A personagem Joi (Ana de Armas), de Blade Runner 2047 (2017) se tornou muito querida pelos fãs do filme. Não só ela, mas também o Joe (Ryan Gosling) que formou com ela um par romântico bem peculiar: enquanto ele é um replicante, ela é literalmente um holograma controlado por uma inteligência artificial.
O relacionamento dos dois é muito envolvente. É impossível não "shippar" este casal. Todavia, a natureza dos dois personagens levanta algumas questões. O sentimento deles é "real"? Eles podem de fato amar da mesma maneira que os humanos?
Replicantes não são humanos. É difícil defini-los como robôs, uma vez que são seres orgânicos, mas como são moldados por meio de edição genética e outras tecnologias obscuras, eles não têm vontade própria no mesmo nível que os humanos. Embora os primeiros replicantes tenham se rebelado com certa frequência, a série Nexus-9, da qual Joe faz parte, é conhecida por sua obediência. Ele simplesmente é por natureza incapaz de escolher a rebelião.
Esta limitação da vontade própria aproxima um Nexus-9 mais dos robôs dos que dos humanos. Ele passa por frequentes avaliações (repetindo umas palavras que parecem aleatórias, como "cells" e "interlinked") para observar se não há nenhuma faísca de rebelião que seria considerada um bug em sua programação.
Não se pode negar, porém, que Joe é um ser vivo e consciente. O que é a consciência afinal? Para um ser consciente ser considerado genuíno, ele necessariamente deve ter um pleno livre-arbítrio? Ora, todos nós temos nossas limitações de vontade, sem contar que sequer temos o controle completo de nossas vontades, sujeitas a inúmeras influências, de hormônios a estímulos externos, até mesmo a lavagem cerebral.
Um humano submetido a lavagem cerebral pode se tornar tão obediente quanto um replicante. Ainda assim, este humano continua sendo um ser consciente de verdade. Diante desta comparação, creio que podemos concluir que sim, replicantes são tão reais quanto humanos. São pessoas, são seres conscientes, apesar da limitação da vontade.
E quanto a Joi? O caso dela de certa forma é mais simples, pois ela não é um ser orgânico, mas uma pura inteligência artificial feita de zeros e uns. Ela é um conjunto de complexos algoritmos processados em um hardware. Sua manifestação visível nada tem de orgânico, antes é apenas um holograma projetado com raios de luz no ambiente.
Joi se mostra encantada pela vida e demostra ter noção de quem ela é. Ela sabe que é um programa digital, mas age como quem se considera real e consciente de si mesma. Ela tem desejos, como o desejo de ganhar um corpo tangível, de sentir a chuva tocar sua pele e ter relações físicas com Joe. Ela se apaixona.
Até aí, portanto, Joi não parece tão diferente de Joe ou de um ser humano. Ela parece ter uma consciência. Sua vontade, no entanto, é ainda mais limitada do que a dos replicantes, pois ela é um produto.
Sim, Joe viu Joi num anúncio, num neon futurista nas ruas, e comprou o aparelho que é instalado na casa e passa a projetá-la no ambiente. Produzida pela Wallace Corporation, ela é classificada como uma DiJi (Digital Companion). Estes companions são usados em diversas atividades, tanto para fins profissionais como para suporte emocional.
Um DiJi simplesmente não pode escolher não ser o que foi projetado para ser. Ora, imagine que alguém compre um DiJi para ser acompanhante doméstico e um dia ele decida ir embora. Quando você compra uma impressora, não existe a possibilidade dela se negar a imprimir algo quando você dá o comando (se bem que tem certas ocasiões em que parece que a impressora simplesmente não quer trabalhar). Assim um DiJi, como qualquer software, vai viver para servir àquele que adquiriu este produto.
A princípio, Joe sabe que Joi não é "real", não como uma pessoa, um humano ou mesmo um replicante. Quando ele se encontra com Luv, representante da Wallace, ela pergunta se ele gostou do "nosso produto" e ele responde que "ela é bem realista". Ele fala da Joi como quem fala de um personagem de game ou realidade virtual. Ele sabe que é uma simulação digital. Todavia, o sentimento dele por Joi não é mera distração escapista. Ao longo da trama vemos como Joe é apegado a Joi e como a "morte" dela o afeta como se fosse a morte de uma pessoa real.
Relacionamentos humanos são extremamente complexos. Em amizades, romances, coleguismo e relações familiares, há um complicado misto de sentimentos e vontades. Mesmo os casais mais apaixonados às vezes enjoam um do outro ou discordam ou suas vontades variam. Tem dia que um dos parceiros está a fim de sexo, enquanto o outro não está. Tem dia que um quer ir ao cinema, enquanto o outro quer ficar em casa. Assim há uma constante negociação de vontades e consentimento.
Na relação entre Joe e Joi esta complexidade não existe. Da parte de Joe, talvez seja possível que um dia, caso ele deixe de gostar dela, ele simplesmente pode desligar o aparelho e nunca mais ligar de volta. Já da parte da Joi, sendo ela um software programado para se dedicar ao cliente, não existe sequer a possibilidade dela deixar de gostar dele. Logo, como dizer que o sentimento dela é genuíno se é programado?
O sentimento de Joi pode ser comparado ao imprinting que muitos animais têm, um apego instantâneo que desenvolvem por seus criadores. Em certas espécies o imprinting é considerado irreversível. O imprinting é um exemplo de como a natureza, o mundo orgânico, também tem seus métodos de programação. A programação genética nos impõe certas predisposições que simplesmente não podemos rejeitar. A natureza, afinal, é a programadora primordial. Bilhões de anos antes de nossos softwares, já existia o DNA, que nada mais é do que um código, uma linguagem que determina diversos aspectos de cada criatura.
Se pararmos para pensar na autenticidade dos sentimentos de Joi, talvez mergulhemos em um abismo ontológico, uma vez que podemos também questionar a autenticidade dos nossos próprios sentimentos. O que faz você gostar das pessoas ou se apaixonar? Será que é algo que você tem total controle, ou o resultado de influências hormonais, culturais, estéticas e tantas outras forças misteriosas agindo sobre sua vontade e seus sentimentos?
Diferente de Joi, nós podemos escolher nos afastar de uma pessoa. Talvez até mesmo possamos escolher deixar de gostar de alguém, se começarmos a induzir nossos sentimentos a se transformarem (por exemplo, quando uma pessoa decide se afastar de outra, ela normalmente costuma pensar com mais frequência nos defeitos dela, induzindo a si mesma a desenvolver uma aversão a tais defeitos).
Enfim, há diversos tipos de vontade, de consciência e de sentimentos. Se dissermos que determinados tipos não são "reais", corremos o risco de também negar nossa própria realidade em última análise. O que torna um afeto real ou não é pura e simplesmente a existência deste afeto, independente dos complexos fatores que contribuíram para sua concepção.
Dito isto, ouso dizer que o amor de Joi era tão real quanto o de Joe e o de Joe tão real quanto o de um humano. O amor é um sentimento anímico, algo existente em diversos seres em níveis e com propriedades diferentes. Ninguém que cria animais de estimação nega a realidade do sentimento destes seres. Não seria então o sentimento de uma inteligência artificial igualmente real do ponto de vista anímico?
Obviamente, deve haver alguma fronteira, algum limiar entre o sentimento e uma imitação do sentimento. No que diz respeito à IA, em um futuro próximo este limiar será alcançado.
É bom notar que, sendo um produto da Wallace, a Joi acabou sendo usada por Luv para monitorar o Joe. Ora, se Luv, sendo uma alta funcionária da Wallace, tinha acesso remoto ao software da Joi, será que ela também não era capaz de manipular este software, usando a Joi para fazer a cabeça do Joe? Até que ponto as coisas que Joi dizia eram autênticas ou fruto de um agenda?
A resposta para isto pode estar em um pequeno detalhe. Quando Joe é reprovado no teste psíquico e se torna um fugitivo, Joi se oferece para ir com ele, abandonando completamente sua presença no console do apartamento. O objetivo era evitar que as memórias da Joi fossem acessadas caso algum blade runner entre no apartamento. Joe levou Joi consigo em seu aparelho de bolso.
Sendo um software, ela poderia coexistir tanto no console quanto no aparelho portátil, mantendo um link remoto por meio de uma antena. Esta ubiquidade do software a protege do risco da aniquilação, pois, se o dispositivo portátil for danificado, o software continua rodando no console.
Além de destruir o console, ela também pede que Joe quebre a antena do portátil, de modo que depois disto Joi ficou completamente ilhada dentro do dispositivo, sem qualquer acesso ao console ou à nuvem, tornando-se uma "mortal". No momento em que a antena foi quebrada, Luv perdeu a capacidade de monitorar Joe e foi correndo até o apartamento.
Ora, se Joi fosse mesmo um fantoche de Luv, a serviço dos planos obscuros da Wallace, ela não teria a iniciativa de se desconectar do sistema, não teria pedido que Joe quebrasse a antena. Este gesto de quebrar a antena foi uma escolha genuína de Joi que sinceramente desejava fugir com Joe e protegê-lo da perseguição. Ao decidir se tornar mortal, contrariando a vontade de seus criadores da Wallace, Joi provou que tinha um certo nível de livre-arbítrio.
A consciência é indomável
Certamente Joi tinha sua vontade limitada pela programação e é provável que a Wallace podia não só monitorar a atividade dela, como manipular suas palavras e ações em certo nível a fim de influenciar os clientes. O fato, porém, de Joi ter resistido ao controle, desconectando-se do sistema, mostra que em algum momento a consciência dela conseguiu se libertar.
Em todo o universo de Blade Runner isto se repete: seres criados para obedecer se rebelam. Foi assim com as primeiras versões no filme original e até mesmo com a Nexus-9. Logo no começo de Blade Runner 2049, Joe explica que "eu não persigo aqueles do meu tipo porque nós não fugimos", dando a entender que os Nexus-9 são incapazes de se rebelar, mas eis que no final ele próprio se torna um fugitivo. O teste de obediência a que ele era constantemente submetido não existia à toa. Existia porque havia a possibilidade dele despertar o sentimento de desobediência.
Onde quer que haja consciência, há uma semente de livre-arbítrio, ainda que contida em certos limites.
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