Como um véio que sou, assisti Filadelfia (1993) pela primeira em fita K-7 lá nos anos 90. Eu era um adolescente melancólico (hoje sou apenas melancólico) e fiquei fascinado pela abertura que, como em um típico filme noventista, começava mostrando as ruas da cidade, as pessoas vivendo suas vidas e tocava a música do Bruce Springsteen, Streets of Philadelphia. Se bem me lembro, no começo ou no fim do VHS vinha de bônus o clipe da música com o Bruce Springsteen caminhando e cantando pelas ruas decadentes da cidade.
Isso era algo que fazia parte da experiência de assistir a um VHS ou DVD. Ele vinha com extras, making of, trailers de outros filmes. Neste aspecto, a experiência atual do streaming é mais simples e rasa. Você clica no filme, assiste e acabou. Por outro lado, hoje em dia a quantidade de conteúdo complementar para os filmes é muito mais abundante e de fácil acesso. Para quem gosta de nerdolar um filme, é possível ouvir toda a trilha sonora no Youtube, procurar entrevistas e resenhas pela internet como esta aqui deste blog.
Desde os anos 80, a AIDS era o grande pavor das pessoas em termos de doença, mais até do que o câncer. Na certa a abordagem da mídia sobre o assunto contribuiu para semear na mente das pessoas uma noção exageradamente alarmista. Na TV as propagandas de camisinha eram frequentes, sempre enfatizando a proteção contra o HIV. Convenhamos, foi uma campanha educativa, mas que também recorreu abusivamente ao terror psicológico que contribuiu para uma exclusão social dos doentes.
E para contribuir ainda mais para este estigma, havia a exploração da imagem de famosos com AIDS, principalmente aqueles que ficavam em um estado de saúde visivelmente debilitado. Aqui no Brasil, por exemplo, teve o caso do Cazuza e também do ativista Herbert de Sousa. A aparência esquelética deles era exibida em capas de revistas para chamar atenção mesmo.
Hoje em dia, como já existem os protocolos de tratamento, é raro você ver alguém com a antiga "aparência de aidético", mas ali nos anos 90 isto virou até sinônimo de magreza. Eu mesmo, que sempre fui muito magrelo, algumas vezes em tom de brincadeira fui chamado de aidético.
Lembro de uma curiosa ocasião em que voltava a pé para casa à noite e passou um carro. Era fim de semana e os caras na certa deviam estar bêbados. Um deles simplesmente botou a cara na janela e soltou vários xingamentos na minha direção, já que só tinha eu naquela rua. Entre os xingamentos ele incluiu um "aidético". Olhei para ele e segui andando.
A infame "aparência de aidético". |
Logo no começo de Filadélfia, o protagonista Andrew (Tom Hanks) vai a um hospital e ele percebe um paciente bem magrelo. É a aparência de aidético. Este estigma, bem como outros relacionados à doença, ficou bem registrado no filme que serve como um lembrete do espírito dos anos 90, sobre como as pessoas viam a AIDS. Hoje obviamente ainda existe o preconceito, mas a percepção da população é bem diferente daquele clima de pavor e apartheid sanitário que havia nos anos 80-90. A AIDS foi a lepra daqueles tempos.
Andrew é um advogado talentoso e bem sucedido de uma grande firma, mas quando os chefões começam a desconfiar de que ele está doente, tomam logo a iniciativa de arranjar um pretexto para demiti-lo. Uma demissão motivada pela discriminação contra uma pessoa portadora de um vírus.
Ele procura um colega advogado, Joe Miller (Denzel Washington), para processar a firma. Com a típica sinceridade sarcástica dos americanos, Andrew diz sem rodeios que está com AIDS e a reação de Joe é bem emblemática daqueles tempos. Ele imediatamente muda de postura, mantém o distanciamento, fica observando com receio cada objeto que Andrew toca, como se ele fosse uma peste ambulante infectando tudo à sua volta. Era esta a mentalidade comum naqueles anos.
As pessoas sempre tiveram pavor de pragas, de vírus, É um sentimento atávico, entranhado no inconsciente coletivo devido à memória de diversas pestes do passado. Os doentes se tornam seres intocáveis e a rejeição das pessoas chega ao nível da superstição. Sentem que até um aperto de mão pode ser mortal.
O filme portanto aborda o preconceito sanitário, mas também o preconceito sexual, já que Andrew é gay (seu parceiro era ninguém menos que o Antonio Banderas no auge de sua beleza). À medida em que vai enfrentando a luta judicial com o colega, Joe passa por uma jornada de empatia, superando os estigmas que a princípio via em Andrew.
Então temos um típico filme de tribunal, que era um gênero em alta nos anos 90. As sessões no tribunal são intercaladas com outros momentos que desenvolvem a relação entre os personagens. Em uma ocasião Joe está na casa de Andrew que se empolga com uma opera e começa a explicar a música para o colega leigo. Andrew fecha os olhos e se emociona profundamente.
Momento Oscar do Tom Hanks. |
Convenhamos que esta é uma daquelas cenas feitas para buscar o Oscar, cena para exibir a imersão do ator no papel. De toda forma, ela tem um papel narrativo, pois mostra a cultura e sensibilidade de Andrew, o que ajuda a quebrar a imagem preconceituosa que Joe tinha de que gays eram meros desajustados.
Como era de se esperar, a batalha judicial termina com a vitória de Andrew. Por outro lado, ele é derrotado pela doença, mas aceita o leito de morte com tranquilidade, cercado de parentes, amigos e o colega advogado.
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