O tema da digitalização e transferência de consciência tem se tornado mais comum na ficção. Black Mirror (2011-)¹ tem alguns episódios sobre isso, como o romântico San Junipero e outro ainda mais bizarro, Black Museum, em que uma consciência humana é transferida para um macaquinho de pelúcia. Na recente série Upload (2020)², o protagonista morre e tem sua consciência transferida para um mundo virtual, uma espécie de além vida digital.
É uma ideia fascinante e tentadora, porém simplista. Este conceito não apenas simplifica a noção de consciência, como de pessoa humana. Um ser humano é uma estrutura absurdamente complexa. Fisicamente, você é uma composição de células que se especializaram de inúmeras maneiras, seguindo o código de seu DNA, que é único em toda a espécie humana.
Não só isto, o corpo humano é também uma espécie de simbiose entre células humanas, com o seu DNA único, e uma multidão de outros microrganismos que não só convivem em harmonia com seu corpo, como trabalham em uma relação mútua. O melhor exemplo disto são as bactérias probióticas da flora intestinal. Sem elas a vida humana é simplesmente insustentável.
A mente, a consciência, tem igualmente uma complexidade extrema. Sua mente funciona por meio de intrincados relacionamentos entre os bilhões de neurônios, resultando em trilhões de sinapses, de interconexões. Este universo mental é moldado por uma diversidade de fatores, seja a programação genética, os estímulos do meio e a relação do cérebro com o restante do corpo. O seu corpo influencia sua mente e vice-versa. É uma relação de frequente troca e mutação, pois a mente é tudo menos estática. A mente é um fenômeno em constante transformação.
Logo, é impossível transferir literalmente uma mente de um cérebro para um hardware, para um servidor digital. O máximo que se poderá fazer a respeito é uma cópia dos dados armazenados no cérebro, dados que podem constituir as memórias e os aspectos da personalidade da pessoa conforme se apresentavam no momento da cópia. Todavia, uma vez feita a cópia, estes dados não são a pessoa. São basicamente uma fotografia de sua mente, e, como qualquer fotografia, ela não capta toda a vida e movimento desta formidável estrutura.
Não duvido que algum dia, talvez até em um futuro próximo, será relativamente normal as pessoas se "imortalizarem" por meio da criação de avatares virtuais que contêm uma cópia de suas memórias. Será uma experiência fascinante e divertida criar cópias de você mesmo. Ao criar uma cópia digital, mesmo sabendo que não é você propriamente, pode ser satisfatório saber que está deixando um legado no mundo, uma extensão de seus pensamentos. É como escrever um livro, deixar fragmentos de sua mente para a posteridade, porém de uma forma bem mais detalhista que um livro.
Quem sabe até seja possível desenvolver robôs com a sua personalidade e que vão conhecer melhor do que ninguém a sua maneira de pensar, seus gostos, vão poder dividir tarefas com você. Será como ter o superpoder de criar clones de si mesmo que vão trabalhar a seu favor. É um conceito divertido, convenhamos, mas as pessoas vão ter que estar certas disto: o clone digital não é você. Provavelmente algumas pessoas não saberão fazer esta diferenciação, desenvolvendo transtornos e delírios.
Será uma ilusão para aquelas que acham que desta forma vão continuar existindo neste mundo ou que poderão se relacionar com entes queridos falecidos. Relacionar-se com uma cópia digital da consciência é o que é: uma experiência de simulação. Não é diferente de olhar a foto de uma pessoa falecida e ter lembranças agradáveis do tempo e que ela estava vida. É uma lembrança, não a pessoa em si.
A busca pela imortalidade ou pelo prolongamento da vida é uma das grandes ambições da ciência e tecnologia, todavia, devemos estar cientes de que isto não se dará por meio desta gambiarra que é a chamada digitalização da consciência. Digitalizar o cérebro não garante a continuação da vida daquela pessoa, daquele fenômeno complexo e psicossomático que é um corpo orgânico com um cérebro e uma mente.
Se tem uma maneira mais provável de se conquistar a longevidade é por meio da biologia, não da cibernética. Será a engenharia genética que, descobrindo os códigos fundamentais da manutenção da vida biológica, poderá hackear a natureza e descobrir a fonte da juventude. Aí sim será possível uma pessoa viver por 200-300 anos, quem sabe até 1000 anos, mas isto acontecerá em seu corpo biológico, com seu cérebro, suas células e não fora deste sistema em uma cópia digital.
Mesmo que aconteça uma mescla do cérebro humano com a inteligência artificial (como propõe o Neuralink), o elemento orgânico desta mescla ainda será o cerne da natureza humana. Não importa quantas camadas de aprimoramentos cibernéticos coloquemos sobre nós, a base ainda será orgânica, feita de células e do DNA que nos torna únicos.
Mais adiante, digo muuuito mais adiante, se a humanidade alcançar um nível de evolução tal que transcenda as limitações biológicas e mesmo as limitações do mundo quadridimensional, aí sim encontraremos a verdadeira imortalidade. Mas isto é uma possibilidade remota, coisa para milhões, bilhões de anos à frente.
Notas:
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