Os alienígenas na ficção com muita frequência são representados como seres humanoides. Em alguns casos, isto se deu por motivos práticos, como em filmes e séries onde é mais fácil vestir um ator humano com uma fantasia alienígena do que criar algo realmente estranho. Mesmo quando a criatura não tem uma aparência semelhante à humana, ainda possui algo antropomórfico, no mínimo um rosto com olhos e boca.
Solaris vai além deste lugar-comum e ousa, apresentando-nos um alienígena de aparência totalmente desligada da humanidade, uma verdadeira coisa amorfa, literalmente um oceano vivo. A história original foi publicada em 1961, de autoria do polonês Stanislaw Lem. Em 1972 veio a adaptação cinematográfica que marcou a ficção científica e influenciou vários cineastas posteriores.
Uma espécie alienígena não antropomórfica. |
Os humanos estabeleceram uma estação espacial na órbita de um planeta distante, Solaris, a fim de estudar seu bizarro oceano que demonstra indícios de ser um ente vivo, uma vasta criatura gelatinosa que possui estranhos poderes psíquicos.
Os cientistas da estação estão enlouquecendo e o psicólogo Kris Kelvin é enviado para ajudar. Ele acaba caindo na mesma armadilha, em um enigma que põe em dúvida a natureza da própria existência humana.
Ao que parece, o oceano alienígena consegue ler a mente dos humanos e materializa clones humanos baseado em "ilhas de memória" das pessoas. Assim, do nada Kelvin vê surgir na estação espacial uma mulher idêntica à sua falecida esposa Hari.
A princípio, ainda em estado de alerta e julgando que isto seja algum tipo de aberração alienígena, Kelvin põe Hari em um foguete e a despacha, mas ela simplesmente retorna. Um dos cientistas, com o pouco de sanidade que lhe resta, explica que estes clones são feitos de neutrinos e são praticamente imortais, pois mesmo que sejam mortos, sempre retornam.
Rapidamente Kelvin vai se apegando a Hari, chegando a acreditar que ela é a mesma pessoa que ele conheceu na Terra, afinal o clone possui as memórias da Khari original e demonstra ter uma consciência. Embora tenha sido baseada nas memórias de Kelvin, aquela criatura é um ser consciente e com identidade própria, o que nos leva a questionar o que é ser um humano.
A Hari de Solaris não nasceu de pais humanos, provavelmente nem mesmo tem um DNA humano, sua composição atômica é diferente, feita de neutrinos. Ainda assim, além de ter aparência humana, ela pensa como um humano e se sente humana. Seria isso? A essência da humanidade estria em sua consciência, mais do que em sua natureza orgânica?
Estaria em Solaris a origem do vício do J. J. Abrams pelo efeito lens flare? |
Este é um tipo de dilema que veremos depois nos replicantes de Blade Runner (1982)¹. Solaris claramente inspirou as alucinações da tripulação em Event Horizon (1997)², quando uma misteriosa influência alienígena recria pessoas com base nas memórias traumáticas daqueles humanos. Em Inception (2010)³, Cobb abriga no mundo dos sonhos um construto de sua esposa falecida, um conceito bem parecido com o de Hari, que é um construto baseado nas memórias de Kelvin. Estes são apenas alguns exemplos de filmes inspirados em Solaris.
Falando em Nolan, também o Interstellar (2014)⁴ possui suas semelhanças: um astronauta viaja para um planeta distante e se depara com uma misteriosa entidade sem rosto (no caso, os humanos pentadimensionais do futuro). Tanto Kelvin quanto Cooper passam por uma aventura psicológica motivada pelo amor e o remorso, no caso de Kelvin, por sua esposa morta, e no caso de Cooper, por sua filha que ele deixou pra trás em um mundo moribundo.
Há ainda uma curiosa semelhança entre a trilha sonora de Hans Zimmer e a de Cliff Martinez (para o remake de Solaris em 2002). É apenas uma sequência de acordes, mas que de fato parece uma homenagem de Zimmer.
Solaris é um daqueles longas obrigatórios para quem quer ostentar a carteirinha de cinéfilo. E põe longa nisso, pois são quase três horas de filme. Isto se deve em boa parte ao estilo de edição dos filmes antigos que não tinha a mesma técnica narrativa dos atuais.
Por exemplo, o filme começa com 2 minutos de tela preta com os créditos, o título Solaris se repete umas três vezes ao longo dos créditos. Hoje em dia os créditos costumam aparecer no final no final, quando as pessoas já estão se levantando para sair do cinema.
Também logo no começo do filme há um momento em que um dos personagens pega um carro. Temos uma cena de 5 minutos sem qualquer diálogo, simplesmente mostrando o carro a andar pelas ruas, passar por viadutos, etc. É basicamente uma cena de transição, que serve apenas para mostrar que o personagem foi do ponto A ao B. Este tipo de cena hoje em dia dura segundos, mas em Solaris a coisa se desenrola por 5 minutos!
No cinema de antigamente, o editor tinha de lidar com rolos de filme, os cortes eram literalmente cortes, separando tiras do rolo e colando aqui e ali. Ora, fazer um corte de segundos era bem mais trabalhoso do que hoje em dia com a edição digital. Este é um dos motivos porque nos filmes do século passado havia cenas que se alongavam mais do que o necessário. Obviamente existem casos de lentidão como parte da narrativa, para dar um ar contemplativo às cenas, mas no caso de Solaris me parece ser mais uma questão de edição mesmo.
O fato é que a lentidão e a longa duração de Solaris servem como um teste de paciência e dedicação do "true cinéfilo". Os cinéfilos mais puritanos vão se ofender se você disser que Solaris é lento por causa da edição dos cortes e que você não soube apreciar cada cena.
Anyway, lentidão à parte, Solaris é um filme fantástico, ousado em seu conceito e que explora mais o questionamento existencial do que o sci-fi. Ele vai fundo na essência do que é ser humano ou do que é ser real. É uma aventura cartesiana.
Em 2002 Hollywood lançou um remake, estrelado pelo George Clooney e produzido pelo James Cameron. É um remake bem decente e que não deixa nada a desejar em relação ao original. Além disso atualiza a obra para nossos dias, com efeitos especiais melhorados (o filme já tem 20 anos, mas ainda não parece visualmente datado). O planeta Solaris, que em 1972 aparecia apenas na forma de ondas espumosas, ganhou todo um novo visual sci-fi, emanando uma espécie de campo eletromagnético. Lembra a aparência de um óvulo, o que dá uma camada simbólica interessante ao filme.
O George Clooney manda bem na atuação, transmitindo a perturbação psicológica de um psicólogo, um homem que deveria ter domínio sobre as próprias emoções, e que tem de lidar com o bizarro fato de estar diante de uma cópia aparentemente idêntica de sua falecida esposa.
No geral, a história do remake é bem fiel à original, com algumas alterações para manter a experiência de surpresa de quem já assistiu o primeiro filme. O final, a parte mais marcante da história, foi alterado em seus detalhes, mas mantendo a essência, a ideia de que uma pessoa pode terminar vivendo em uma realidade simulada sem se dar conta. A trilha sonora, do Cliff Martinez, é agradabilíssima.
Para quem nunca viu Solaris e está a fim de conhecer, eu recomendaria o remake, por ter uma narrativa mais dinâmica e efeitos especiais mais atraentes. Aí quem gostar do conceito vai se interessar em assistir o original.
Notas:
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