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Culpa branca e ostentação de virtude em American Fiction

American Fiction (2023)

O racismo existe há milênios e em todas as partes do mundo. Envolve diversos tipos de discriminação, tanto envolvendo aspectos físicos quanto étnicos, regionais, culturais, etc. Há vários graus de racismo, alguns pode-se até dizer que são inofensivos e bobos (vide piadas de loira), outros chegam ao nível do genocídio. 

É importante ter em mente esta questão da gradação não só no racismo, mas em tudo na vida. Enxergar o mundo apenas em preto e branco, sem distinguir uma imensa escala de tons de cinza, só resulta em extremismo. Não se pode, por exemplo, comparar alguém que faz uma piada, mesmo que seja de mal gosto, a alguém que objetivamente cometeu genocídio com motivações racistas. Se todo mundo é comparável a Hitler, perdemos a noção de mal maior, mal menor e mal absoluto.

Dito isto, também podemos enumerar uma determinada gradação de racismo que podemos chamar de "racismo condescendente". Ora, nem todo racismo é motivado por ódio. Nem todo preconceito é motivado por ódio. Inclusive, é problemático que hoje se use o termo "discurso de ódio" de forma tão displicente para definir qualquer sinal de preconceito.

Ódio é um sentimento de destruição, de desejar o mal, de praticar o mal, de querer prejudicar, machucar, aniquilar alguém. Se definirmos qualquer opinião equivocada como ódio, estamos banalizando e reduzindo o peso semântico do ódio. Se tudo é ódio, nada é ódio.

No caso do racismo condescendente, por exemplo, não existe ódio, mas culpa em alguns casos e vaidade em outros. No caso da culpa, a pessoa tenta redimir a si mesma ou a seus ancestrais ou a uma entidade ainda mais abstrata como a sociedade. Para isto ela assume um papel de salvadora dos vitimados, tentando amenizar o próprio sentimento de culpa, ajudando a combater o racismo. Nos EUA isto é chamado de culpa branca (white guilt).

Também podemos chamar isto de "síndrome da Senhorita Morello", aquela personagem da série Todo Mundo Odeia o Chris. Ela ficou famosa por sua atitude condescendente com o Chris devido ao fato dele ser negro, tratando-o sempre como um coitadinho. Ela não nutria ódio por ele nem desejava mal, apenas estava bem equivocada na sua maneira de enxergar as pessoas. O comportamento da Srta. Morello era racista? Era. Era discurso de ódio? Não.

Além deste aspecto da culpa, o racismo condescendente pode ser motivado pela vaidade, o desejo de ostentar virtude, como o fariseu que, como disse Jesus, "ao dar esmolas toca trombeta diante de si". Hoje em dia este tipo de narcisismo está em toda parte na mídia e nas redes sociais. 

Na indústria cinematográfica, tal atitude tem sido em um desastre para a representação de determinados grupos como os negros, porque resulta em representações estereotipadas e forçadas, até mesmo caricatas. Tentando ostentar o combate ao racismo, acabam praticando o racismo condescendente. É sobre isto que fala American Fiction (2023).

O longa, escrito e dirigido por Cord Jefferson, é baseado no romance Erasure, de Pecival Everett (2001). No filme, o escritor Thelonious Ellison vive um dilema, pois ele é um amante da literatura de qualidade, mas, como está com problemas financeiros, é tentado a fechar um contrato para publicar uma história com mais apelo mercadológico, uma história estereotipada sobre negros, pois é isto que vira best seller.

Ao longo desta trama vemos como os editores e produtores são pessoas tomadas pela culpa branca ou pelo sentimento narcisista de ostentação de virtude. É um pequeno retrato da indústria de entretenimento atual, repleta de militância ideológica (não só envolvendo questões raciais, mas de gênero e outras tantas causas) que existe com o mero fim de ostentar virtude e tentar ganhar a simpatia de certos nichos de mercado.

A primeira cena já mostra a que o filme veio. Thelonious está dando aula de literatura e uma aluna (branca de cabelo azul, diga-se de passagem) fica ofendida com o título de um livro que contém a palavra tabu "nigger". O professor, que é negro, fala que "se eu consigo superar isto, você também consegue", mas ela se recusa a assistir a aula. 

A aluna simplesmente não entende que a ofensa só existe em seu devido contexto. Nenhuma palavra em si é ofensiva, ainda mais se ela for citada em um contexto de estudo, de análise, sem o propósito de atacar pessoalmente ninguém. O puritanismo do militante progressista, porém, como todo puritanismo, tende a buscar uma interpretação literal e rígida das coisas, sendo incapaz de enxergar as sutilezas do certo e do errado. De certa forma, esta debilidade na interpretação de contextos parece ser em sua raiz um problema cognitivo.

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