Dom Casmurro encontra os Illuminati em Eyes Wide Shut

Em sua filmografia, Kubrick costumava abordar a perversão humana, a violência (Laranja Mecânica), a loucura (O Iluminado), a perversão sexual (Lolita). Eyes Wide Shut (1999) não é diferente.

William Harford (Tom Cruise) é um médico bem sucedido, casado com a belíssima Alice (Nicole Kidman), com quem tem uma filha e um estilo de vida padrão. Eles gostam de frequentar as festas da alta sociedade e se divertem com uma aparentemente inofensiva brincadeira erótica de provocar ciúmes um no outro paquerando pessoas na festa.

A aventura não passa disso, de uma mera provocação para apimentar a relação. Só que um dia Alice confessa que já se sentiu atraída por outro cara e nutriu uma fantasia erótica com ele, mesmo quando fazia sexo com William. Era um homem fardado da marinha, a clássica atração feminina pela farda militar, e em sua imaginação ela até mesmo pensou em abandonar a família para ter esta aventura sexual.

William fica chocado, pois até então ele achava que ela fosse uma esposa careta, tradicional e fiel até em pensamentos. Com a imagem da traição imaginária na mente, ele sai na rua pensando em se vingar. Procura uma prostituta, mas desiste da ideia. Depois encontra um amigo que lhe confidencia uma orgia secreta que acontece em uma mansão e até lhe entrega a senha: "Fidelio".

O ingênuo William arranja uma fantasia e uma máscara (necessários para entrar na orgia), pega um táxi e vai até a mansão, conseguindo entrar com a senha. Ali ele se depara com um ambiente sinistro, com um ar de seita obscura. A festa começa com uma espécie de sacerdote cercado de mulheres nuas que então são despachadas para atender os convidados. William abismado observa o ambiente, pessoas transando por toda parte, um mundo novo e fascinante para ele.

Todavia ele rapidamente é identificado como um penetra e é interrogado. Só consegue escapar porque uma das mulheres se oferece para receber a punição no lugar dele. Ele sai sem saber o que de fato aconteceu ali e que tipo de punição haveria. 

A partir daí, ele passa a ser seguido por um homem na rua, fica intrigado com a notícia da morte de uma modelo, suspeitando que era a mulher que foi punida na festa. Um amigo da alta sociedade até o chama para uma conversa a fim de alertá-lo. Teimoso, ele insiste em investigar, querendo ir a fundo nesse rabbit hole da alta sociedade, mas acaba desistindo quando percebe o risco a que estava expondo sua mulher e filha. Ele finalmente se toca que mexeu com uma poderosa máfia.

Basicamente, Eyes Wide Shut é como se Dom Casmurro, enciumado por causa de Capitu, procurasse uma orgia no covil dos Illuminati. Quando ele percebe quão perigosas são estas pessoas, conta tudo para a esposa e os dois decidem viver como se nada tivesse acontecido, seguir suas vidas.

Há, porém, um detalhe curioso na última cena. William e Alice levam a filha para uma loja de brindes de Natal e discretamente conversam sobre a enrascada em que se meteram. Sem saber como lidar com a situação, William pergunta a Alice o que eles deveriam fazer. Ela responde que deveriam ficar gratos por terem sobrevivido, mas acrescenta que deveriam fazer algo o quanto antes. William pergunta o que e ela simplesmente responde: "Foder" (fuck).

Ou seja, mesmo tendo a noção de que eles mexeram com gente perigosa, com a máfia da alta sociedade, cheia de segredos e depravações, ela ficou excitada com a situação. O medo e a violência serviram de combustível para o tesão do casal. É a perversão humana mais uma vez ilustrada em um filme de Kubrick.

Este foi o último filme da carreira do grande diretor. Kubrick faleceu meses antes do lançamento do longa. Os teóricos da conspiração até suspeitam que ele foi longe demais em Eyes Wide Shut, expondo o submundo de orgias e segredos das elites, o que levou à sua morte. Será? Serááá?

A verdade é que o filme foi baseado em um livro do começo do século, a novela Traumnovelle, de Arthur Schnitzler (1926), que depois foi adaptada para a TV austríaca em 1969 e também virou um filme italiano de baixo orçamento em 1989. Sua versão cinematográfica mais conhecida, obviamente, seria a de Kubrick em 1999.

O enredo de Eyes Wide Shut é bem semelhante ao do Traumnovelle, de 1969, com alguns acréscimos de cenas e detalhes e, claro, o toque kubrickiano. Na festa à fantasia, por exemplo, a versão austríaca toca uma música convencional de baile, enquanto a do Kubrick tem uma sonoplastia sinistra, como uma música diabólica tocada de trás pra frente.

Também o final da história tem um minúsculo detalhe que faz muita diferença. Em ambas versões, Alice, como uma esposa mansa e estoica, conclui que devem ser gratos por terem sobrevivido, mas na versão de Kubrick ela acrescenta o "fuck" que revela seu sombrio lado pervertido. 

A versão austríaca de 1969.

Palavras-chave:

Arthur Schnitzler, Kubrick, Nicole Kidman, Tom Cruise