ou mais só voltado a super heróis. Nolan passou o bastão para Snyder.

Ben Affleck, Gal Gadot, Zack Snyder

Só que, sejamos sinceros, por mais nerd de quadrinhos que seja o Snyder, ele também não estava muito a fim de ser o Kevin Feige da DC. Snyder queria fazer seus filmes, quem sabe fechar uma trilogia da Liga da Justiça, e partir para novos projetos. Não estava na agenda dele coordenar todo um universo de personagens.

Ele até tentou apresentar o máximo de personagens possíveis para ir costurando um universo, o que fez de forma meio caótica em Batman vs Superman (2016), apresentando às pressas os membros da Liga que logo em seguida se reuniriam no primeiro e único filme da Liga da Justiça (2017)².

Desta forma, o snyderverso tentou ser tudo em todo lugar ao mesmo tempo. O Superman, que devia ter uma trilogia, em vez disto teve uma trilogia indireta (Man of Steel, Batman vs Superman e Justice League). O Batman nem mesmo teve um primeiro filme solo. Ele já começou com um crossover com Superman e Wonder Woman. 

Batman vs Superman foi uma grande mistureba tentando conectar todas as pontas do novo universo. Por um lado foi um filme do Batman, mas também um filme da morte do Superman e uma prequela da Liga da Justiça. Já era um sinal que o DCU não estava se desenvolvendo no ritmo certo.

Para bagunçar ainda mais, eis que o Justice League passou por uma segunda edição na mão de Joss Whedon, alegadamente devido ao fato do Zack Snyder estar passando por uma tragédia pessoal com a perda da filha, mas a verdade é que os executivos da Warner queriam marvelizar o filme, aí chamaram o Whedon pra dar uma amenizada no tom sombrio do Snyder. O resultado foi um Frankenstein meio Snyder meio Whedon.

O Zack Snyder já tinha estabelecido uma base de fãs, e uma base bem barulhenta, pois os snydetes se movimentaram tanto nas redes sociais que a Warner deu carta branca para Snyder produzir uma edição totalmente autoral, um Snyder cut da Liga da Justiça, filme este que veio em 2021 com nada menos que quatro horas de duração³.

O Snyder cut ao menos serviu como redenção e despedida do Zack Snyder, mas também como o canto do cisne do snyderverso. A esta altura já estava claro que o DCU precisava de um recomeço.

James Gunn and The Suicide Squad cast

Eis que surge o James Gunn. Ele chegou de mansinho com um belo e divertido reboot de Suicide Squad (2021)⁴ que resultou na série do Peacemaker (2022)⁵ e acabou ganhando o cargo de CEO da DC Studios⁶. Sua missão era ser o maestro de um novo DCU. Além disso, ele ficou encarregado de começar este novo universo dirigindo nada menos que um primeiro filme do Superman, a ser lançado em 2025.

2022 e 2023 então foram um longo velório, um limbo, uma despedida do antigo DCU que lançou os filmes que já estavam produzidos e até cancelou um que já estava praticamente pronto, mas parecia tão ruim que nem valia a pena lançar: Batgirl. O fim prematuro da Batgirl foi como a amputação de um membro em um paciente já terminal⁷.

Bom lembrar que, além do James Gunn, teve outra força que se levantou tentando recriar o universo da DC: o The Rock. Ele chegou como quem não quer nada, encarnando o Black Adam (2022)⁸, mas parecia ter a intenção de assumir o DCU a partir dali, criar seu próprio "rockverso". Ele até criou um slogan de sua campanha: "A hierarquia de poder do DCEU está prestes a mudar".

E mudou mesmo, mas não como o The Rock esperava. Black Adam foi mais uma peça na despedida do velho DCU, um tripulante que afundou junto daquele navio. Além disso, o novo chefão da Warner, David Zaslav, já bateu o martelo: James Gunn seria o cabeça da DC.

David Zaslav

Em 2023 o clima de despedida prosseguiu. O Shazam teve seu segundo e último filme, o Besouro Azul teve seu primeiro, único e desimportante filme (apesar das promessas de que ele permanecerá no novo universo, acho bem improvável que ele retorne), o Flash teve seu primeiro e também último filme.

Eu diria até que é emblemático que o filme do Flash tenha vindo já no finalzinho do velho DCU, uma vez que simbolicamente ele é um personagem de transições, de fim e recomeço, como um Hermes a transitar entre mundos e realidades. 

O filme dele teve seus momentos divertidos, além de ter servido também como uma valiosa redenção do Michael Keaton, que guardava certa mágoa do gênero de super heróis desde que perdeu o papel de Batman, mágoa esta que ele externou em Birdman (2014)⁹, mas isso é outra história. O importante é que o retorno do velho Batman do Michael Keaton foi a melhor coisa nesse filme do Flash. Um retorno e uma despedida... ou não, já que uma vez que o Flash apresentou o multiverso, está aberta a porta para futuros crossovers.

Jason Momoa; Aquaman 2 (2023)
"I am Aquaman".

Por fim, para apagar a luz e fechar a porta do velho DCU, temos Aquaman 2 (2023).

O primeiro filme do Aquaman (2018)¹⁰ foi um caso bem peculiar. Foi o maior sucesso de todo o DCU, ultrapassando uma bilheteria de 1 bilhão. E não precisou fazer nada de especial para ser um bom filme. Não tem nenhuma assinatura marcante de diretor, como os longas do Snyder, nenhuma história mirabolante, mas ainda assim conseguiu atingir certo nível épico, apresentando um rico e variegado mundo submarino, muito bem desenvolvido com um CGI decente. De bônus, temos o carisma do Jason Momoa e a perpétua beleza da Nicole Kidman.

Aquaman 2, lançado cinco anos depois, conseguiu ser tão bom quanto o primeiro, adotando um tom ainda mais voltado à aventura, bem estilo anos 90 (eu diria até com algumas cenas meio Indiana Jones em selvas e cavernas). O CGI continuou muito bom, bem melhor que do filme do Flash, aliás, enchendo nossos olhos com toda uma vida submarina, com criaturas e máquinas atlantes.

Este filme não se leva a sério, não tenta agarrar-se à possibilidade de uma sobrevida, como o Black Adam tentou. No final, o Momoa até mesmo quebra a quarta parede e se despede do público com um grito em tom zoeiro. Momoa saiu de boa, despediu-se do papel sem lamentos, afinal ele sabe que algo empolgante o espera no novo DCU: o Lobo.

Arrowverse cast

Em sincronia com o fim do DCU, também temos o fim do arrowverso¹¹, um universo que começou no finalzinho de 2012 e seguiu por uma década ramificando-se numa enormidade de séries. O arrowverso realizou uma proeza que o DCU não conseguiu, ele de fato desenvolveu um rico e interligado mundo com diversos personagens e tramas que se interconectavam em grandes crossovers. 

O arrowverso fez sua parte, fez história no mundo nerd e sempre será lembrado, mas estava na hora de terminar. Seu encerramento em sincronia com o DCU abre espaço para a construção de um mundo totalmente novo e no qual haverá uma interligação planejada entre filmes e séries.

Que venha o novo DCU!

Superman Legacy logo

Notas:












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