Na quase centenária competição (com eventuais momentos de cooperação) entre Marvel e DC, a liderança esteve sempre alternando. Ora a Marvel estava no topo, ora a DC. Nos anos 90, a Marvel chegou até a declarar falência, vendeu os direitos de exibição de vários personagens e acabou dando a volta por cima porque entrou definitivamente no mainstream do entretenimento cinematográfico com os sucessos do Homem-Aranha e X-Men na primeira década dos anos 2000, e com o ainda mais estrondoso sucesso dos Vingadores na segunda década.
Hoje os quadrinhos não são mais o principal negócio da Marvel e da DC. Quadrinhos são a fonte de inspiração, mas os holofotes estão voltados para o audiovisual, para os filmes e séries que se tornaram a mina de ouro destas clássicas editoras (que hoje nem mesmo são editoras per se, mas subsidiárias de dois gigantes da mídia, Disney e Warner).
No audiovisual, a Marvel está liderando a disputa há um bom tempo. A DC no cinema nas últimas 4 décadas basicamente fez sucesso apenas com seus dois principais personagens: Batman e Superman. A Marvel, por sua vez, além de fazer sucesso com Homem-Aranha, X-Men e Vingadores, que são bastante conhecidos no mundo, também conseguiu se dar bem com personagens até então bem desconhecidos, como os Guardiões da Galáxia. A quantidade de filmes que a Marvel fez em muito supera a DC, bem como o lucro que teve com todos eles.
Em 2012 a Marvel concluiu sua primeira fase do MCU, com o filme dos Vingadores, o que foi um marco não só pelo sucesso e pela fortuna que arrecadou, mas também pelo incomum modelo de universo cinematográfico. Cada filme solo de um personagem se relacionava com outro, dava pistas nas cenas pós-crédito, era um quebra-cabeças compondo o quadro de uma trama que envolvia filmes, curtas, animações e séries, culminando em crossovers que amarravam tudo. Foi um brilhante planejamento narrativo.
Vendo isto, a DC obviamente entendeu que precisava se apressar para alcançar seu concorrente que corria a largas passadas. A partir de Man of Steel, em 2013, a DC prometia desenvolver seu próprio universo cinematográfico interligado, o DCU. Na prática, porém, nunca conseguiu fazer algo com o nível de organização, coerência e planejamento da Marvel. Nestes últimos dez anos, o DCU foi uma bagunça.
Em parte o motivo foi a falta de uma figura centralizadora, um líder e planejador. A Marvel teve o seu Kevin Feige. A DC não teve uma pessoa diretamente responsável pelo DCU, mas a princípio parecia que o Zack Snyder seria esse cara. O máximo que ele conseguiu foi desenvolver um microuniverso dentro do DCU, o chamado snyderverso. E este ainda foi sabotado por intervenções, como o Joss Whedon, que mexeu no filme da Liga da Justiça, podando o trabalho de Snyder. Depois, a versão full Snyder, o Snyder Cut, foi lançada, mostrando que realmente a intervenção de Whedon só estragou o filme.
Existe outra figura importante, que trabalhou mais nos bastidores do DCU, o Geoff Johns. Ele já foi presidente da DC e é alguém que realmente entende do universo dos quadrinhos. Em vários dos filmes do DCU, de Batman v Superman até Shazam e Black Adam, ele esteve presente ou como roteirista ou como produtor. Também esteve e está envolvido em várias séries do arrowverso, Titans, Doom Patrol, Stargirl, Superman & Lois, etc.
Geoff Johns deu para o DCU uma contribuição muito maior que Zack Snyder. Também foi um responsável direto por boa parte do conteúdo do DCU, trabalhando como roteirista, diferente do Kevin Feige que não escreveu nada para o MCU. O sucesso do MCU, porém, mostra que o papel do produtor é realmente poderoso, pois Feige, como produtor, conseguiu construir um MCU formidável.
É, portanto, isto que falta à DC: um executivo. A Warner/DC tem todos os demais ingredientes para a fórmula de um bom universo cinematográfico. Em termos de cinema, a Warner sempre teve os melhores contratos com grandes atores, diretores, escritores, etc. O que faltava mesmo era ter um Kevin Feige pra chamar de seu, um executivo com senso de planejamento. Talvez agora esta lacuna seja preenchida.
Este ano a WarnerMedia teve uma fusão com o grupo Discovery, uma fusão de gigantes que agora formou a Warner Bros. Discovery. Com isto, uma restruturação teve início. Ann Sarnoff deixou o cargo de chefe dos estúdios da Warner, bem como Andy Forssell, ex-chefe da HBO Max, e Jason Kilar, ex-CEO da WarnerMedia.
Quem assumiu a liderança do novo gigante do entretenimento que resultou da fusão, foi o CEO da Discovery, David Zaslav. Zaslav liderou a Discovery desde 2006 e com bastante eficiência. Ao longo dos anos, a Discovery só cresceu e comprou várias outras empresas de mídia, até ficar tão rica que pôde fazer este negócio colossal da fusão com a Warner.
Neste mundo das comunicações há sempre um peixe maior. A antiga Time Warner foi comprada em 2018 pela AT&T por nada menos que 85 bilhões de dólares, criando a WarnerMedia. Agora a AT&T vendeu a WarnerMedia para a Discovery por 43 bilhões, sendo que os acionistas da AT&T continuarão com 71% das ações desta nova empresa formada pela fusão, enquanto os acionistas da Discovery ficarão com 29%.
Ou seja, do ponto de vista de finanças, a nova Warner Bros. Discovery tem muito mais o DNA dos antigos donos, mas do ponto de vista de gerência, ela terá mais a cara da Discovery, já que a liderança passa para as mãos de Zaslav. É aí que entra a questão do DCU.
Zaslav já chegou chutando a porta, chegou como um juggernaut, um rolo compressor. Ele está aplicando o princípio básico que todo gestor entende que é necessário ao assumir uma empresa: antes de tudo, fazer uma limpeza, podar os galhos ruins, identificar os vazamentos, as rachaduras nas finanças, arrumar a casa.
Zaslav identificou que a HBO Max estava tentando produzir muito conteúdo pra concorrer nos disputado mercado de streaming, mas que resultava em material de baixa qualidade e também baixa audiência. A visão dele é fazer justamente o contrário, focar em grandes produções, pois o resultado em termos de audiência e retenção de clientes é bem melhor do que simplesmente encher o catálogo com filmecos.
Já de cara, ele mandou encerrar a produção do filme da Batgirl (que já estava praticamente pronto e custou uns 90 milhões) e a animação Scoob! Holiday Haunt? Pela primeira vez em décadas, não haverá um filme da franquia Scooby-Doo no final de ano.
Por um lado, parece dinheiro jogado no lixo, mas acontece que, mesmo depois de pronto, um filme continua gastando dinheiro com a publicidade e tudo o que envolve a chamada pós-produção. Zaslav simplesmente resolveu fechar esta torneira.
É até compreensível que tenha encerrado a Batgirl, pois convenhamos que seria um filme B da DC. Batgirl não é uma Wonder Woman. Ela provavelmente atrairia uma audiência mais nichada. Já o caso do Scooby-Doo é mais difícil de entender, uma vez que se trata de uma franquia bem estabelecida, com uma tradição de filmes natalinos.
Por mais bizarra que pareça a estratégia do novo CEO, ela curiosamente animou o mercado, pois as ações da Warner Bros. Discovery tiveram alta de 3,5% na Nasdaq um dia depois do anúncio dos cancelamentos. Isto mostra que os acionistas confiam em Zaslav e veem em sua jogada um sinal de que ele está começando a tomar atitudes dentro da nova empresa.
A medida, que alguns fãs podem considerar cruel e insensível, é obviamente parte de um planejamento, o primeiro passo de mudanças que Zaslav pretende realizar nos rumos da empresa, mas também pode ser encarada como um gesto simbólico, um recado. Ele está dizendo: a partir de agora, ou faz direito, ou não faz. Olhando desta forma, é uma notícia promissora para o DCU, a longo prazo.
Se a HBO Max adotar este princípio de qualidade em vez de quantidade, se tornará um serviço de streaming bem mais forte e atraente. A Netflix já está dando o exemplo do que acontece quando se troca qualidade por quantidade. A cada dia a empresa perde assinantes. Netflix já foi sinônimo de séries originais de qualidade, agora ela produz uns filmes genéricos pra preencher o catálogo, filmes que vão aparecer na página inicial por uma semana e depois cair no esquecimento.
Com Zaslav, a DC vai poder focar em fazer filmões, filmaços, vai focar nos personagens que realmente merecem atenção primeiro, ou seja, a galera da Liga da Justiça, especialmente a trindade. Personagens menos conhecidos podem ter seu espaço em séries.
Não é estranho que em dez anos de DCU o Superman tenha apenas um filme solo? O Batman do Ben Affleck sequer teve filme solo e já foi direto pra um crossover com o Superman. Wonder Woman e Aquaman só tiveram dois filmes e o filme do Flash até agora não saiu. Se a DC tivesse seguido os passos da Marvel, em dez anos tranquilamente cada um destes heróis da Liga já teria uma trilogia.
Confesso que eu não apenas espero que o DCU a partir daqui fique focado em grandes produções e priorizando os personagens que devem ser priorizados, mas também que experimente um verdadeiro reboot. Por mim o DCU pode começar do zero, com um novo cast para o Batman, o Superman, até a Mulher Maravilha. O Flash já tem recast garantido mesmo, pois o Ezra Miller já queimou o filme.
Ok, a imagem da Gal Gadot e do Henry Cavill ficou bem marcada, mas convenhamos que um dia o recast tem que acontecer. Ora, já nos acostumamos a ver o Homem-Aranha mudar de ator três vezes, o Batman, então, nem se fala.
O DCU precisa de um reboot para se reorganizar e desenvolver um projeto para os próximos dez anos. Agora parece o momento ideal, já que a empresa está se reestruturando e até coincide com o fim da era arrowverso, o que significa que um novo universo de séries deve vir nos próximos anos. Se tem alguém que teria coragem de tomar esta atitude radical, é o David Zaslav.
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