Um prefácio intimista e desnecessário (pode pular essa parte)
Meu interesse por cinema se tornou mais dedicado por volta de 2010. Até então eu assistia filmes aqui e ali, ora na TV, ora alugando nas antigas locadoras ou indo ao cinema, mas não tinha um interesse que se possa chamar cinéfilo. Era parte do público casual que assiste algum filme do momento só pelo entretenimento descompromissado.
Quando comecei a ter internet banda larga, descobri o mundo dos filmes encontrados na internet e me tornei mais curioso e estudioso. Agora assistia não apenas pelo entretenimento, mas também pelo aprendizado, aquele afã intelectual que caracteriza o espírito cinéfilo. Bom, o termo "cinéfilo" também tem um sentido pejorativo que define o cara que se torna tão especialista em ver e comentar filmes que vira um chato. Espero nunca ser contaminado por isso.
O fato é que há pelo menos uma década gosto de assistir e digerir o que assisto, daí procurar resenhar sempre que posso. A resenha é uma maneira de mastigar o filme, processando na minha memória intelectual e afetiva.
E aqui começa a resenha
Eis então que um dos primeiros longas que assisti a partir deste meu despertar para a cinefilia foi Inception (2010). Ao longo dos anos devo ter revisto umas 3 vezes e estes dias vi uma última vez na Netflix.
Enfim, foi Inception que me apresentou o gênio do Christopher Nolan e desde então acompanhei sua filmografia. Encantei-me com Interstellar (resenha aqui) e aguardo ansioso pelo filme palíndromo Tenet.
Na época do lançamento de Inception, lembro que os comentários que se faziam eram de que seria o "novo Matrix" e foi com essa expectativa que assisti. De fato é uma comparação digna. Matrix chamou atenção com os efeitos visuais inovadores, o bullet time, a mistura de giro de câmera com slow motion, como que manipulando o espaço-tempo. E Inception faz isso, manipula o tempo e o espaço.
Os efeitos visuais de Inception, ainda agora, dez anos depois, continuam decentes. Vemos como ele brinca com os cenários, criando paradoxos, dobrando cidades, explorando ilusões de ótica, claramente inspirado nas obras geometricamente surreais de M. C. Escher.
O fantástico e absurdo não se limita apenas ao excelente trabalho gráfico do studio Legendary Pictures. O que mais mexe com a nossa imaginação é o roteiro que nos apresenta um incrível conceito de viagem dentro da mente das pessoas, dentro dos sonhos, quase como um mundo cibernético. Inception é um Neuromancer aplicado ao mundo onírico.
É criada toda uma ciência do sonho. Aprendemos que existem hackers capazes de invadir os sonhos, construir cenários, roubar informações. Aprendemos que é possível mergulhar em camadas mais profundas, sonhos dentro de sonhos, e em cada camada o tempo psicológico passa de forma relativamente mais lenta, de modo que, em um sono de algumas horas, você pode viver no mundo do sonho por dias, semanas, até décadas.
Está criado um universo fantástico baseado no sonho que poderia render vários filmes ou uma série. É em cima deste ambiente ciberonírico que Nolan desenvolve uma trama que nada mais é do que um típico heist movie, ou seja, um filme de assalto.
Uma típica gangue de especialistas prontos para um heist. |
Filmes de assalto são uma das categorias mais queridas do cinema e remontam aos tempos áureos quando se faziam filmes de gangsters roubando bancos e trens. A franquia Missão Impossível explorou bastante o gênero. Quem não lembra do Tom Cruise pendurado em uma corda, roubando dados de um computador em uma sala hermética? Até mesmo uma franquia de fantasia medieval, Senhor dos Anéis, teve seus filmes de assalto na trilogia O Hobbit, quando Gandalf reúne um grupo de aventureiros para roubar o dragão Smaug.
Pois bem, em Inception um empresário contrata o protagonista Cobb (Leonardo DiCaprio) para realizar um assalto mental. Como em todo heist movie, o líder Cobb reúne uma equipe de especialistas para a tarefa. Não bastando o fato de Nolan ter levado o gênero para um terreno novo (o assalto ocorre no mundo do sonho), ele subverteu o próprio objetivo do heist: desta vez os assaltantes não vão roubar nada da mente do alvo, vão inserir algo, uma ideia. Daí o título Inseption, inserção.
Então vemos a equipe se aventurando nas camadas do subconsciente do filho de um bilionário com o objetivo de chegar ao núcleo do seu ser e plantar uma ideia que o faria retroceder nos planos monopolistas de sua empresa.
Em meio a essa saga, acompanhamos também a tragédia pessoal do Cobb, cuja esposa cometeu suicídio justamente por causa de uma experiência danosa de inserção. O DiCaprio, coitado, só sofre em seus filmes. E esse cara sabe sofrer.
O momento mais catártico do filme, quando o alvo da inserção se depara com um sentimento redentor no cerne do seu ser. |
Todo o elenco, aliás, está ótimo: o Gordon-Levitt elegante e acrobático, a Ellen Page fofa, o Tom Hardy estiloso, o Cillian Murphy profundo e dramático (se ele não te fez chorar nesse filme, você não tem alma). Só que ainda tem algo, o último ingrediente na perfeita fórmula mágica dessa obra: a música.
A trilha sonora é construída com base em uma só música: Non, je ne regrette rien, cantada por Edith Piaf. No filme, ela é usada como um gatilho para fazer com que as pessoas acordem do sonho. Em cima dela o Hans Zimmer construiu a trilha sonora que consiste em deformar os acordes, reduzindo sua velocidade. Desta forma, a música passa a impressão de desaceleração do tempo, que é o que acontece quando se mergulha no sonho.
Essa desaceleração sonora chega até o ponto de cada acorde soar como um apocalíptico "BWONG" ou "BRAAAM" , som que se tornou uma marca do filme e que posteriormente se tornou até um clichê nos filmes de catástrofe ou ação.
Por fim, existe uma grande pegadinha que divide opiniões. Ela é baseada no conceito de totem, criado para o universo onírico do filme. O totem é um objeto que o hacker de sonho usa para se certificar de que não está mais sonhando (afinal, após passar horas, dias ou anos no mundo onírico, você pode perder a noção do que é real).
No caso do Cobb, o totem era um peão que no sonho girava infinitamente. Caso o peão parasse de girar e caísse, ele saberia que estava acordado. Acontece que, no fim da história, depois que Cobb passou por toda a aventura e até atravessou o limbo do mundo do sonho, ele põe o peão pra girar e o filme termina sem mostrar se ele parou ou não. E agora? Ele ainda estava sonhando ou não? Essa dúvida permanecerá eternamente.
Peãozinho que todos amam odiar. |
Ótimo texto. A trilha sonora foi boa sacada mesmo. <3
ResponderExcluirAssisti novamente essa madrugada e fiquei bem mais propenso à acreditar que ele está sonhando por 3 motivos: 1 - A fala de Saito "Um sonho meio esquecido" no começo do filme, mas que no final quem diz isso é Cobb, como se fosse um dejavú.
2 - Na verdade Cobb não possuí um Totem, ele usa o da sua esposa e após cerca de 50 anos dentro de um sonho com ela, quando retornam dos trilhos, faz mais sentido eles estarem em outra camada onírica menos profunda do que de volta à realidade.
3 - As crianças continuam visualmente idênticas à como estariam na memória dele. É como se seu subconsciente buscasse criar uma jornada que pudesse trazer paz e aceitação: uma vez que a ideia de que ele estava no mundo real enquanto não pudesse ver seus filhos germinou em sua mente.