Qaligrafia
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De Dr. Caligari a Corra!, uma breve história do vudu e hipnose no cinema

O Gabinete do Dr. Caligari (1920)

Existe na consciência norte-americana um fascínio com zumbis que tem uma curiosa origem racial. Hoje zumbis nada mais são do que mortos-vivos, algo que remonta a mitos antiquíssimos, às múmias, ghouls, vampiros, etc. Todavia, no início do cinema outra influência pairou sobre este mito, o vudu haitiano. 

O zumbi moderno de fato deriva dos mitos milenares, mas também tem um toque de vudu haitiano, tanto que a palavra "zumbi" vem desta religião e se refere originalmente a uma pessoa morta que foi ressuscitada por um feiticeiro vudu e que está sob controle deste por meio de drogas e feitiços.

O conceito do zumbi haitiano foi popularizado nos EUA pelo livro The Magic Island (1929), de William Seabrook. Aí nasceu o fascínio pela bruxaria exótica, a cultura de um povo estrangeiro, negro e não cristão. 

White Zombie (1932)

Bela Lugosi, Madge Bellamy, Robert Frazer; White Zombie (1932)

O primeiro filme do gênero, White Zombie (1932), estrelado pelo icônico Béla Lugosi, se passa justamente no Haiti, onde um homem contrata um feiticeiro para fazer que uma mulher se apaixone por ele. 

Revolt of the Zombies (1936) acontece no Camboja. É do mesmo diretor, Victor Hugo Halperin, e tinha intenção de ser uma sequência de White Zombie, mas havia obstáculos de licenciamento. Desta vez nem mesmo Béla Lugosi estava presente, só que malandramente o diretor conseguiu inserir apenas o close nos olhos dele quando a magia de zumbificação era usada.

Revolt of the Zombies (1936)

Em ambos os filmes, o vilão é um homem branco, mas de certa forma isto expressa o racismo do cinema no início do século XX, pois não havia atores negros em papéis de destaque como protagonista ou antagonista principal. Ainda não existia um Morgan Freeman ou Samuel L. Jackson, de modo que o papel do vilão em White Zombie coube a um famoso ator branco, o Béla Lugosi. Convenhamos que ninguém estava à altura de Béla Lugosi para qualquer papel de vilão místico.

Outro filme, King of the Zombies (1941) é ambientado em Cuba, mas o feiticeiro é um nazista, afinal vilões nazistas estavam na moda naqueles anos de guerra. É protagonizado por um ator negro, o famoso comediante Mantan Moreland, que dá um ar cômico e trapalhão ao filme.

King of the Zombies (1941)

O fato é que nota-se aí um padrão quanto à origem étnica da feitiçaria. Haiti, Camboja, Cuba... os zumbis tinham origem em países de cultura negra ou asiática e onde se praticava o vudu ou algum tipo de feitiçaria semelhante. Assim no imaginário americano se formou este pavor do feiticeiro estrangeiro que é capaz de dominar as pessoas, dominar sua mente e te transformar numa espécie de morto-vivo.

Obviamente, hoje em dia os zumbis já nada têm a ver com feitiçaria, pois o conceito mudou a partir de George Romero e foi evoluindo e se diversificando em uma enorme variedade de tipos.

Get Out (2017)

E aqui chegamos ao filme Get Out (2017), no Brasil traduzido como Corra!, que é claramente uma sátira visando expor o racismo entranhado na sociedade americana. É o tipo de filme que só os americanos ("estadunidenses", para quem não entende metonímia) podem entender a fundo, pois é algo da vivência deles. Todos os países e culturas têm suas próprias formas de racismo, assim como o Brasil, mas não há como comparar a nossa experiência à deles 

Corra! é um filme sobre as sutilezas do racismo nos EUA, especialmente o racismo tácito, como quando o policial pede os documentos do protagonista negro (Chris) ou quando este visita a família branca da namorada e o sogro fica falando em como ele gosta de conhecer outras culturas ou pergunta que esporte ele pratica. São coisinhas que mostram que a pessoa não consegue conversar com um negro sem ficar sutilmente recorrendo a estereótipos. Depois, quando chegam os amigos brancos dessa família, eles têm este mesmo comportamento de encarar o negro como algo exótico.

Este é um fenômeno curioso dos EUA. Lá a miscigenação não se tornou tão comum. É o país mais multicultural do mundo, com a maior variedade de imigrantes, mas curiosamente cada grupo costuma manter certa coesão e se perpetuar dentro de seus próprios círculos. Assim o padrão é a predominância de casais brancos, casais negros, casais latinos, etc. Evidente que há casais mistos, mas é algo fora do padrão.

The Skeleton Key (2005)

Os zumbis da ficção se desvincularam do vudu e feitiçaria de negros estrangeiros, mas o fascínio por este conceito permaneceu na ficção, retornando aqui e ali. No filme The Skeleton Key (2005), por exemplo, temos um casal de negros que usa feitiçaria (no caso, hudu) para possuir os corpos de suas vítimas.

The Skeleton Key está na intersecção entre magia e hipnose, pois ao longo do filme é enfatizado o fato de que a feitiçaria só funciona em quem acredita nela, ou seja, é um fenómeno essencialmente hipnótico ou psíquico.

É curioso então que Corra! subverte o conceito do feiticeiro negro, apresentando uma "versão branca" do vudu, a psiquiatria. A sogra do protagonista (Missy) é conhecida por sua habilidade terapêutica com a hipnose, uma prática que Chris a princípio encara com ceticismo, mas uma noite ele senta para conversar com ela e rapidamente é dominado pela sua técnica hipnótica. A partir daí sua vida vira um pesadelo.

Get Out (2017)
A diabólica xícara de chá de hipnose.

Ele vai descobrindo que outras pessoas, outros negros, têm comportamentos estranhos, como se vivessem em transe. Eram vítimas da "feitiçaria" da psiquiatra. Ela, portanto, é uma inversão do conceito de feiticeiro vudu negro, a hipnotista branca.

Das Cabinet des Dr. Caligari (1920)

Voltemos aqui aos primórdios do cinema. No cinema americano, de fato o terror zumbi e de hipnose ou controle da mente teve origem no fascínio pela excêntrica magia haitiana, porém há um caso diferente no cinema europeu. No filme O Gabinete do Dr. Caligari (1920), um médico hipnotista controla mentalmente um homem que sofre de sonambulismo, manipulando-o para cometer assassinatos. Sim, temos aí o primeiro caso no cinema do feiticeiro secular e branco, que não usa magia ou poções, mas hipnose. 

Esta obra do tempo do cinema mudo chama atenção pela técnica narrativa, misturando eventos do presente com flashbacks e ainda terminando com um grande plot twist, talvez o primeiro plot twist da história do cinema, quando vemos que o sonâmbulo na verdade estava internado em um manicômio e toda a história envolvendo o Dr. Caligari era um delírio. Ou será que não?

Os cenários são feitos de ruas e casas construídas especialmente para o filme, com uma aparência cartunesca, retorcida, como um mundo onírico de pesadelo. Para complementar, temos uma sonoplastia de jazz que transmite uma intensa tensão e confusão mental.

Das Cabinet des Dr. Caligari (1920)
Note-se o aspecto surreal e onírico neste filme de 1920.

Das Cabinet des Dr. Caligari (1920)

Conrad Veidt; Das Cabinet des Dr. Caligari (1920)
Não, não é o Bruce Wayne do Robert Pattinson.

Missy, a vilã de Corra!, é isso, uma espécie de Dr. Caligari, de modo que este filme, ao mesmo tempo em que subverte o antigo gênero de feiticeiros vudus, também remonta aos primórdios do cinema, com o terror da hipnose que tem origem lá nos anos 1920.

Pica-Pau vudu é pra jacu

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